Motivações e consequências sociais das reformas urbanas no Rio

Por Danilo Albergaria

A história do Rio de Janeiro é uma história de segregação, de exclusão. Quando uma realidade social já trágica se depara com tragédias do porte da que ocorreu em março deste ano, é inevitável perguntar: há lugar para a esperança? Num cenário em que a omissão estatal é a tônica, qualquer resposta positiva a essa questão deve passar pela organização e luta de uma população que chame o Estado a assumir suas responsabilidades sociais, secularmente ignoradas.

No início do século XIX, os habitantes do Rio de Janeiro mal podiam imaginar que as decisões políticas e militares de Napoleão Bonaparte significariam mudanças tão grandes em sua cidade. As tropas francesas invadem Portugal no final de 1807 e, no início do ano seguinte, chegam às terras brasileiras os monarcas portugueses e sua corte, em fuga. O desembarque e a instalação de D. João e a corte portuguesa no Rio de Janeiro, em março de 1808, é o começo de uma história de grandes mudanças e controversas reformas urbanas dessa que é, sob muitos aspectos, a cidade que melhor sintetiza o que é o Brasil. De lá pra cá, a “cidade maravilhosa”, que já havia passado pela experiência de ser elevada a sede do vice-reino do Brasil em 1763, depois de um século e meio como o centro do poder brasileiro, viu-se perdendo o posto para a artificial, recém-construída, Brasília. Tal história propicia as seguintes questões: quais foram as principais reformas e rearranjos urbanos pelos quais o Rio passou e como essas mudanças responderam às questões de seu tempo?

As primeiras coisas, primeiro. Comecemos pelo problema habitacional causado pela chegada da corte portuguesa. Onde haveriam de ser alocadas as quase 15 mil pessoas que acompanharam a fuga de D. João para o Brasil? A solução encontrada foi simples, mas indigesta para a população carioca: o confisco de residências. “Escreviam ‘PR’, de ‘Príncipe Regente’, nas casas que seriam confiscadas. Então, a população arranjou um outro sentido para a sigla: ‘ponha-se na rua’”, conta Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para quem a história do Rio é uma história de exclusão. “Desde a sua fundação, os pobres são removidos para dar lugar aos ricos: a cidade começa com a expulsão dos indígenas”.
Entretanto, se ao longo de sua história – passando pelo decisivo momento da chegada da corte portuguesa – a cidade se molda aos interesses dos mais abastados e poderosos, a fundação do Rio de Janeiro moderno (ou seja, quando emergem muitos dos problemas e virtudes da cidade) ocorre com as grandes reformas urbanas do começo do século XX.

As reformas fundantes

A cidade passou por mudanças urbanísticas profundas na primeira década do século XX. Essas reformas são vistas, hoje, como eventos fundadores do que é a moderna cidade do Rio de Janeiro. É consenso que, antes delas, a então capital brasileira era uma cidade insalubre. Os vários retratos pintados por historiadores convergem para uma imagem de ruas divididas por animais, seus excrementos, pessoas de várias origens, classes sociais e atividades econômicas: cavalheiros e damas da elite, biscateiros, vendedores de carnes e vísceras, brancos, negros e mulatos. “O centro antigo era misto, democrático, onde vários grupos sociais coexistiam”, diz Vainer. Mas era, também, um centro de epidemias recorrentes. Os cortiços do centro, onde morava boa parte da população pobre da cidade, foram alvo do discurso higienista, que misturava prescrições da ciência médica e padrões morais de convivência urbana. A reforma realizada pelo prefeito Pereira Passos demoliu os cortiços e abriu largas avenidas. Ficou conhecida, por isso, como “bota abaixo”. Sob a égide do discurso higienista, desalojou do centro da cidade os antigos moradores dos cortiços, que migraram em duas direções: para a periferia e para os morros. “A reforma Pereira Passos organizou a cidade do ponto de vista de uma organização de classes, dividindo os espaços de acordo com critérios de classe”, afirma Vainer.

