Garzón vai assessorar Tribunal Penal Internacional

O juiz espanhol punido por buscar a verdade dos crimes do franquismo está de mudança para Haia. Assessorará Luís Moreno Ocampo, procurador que atuou no julgamento das Juntas Militares da Argentina, em 1985, e atual procurador no Tribunal Penal Internacional. Em diálogo com o Página12, Moreno Ocampo explicou por que há dois tipos de vítimas: os torturados e assassinados e as famílias que não podem saber toda a verdade do que aconteceu.

Martín Granovsky – Página 12

Carta Maior – A parábola vai se completar nesta semana: o juiz que quis investigar o que se passou com as vítimas do franquismo começará a trabalhar com o procurador que há 25 anos acusou os verdugos argentinos.

“Há muitos anos que necessito da ajuda de Baltasar Garzón”, disse Luis Moreno Ocampo ao Página12. E depois de esclarecer que não pode opinar sobre a Justiça espanhola, desliza uma ironia: “e agora tenho tempo”.

Moreno Ocampo é procurador no Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. Não é a mesma corte que falhou na decisão sobre Botnia e o o Rio Uruguai. É a Corte criada em 1998 pelo Estatuto de Roma, para investigar crimes contra a humanidade e a paz e que começou a funcionar quando 60 Estados ratificaram o Estatuto, em 2002. Uma de suas primeiras medidas práticas foi designar um procurador e pedir-lhe que montasse uma procuradoria. Esses são o cargo e o trabalho de Moreno Ocampo.

Garzón será seu colaborador depois que o Conselho Geral do Poder Judiciário da Espanha concedeu autorização na última sexta-feira. Ele está suspenso desde que o Tribunal Supremo deu lugar a acusações apresentadas por organizações franquistas e neo-franquistas irritadas porque Garzón se declarou competente para investigar os detalhes da morte de milhares de pessoas, entre 1939 e 1975, protagonizadas pela a tirania de Francisco Franco.
Como você sabe, o governo espanhol esteve de acordo com que Garzón viesse para a Corte – disse Moreno Ocampo . Isso sem prejuízo do que o caso que hoje pesa sobre ele possa se desenvolver, visto que ninguém é culpado até que se prove o contrário.

Página12 – Em que Garzón irá ajudá-lo?

MO – Ele tem uma grande experiência com a diversidade de casos que enfrentou nos últimos 20 anos. Sabe como investigar as relações entre poder político e criminalidade e entre finanças e criminalidade. Não o sabe em teoria, apenas. Ele o fez. Investigou o financiamento do ETA e as relações com Henri Batasuna, investigou os paramilitares dos GAL1, o fundamentalismo islâmico, Augusto Pinochet…Conversamos muitas vezes sobre esses temas. Já havia lhe pedido ajuda uma vez, quando fomos juntos a Colômbia para colaborar com o desenvolvimento do sistema nacional de investigações penais sobre crimes massivos.

(*) Moreno Ocampo foi o procurador adjunto de Julio Strassen no processo dos comandantes da ditadura, em 1985.

MO – Em 85 a Argentina fervia e a discussão era se julgar era adequado ou não. O que aconteceu é extraordinário, porque hoje o país não está dividido em função desse tema, mas de matizes. O julgamento das Juntas teve um efeito muito importante. Estabeleceu claramente como tinha sido a história. O julgamento esclareceu o passado e a Argentina, inclusive com todos os vai-e-vens que viveu depois, consolidou-se. Hoje a democracia é tão natural como a dos Estados Unidos ou da Europa; aí está, é parte do ar que se respira. Alguém disse que os bons desenhos demonstram sua efetividade quando são invisíveis. É o que se passa com a democracia argentina.

Página12 – Você não quer falar da tramitação judicial sobre Garzón, mas pode opinar sobre um fato relacionado com a situação espanhola: o direito das vítimas e seus familiares de saber o que se passou versus a lei de anistia de 1977.

