Entrevista: Marcelo Firpo Porto – “Os invisíveis precisam ser trazidos à tona”

Nota: embora discorde quanto à visão de Marcelo sobre a amplitude do conceito de Racismo Ambiental, não só sua opinião merece ser respeitada, como a importância da entrevista torna esse fato menor. TP.

Pesquisador do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp) da Fiocruz, Marcelo Firpo Porto coordena o projeto que resultou no Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Engenheiro de produção e psicólogo por formação, doutor e pós-doutor em Medicina Social pela Universidade de Frankfurt, ele defende que a promoção da saúde deve ser emancipatória: além de trabalhar com os determinantes sociais, é preciso legitimar a luta das populações invisíveis por seus direitos.

Qual a origem do conceito de justiça ambiental?

O conceito vem do contexto das lutas pelos direitos civis, nos Estados Unidos, e faz parte da história dos movimentos sociais que enfrentam questões ambientais relacionadas às desigualdades, às disputas de poder e à exploração. Nos anos 1970, descobriu-se que as questões relativas ao meio ambiente, que ganhavam espaço no planeta, afetavam de forma diferenciada as populações discriminadas. Eles cunharam inicialmente o conceito de racismo ambiental, para mostrar que as populações negras é que moravam mais perto dos lixões, dos locais poluídos. Posteriormente, descobriu-se que a discriminação não se dava só contra as populações negras, mas contra os chicanos e outros imigrantes, e também envolvia questões de classe social e de gênero. Passou a ser utilizado o conceito mais amplo de justiça ambiental, que se combina com o de injustiça ambiental.

Qual a relação entre justiça ambiental e promoção da saúde?

Existe dentro da promoção da saúde uma visão hegemônica e uma visão contra-hegemônica. A hegemônica está voltada para o comportamento individual, que sem dúvida é importante para a construção da saúde. Mas existe uma discussão sobre determinantes sociais (ou socioambientais) da saúde e a produção das desigualdades, que faz uma crítica ao modelo de desenvolvimento hegemônico, voltado a um metabolismo social e uma divisão internacional do trabalho ambientalmente insustentável e socialmente injusta, já que pautada pela produção de commodities (rurais e metálicos, como a soja e o aço), e tem como base a exploração intensa de recursos naturais. Isso gera formas de desenvolvimento degradantes, exploração de trabalho e desigualdades. É fundamental pensar nas dimensões coletivas da promoção da saúde emancipatória, que legitime o direito das populações que vivem nas periferias — urbanas e das florestas, dos campos e das zonas costeiras.

Injustiças ambientais são necessariamente invisíveis?

Elas tendem a ser invisibilizadas por vários motivos. Primeiro, porque o modelo atual de democracia hegemônica tende a ocultar os conflitos, a buscar consensos de forma artificial. Na área ambiental, há padrões que é preciso confrontar: a ideia de que o ambiente afeta igualmente todas as populações e povos; que todos somos igualmente responsáveis pelas causas e pelas consequências da degradação ambiental. Isso não é verdadeiro. Outra questão é queas populações mais afetadas nos territórios de fronteira de expansão capitalista não são as que vivem nas periferias urbanas, mas aquelas que habitam territórios considerados invisíveis, sem população. Indígenas, quilombolas, extrativistas, populações rurais, agricultores familiares são invisibilizados e precisam ser trazidos à tona para que suas lutas sejam consideradas legítimas.

Então, pode-se dizer que a invisibilidade é um problema de saúde?

A invisibilidade intensifica a vulnerabilidade das populações na busca por sua saúde. A saúde tem a ver com a liberdade para defender legitimamente os seus direitos: direito à terra, à cultura. Outro aspecto importante que o mapa revela são as ameaças à integridade física das populações e de suas lideranças. Assassinatos, ameaças de morte e casos de tortura são muito frequentes. Isso é um problema de saúde pública. O que são as zonas de sacrifício? Existe um teórico chamado Robert Bullard (sociólogo americano, diretor do Centro de Pesquisa em Justiça Ambiental na Clark Atlanta University, considerado pai do movimento da justiça ambiental), que fala sobre elas. As populações discriminadas — trabalhadores, negros— são colocadas nas periferias, onde se concentram os riscos da falta de infraestrutura, da poluição etc. As zonas de sacrifício referem-se à tendência de jogaro lixo humano, aquilo que é excluído da sociedade, para os locais inóspitos e duros, que fazem parte da sujeira deste modelo de produção e consumo. É onde estão as fábricas poluentes, as zonas sem infraestrutura urbana, os lixões. Uma zona de descarte e de resíduos.

Quais as principais zonas de sacrifício no país?

A maioria dos conflitos do mapa se localiza nos territórios não urbanos e envolve povos do campo, das florestas e das zonas costeiras. Isso não é à toa. Essas populações estão justamente nas áreas onde é mais intensa a expansão capitalista no Brasil, com a construção de hidrelétricas, a expansão das monoculturas, da mineração etc. Mas também se localizam nas favelas, nas áreas sem estrutura de saneamento básico, perto dos lixões, das áreas de enchente e de inundação, como vimos no Rio de Janeiro.

Como o profissional de saúde pode atuar em prol da justiça ambiental?

Atualmente, existe uma forte tendência de institucionalização do SUS e da academia ligada à saúde coletiva. As ações científicas e técnicas se afastaram da busca por sociedades mais democráticas, justas e ambientalmente sustentáveis.A justiça ambiental permite colocar para o profissional de saúde, para o SUS e para os pesquisadores a proximidade com situações onde conflitos e possibilidades de avanços democráticos estão efetivamente acontecendo.

A comunicação pode contribuir?

Não tenho dúvida de que a comunicação é essencial. Uma das coisas boas que aconteceram com o mapa foi a forte divulgação de uma ferramenta importante, claramente contra-hegemônica, na grande mídia. O uso dessas formas contra-hegemônicas e mais democráticas de difusão de informação é importante para os profissionais de comunicação. Na medida em que mais cidadãos tenham acesso amplo às informações,mais os movimentos sociais formarão novos sujeitos coletivos. O que interessa na democracia hegemônica, ligada à expansão do capitalismo globalizado, é a informação que parece inclusiva, mas que mantém fragmentados os vários atores. É importante que os profissionais de comunicação entendam seu papel social e político na promoção de novas práticas culturais de informação. (ADL)

Fonte: Radis 95, julho de 2010.

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