É impossível não lembrar da estilista Zuzu Angel ao ler o depoimento de Tila Ximenes colhido pelos jornalistas Spensy Pimentel e Joana Moncau. Apesar de suas realidades serem bem diferentes, ambas lutaram pelo direito de enterrar seus filhos, mortos por buscarem Justiça em um Brasil que não conhece bem o significado dessa palavra. O triste é que a ditadura militar acabou, mas o Estado brasileiro continua protegendo por ação direta ou sua inação, os que matam por lucro e poder e escondem os corpos pela garantia de impunidade. Reproduzo parte do depoimento colhido por ambos, que são da Repórter Brasil. Spensy, que também é antropólogo, é um dos maiores pesquisadores dos problemas sofridos pelos Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul:
O corpo de Genivaldo foi encontrado no último dia 7 de novembro, na beira do córrego conhecido como Ypo’i (rio fino, em guarani), referência de território tradicional para a família Vera. O corpo do primo dele, Rolindo, que também desaparecera na noite do dia 31 de outubro, ainda não foi encontrado. Eles sumiram após conflito com seguranças da fazenda que tinham ocupado, no município de Paranhos, em Mato Grosso do Sul. Os médicos alegaram dificuldade para determinar a causa da morte, mas os ferimentos no tórax de Genivaldo não deixaram dúvidas para os parentes: eram marcas de tiro, de grosso calibre. Os Guarani denominam de tekoha esses territórios tradicionais por cuja posse vêm travando disputas com os fazendeiros em toda a região desde os anos 80.
Tila Ximenes é mãe de Rolindo, cujo corpo permanece perdido. Quer falar, porque é grande a dor que sente. Sua fala em guarani surge na boca do agente de saúde, em meio ao pranto dela. Mas não é ele quem fala, nem ela. É toda uma família que chora:
“A busca parou de ser feita, e eu estou muito triste com isso. Pelo menos o cadáver, os ossos, eu ainda tenho esperança de achar. Nosso maior pedido no momento é esse, é que seja feita a busca. Não sei se meu filho foi jogado em algum rio, se ele foi enterrado. Já faz três meses que ele desapareceu, e a minha esperança é encontrar os ossos. Três meses já é muito.(…)
Nós vamos entrar na nossa terra de novo. Meu filho se perdeu lá, por causa dessa terra. Ele morreu lá por causa dessa terra, então o sonho dele era ter essa terra e os parentes nossos agora vão ter que ir lá para realizar esse sonho que era dele. A gente tem que cumprir isso, nem que a gente morra, mas a gente tem que voltar lá pra realizar esse sonho nosso. A terra não é dos fazendeiros, é nossa aquela terra.
Como os parentes resolveram voltar pra aquela terra que era deles, ele também foi. A gente é assim: aonde o pai for, a gente tem que ir junto, tem que ir atrás. O pai dele foi retornar àquela terra, ele foi também. Ele tinha quatro filhos e nem chegou a conhecer o menorzinho. Quatro dias depois que ele desapareceu, nasceu o último. As crianças que ele abandonou querem ver pelo menos os ossos do pai. Nessa mesma semana que eles morreram também nasceu o filho do primo dele que morreu junto.
Era o meu segundo filho mais velho. Ele era professor aqui, tinha 28 anos, já fazia 6 anos que ele estava dando aula. Ele foi bom professor, os colegas até hoje ainda estão esperando ele, na esperança de ver ele ainda, porque ninguém sabe onde ele está. Tem hora que a gente não acredita que ele esteja morto. Mas tem hora que a gente não tem mais esperança, pensa que ele realmente está morto. O sonho dele era dar aula lá naquela terra. Antes de ir, ele falava: ‘Vou chegar lá e vou dar aula, nem que tenha que ensinar debaixo da árvore, vou dar continuidade ao meu serviço’. Esse ano, ele já ia começar a dar aula lá mesmo. Isso já era um plano dele.
O outro professor morto, eles foram todos juntos, eles eram primos. O governador chegou a falar que um podia ter matado o outro… Acho que ele não tem o que falar, ele sabe que isso não é verdade… Isso nunca ia acontecer, os dois não bebiam, nunca brigavam, eles eram como se fossem irmãos de um pai e uma mãe só. Essa fala do governador é só pra defender o fazendeiro, no meu entender, porque ele nunca é a favor dos índios. (…)
Aqui em Pirajuí tem muita gente, são quase 4 mil pessoas, é muita gente, muitas casas, quase não tem mais espaço pra gente. A gente hoje não tem nem onde trabalhar, pescar, caçar, mais nada. A gente tem que sair fora pra trabalhar, pra produzir dentro da aldeia nem tem mais como. Muita gente está buscando outra vida em outros lugares. Nem só por isso fomos pra aquela terra. Aqui vivem pessoas de outros tekoha que também estão na luta por sua terra.(…)
A gente perdeu duas vidas lá, duas pessoas, a gente não deseja isso pra ninguém. A gente até hoje não sabe bem quem são as pessoas que estavam lá naquele dia. Os Policiais Federais sabem bem quem são as pessoas. A gente sabe quem são os autores, só que até hoje eles estão soltos aí. A vida que a gente perdeu parece que não é nada, parece que não são seres humanos.”
Familiares dos mortos no Mato Grosso do Sul estarão, nesta sexta, às 19h na PUC-SP, no pátio do Museu da Cultura: Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo (SP). Haverá projeção de um vídeo e debate com lideranças indígenas.