Usualmente, a historiografia tratou a questão como se houvesse apenas uma grande reforma urbana do Rio de Janeiro na primeira década do século XX; como se todos os planos de mudança urbanística dessa época houvessem tido a mesma natureza. O historiador André Nunes de Azevedo, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, contesta essa visão: “Não houve apenas uma reforma urbana. Aconteceram duas reformas em paralelo, dois planos urbanísticos completamente distintos”. Segundo Azevedo, as reformas urbanísticas propostas pelo então presidente da República Rodrigues Alves e pelo prefeito Pereira Passos – levadas a cabo em diferentes regiões da cidade – divergiam profundamente. “A reforma feita pelo governo federal tinha como valor máximo a ideia de progresso – um progresso que significa, fundamentalmente, desenvolvimento material, técnico e econômico. Não havia preocupações, nesse sentido, com o progresso científico ou artístico”, afirma Azevedo. “Segundo essa proposta, a cidade precisava deixar de ser insalubre, pois, visto como porta de entrada da captação de imigração, o Rio preocupava a elite cafeicultora, que nesse momento estava em crise de mão-de-obra e dependia muito da imigração para sanar essa questão”. “Além disso”, continua, “as reformas de Rodrigues Alves tinham o intuito de facilitar o escoamento, desde o porto, da mercadoria importada”.

Sobre a reforma do prefeito Pereira Passos, Azevedo defende um ponto de vista divergente do consenso historiográfico sobre o tema, que se cristalizou desde a década de 1970. Para ele, a reforma Pereira Passos não foi excludente, mas realizou um projeto de inclusão social conservador. “A reforma urbana municipal estava menos preocupada com o tipo de progresso material que Rodrigues Alves buscava e mais centrada na ideia de civilização: Pereira Passos queria civilizar o Rio de Janeiro. Assim, ele convoca a população para se incluir, tomar contato com o Teatro Municipal e com a Escola de Belas-Artes, por exemplo”, afirma Azevedo. Essa inclusão conservadora, segundo os parâmetros ditados pela elite, se realizaria de acordo com “uma visão orgânica em que a cidade deveria estar completamente conectada: há três vias claras de ligação do centro com o subúrbio”. A civilidade buscada por Pereira Passos para o Rio era eurocêntrica. Segundo essa visão, o ápice da civilização humana era a cultura europeia. Por isso, civilizar também significava educar, letrar a população: “Pereira Passos aumentou bastante o salário dos professores e construiu muitas escolas”, ressalta o historiador.

A erradicação das epidemias

O discurso médico higienista que foi encampado pelo Estado brasileiro, nesse período, nas reformas urbanas do Rio, não existiu sem encontrar resistência em boa parte da população. Em 1904, ocorreu um evento que ilustra a reação popular a essa imposição à força da civilização e do progresso: a Revolta da Vacina.

Oswaldo Cruz, médico sanitarista, chamou para si a responsabilidade de erradicar os surtos de doenças que varriam a cidade. Primeiro, teve de combater os médicos que não acreditavam em seu novíssimo e eficiente método de acabar com a varíola: a vacina. Depois, bateu de frente com tradições populares de cura, uma miríade de práticas alheias à ciência médica ocidental, colocadas no mesmo balaio do “curandeirismo”. Além da doença, essas práticas também deveriam ser erradicadas, pelo bem da saúde pública. O resultado dessa imposição estatal de uma forma de curar e mesmo de viver foi o enfrentamento urbano entre uma entrincheirada população civil e as forças do Estado brasileiro.