MO – Já há leis, jurisprudência e consenso a respeito de que as normas locais não se podem opor aos tratados internacionais. Já quando trabalhamos nas Juntas convidamos a Louis Joinet, relator especial das Nações Unidas, que explicou os diferentes aspectos da Justiça.

Página12 – Joinet sempre sustentou que saber o que aconteceu é também um direito coletivo.

MO – Exatamente. Eu me somo às palavras dele. Há duas formas de ser vítima. Por um lado, os torturados e assassinados. Por outro, as famílias que nunca tiveram informação. Se não sabem o que aconteceu, as famílias dos desaparecidos são vítimas permanentes. Sempre me lembro que, vários anos após as Juntas, encontrei-me com o pai de Inés Olleros, uma jovem sequestrada e desaparecida. Um dia ele me disse: “Eu não acredito que a assassinaram, mas meu coração guarda sempre uma cota de esperança”. Ele me contou que umas semanas antes alguém lhe havia dito que sua filha estava num hospital para doentes mentais de Caleta Olivia. Viajou até Santa Cruz e viu a cara das internas. Uma por uma. A única forma de acabar com essa incerteza é saber. Quando ainda não se podia julgar os crimes da ditadura, a Câmara Federal de La Plata organizou audiências públicas para estabelecer a verdade do que ocorreu com as vítimas e para que seus familiares, essas outras vítimas, ficassem sabendo.

Sete anos, sete julgamentos

A Camara de La Plata autorizou o Juizo pela Verdade em 1998. Sua resolução foi simples: “Declarar o direito de todos os familiares das vítimas dos abusos do Estado ocorridos no governo de fato de 1976-1983 de conhecer quais foram as circunstâncias de sua desaparição e qual o destino de seus restos mortais”. A investigação avançou velozmente pela dinâmica da justiça e o trabalho sistemático dos organismos de direitos humanos. Quando fosse possível julgar mais uma vez, boa parte da prova já estava produzida durante o Juízo pela Verdade.

Instalado em Haya há 7 anos, Moreno Ocampo aproveitou a experiência argentina de uma procuradoria montada do zero, em 1984.

MO – Há sete anos me nomearam. Com sete andares vazios. Tinha uma conclusão: o Julgamento das Juntas foi muito bom porque começou pelas cabeças. Como eu faria para montar uma procuradoria? Como conseguiria prender chefes de Estado e assegurar os julgamentos? Havia chegado a um critério: poucos julgamentos e processados de alta hierarquia. O desafio era duplo. Por um lado, construir a estrutura de uma instituição pensada para durar séculos. Por outro, investigar crimes massivos que estavam ocorerndo.

Página12 – O que fez com a primeira tarefa?

MO – Tenho 300 pessoas trabalhando em 70 países.

Página12 – E com o segundo desafio?

MO – Processei os chefes de Uganda e do Congo e ao presidente do Sudão. A Corte tem três julgamentos em andamento. A realidade, além disso, apresenta novos problemas a cada dia. Por exemplo, cada país da Europa que intervém em conflitos fora do continente deve respeitar as normas européias de direitos humanos. Quais são as normas para o Reino Unido no Afeganistão?

Parte das 300 pessoas são alguns juristas especializados. Moreno Ocampo contratou Catharine MacKinnon, da New York University, que trabalhou pela primeira vez com o conceito de coação sexual. Também com o argentino Juan Méndez, conselheiro do Secretário Geral das Nações Unidas para a prevenção de genocídios.

Baltasar Garzón, andaluz de Jaén, 54, será o novo membro da equipe.

“Necessitamos de gente da mais alta qualidade possível”, explica Moreno Ocampo.

A vendeta espanhola produziu uma parábola e, ademais, um paradoxo: melhorou a qualidade de um tribunal dedicado à justiça sem fronteiras por ter posto uma fronteira na justiça.

Tradução: Katarina Peixoto

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