A erradicação dos pobres

Meio século depois das grandes reformas urbanísticas, o Rio perdia seu status de capital do país e via-se em meio a um crescimento intenso – da população e da pobreza. “O processo de urbanização se acelera no pós-guerra. Nos anos 1950 e 1960, assistimos ao processo de crescimento expressivo de dois lugares da pobreza: a periferia e as favelas dos morros. Nesse período, o crescimento das favelas começa a ser visto como ameaça”, afirma Vainer. Ele diz que no governo de Carlos Lacerda (1960-1965), o Rio assistiu a uma política sistemática, por meio de processos violentos, de remoção de favelas. “A famosa Cidade de Deus e outros conjuntos habitacionais na periferia são resultados da remoção de favelas da zona sul. Foram realizadas a ‘limpeza’ e a ‘captura’ das terras: os pobres foram expulsos da região e as terras foram destinadas à especulação imobiliária”, continua o pesquisador.

Para André Azevedo, Lacerda também tinha uma espécie de projeto de inclusão conservadora. “Lacerda era um liberal cuja preocupação em educar a mão-de-obra tinha como fundamento a intenção de colocar o Brasil nos trilhos do capitalismo moderno. As mudanças no Rio de Lacerda não deixam de ter um caráter de inclusão, mas uma inclusão totalmente conservadora, partidária da remoção de favelas”, ressalta. “Mesmo os mais conservadores, como Lacerda, podem ter projetos urbanos de inclusão, a seu modo. Não cabe apenas denunciá-los: temos de tentar compreendê-los”, opina Azevedo.

Tragédia e esperança

Cidade-símbolo de um país cuja história é um monumento à desigualdade e à exclusão social, o Rio de Janeiro tem na questão habitacional um de seus pontos mais problemáticos. A topografia da cidade proporciona, simultaneamente, sua beleza única e uma condição que, aliada a um histórico de políticas públicas deficientes ou inexistentes, provoca uma série de problemas na ocupação habitacional. Assistimos, muito recentemente, às tragédias provocadas pelas chuvas excessivas. Deslizamentos mataram mais de duas centenas de pessoas, moradores de áreas de risco.

“A tragédia é reveladora das mazelas da cidade. Mostra como ela é desigual, maravilhosa para uns e horrível para outros”, diz Vainer. “A tragédia revela a omissão brutal por parte de um Estado que não teve qualquer política habitacional. Não alocou recursos para a proteção dessas comunidades (que sofreram com os deslizamentos), não ofereceu alternativas razoáveis para essas populações”, continua. Sobre a questão da remoção dos habitantes de áreas de risco, Vainer afirma que é possível evitá-las. “A tragédia está sendo usada para transformar uma parcela da população em refém do terror. Os lugares em que ocorreram as tragédias são justamente aqueles que não passaram por nenhuma obra de proteção de encostas. No Morro dos Prazeres, por exemplo, houve deslizamentos justamente nos lugares onde não houve proteção das encostas”, pontua.

Para Azevedo, uma das soluções para muitos dos problemas do Rio passa pela revitalização do porto e pelo resgate da cidade como o grande polo turístico do Brasil. “Devemos pensar em abrir os cassinos e transformar a cidade num polo de lazer. O turismo é uma das maiores fontes de renda de países como a Espanha e não deve ser subestimado numa cidade que depende fundamentalmente de um recurso natural como o petróleo”, avalia. A região do porto também é considerada chave para Vainer. “Deve-se prever bairros mistos na área portuária para se combater o processo de segregação. Os espaços onde a cidade se realiza são os espaços de mistura”, diz. “No Rio há um enorme parque imobiliário ocioso e terras públicas na área portuária que deveriam ser utilizados para mitigar alguns dos problemas habitacionais, além de recursos financeiros: sediaremos as Olimpíadas”, continua. “O que falta, mesmo, é vontade política”, arremata.

A história do Rio de Janeiro é uma história de segregação, de exclusão. Quando uma realidade social já trágica se depara com tragédias do porte da que ocorreu em março deste ano, é inevitável perguntar: há lugar para a esperança? Num cenário em que a omissão estatal é a tônica, qualquer resposta positiva a essa questão deve passar pela organização e luta de uma população que chame o Estado a assumir suas responsabilidades sociais, secularmente ignoradas.

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