MPF abandona júri do assassinato de cacique após Justiça negar abertura de oitivas na língua Guarani-Kaiowá

Cacique Marcos Veron
Para o MPF, se expressar em sua própria língua é um direito inalienável; Júri é suspenso, e não há ainda a designação de uma nova data

O Ministério Público Federal abandonou o júri do assassinato do cacique Marcos Veron após declarar-se categoricamente contra a decisão da juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que impugnou, a pedido da defesa dos réus, o tradutor que havia sido designado para atuar na sessão. Hoje seriam ouvidas outras vítimas do ataque de funcionários da Fazenda Brasília do Sul, em Juti, Mato Grosso do Sul, a um grupo de indígenas que ocupavam o local. O ataque, ocorrido em 2003, resultou na morte do cacique, espancado até a morte.

A maioria das vítimas e testemunhas de acusação designadas são indígenas da etnia Guarani-Kaiowá e, segundo o MPF, desejavam expressar-se na língua guarani. Após o indeferimento do tradutor, iniciou-se longo debate entre defesa e acusação e a presidente do júri. O MPF vai recorrer ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região para que os índios envolvidos no processo possam se expressar em sua própria língua.

O MPF e a assistência da acusação requereram que a primeira pergunta dirigida a cada vítima e testemunha fosse feita em guarani-kaiowá e que, nessa língua, perguntassem como a vítima ou a testemunha desejariam se expressar, mas a juíza indeferiu o requerimento e decidiu perguntar, em português, em que língua vítimas e testemunhas gostariam de ser ouvidos. A tradução foi deferida apenas parcialmente e só seria usada se o indígena respondesse, em português, que preferiria se expressar em guarani.

Diante da negativa da juíza, o MPF se manifestou categoricamente contrário a esta decisão e abandonou o plenário. Sem Ministério Público, responsável pela busca da verdade real, não há júri e a juíza suspendeu a sessão. O procurador da República Vladimir Aras, um dos dois membros do MPF especialmente designados pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, para atuar no caso, lamentou a decisão que foi obrigado a tomar.

“Em 17 anos de júri esta é apenas a segunda vez que abandono o plenário, mas não poderia aceitar que, justamente num júri, o direito fundamental de se expressar em sua própria língua fosse negado. Tribunal do Júri não é lugar para restrição de Direitos”, afirmou Aras logo após o cancelamento da sessão.

“É direito deste índio e de todos que estão aqui de falar o idioma Guarani”, disse o procurador. “Obviamente, falar Guarani, para eles, é mais fácil que o português, ainda mais que vários deles não tiveram educação formal bilíngue”, acrescentou.

O direito a que uma minoria étnica se expresse em sua própria língua, ainda que esta não seja a majoritária em um país, é assegurado pelo Pacto Iinternacional dos Direitos Civis e Políticos, assinado em Nova York, em 1966, e ratificado pelo Brasil. A Constituição de 1988 também garante esse direito aos indígenas. Nestes casos deve ser providenciado tradutor para o entendimento do júri e das demais partes.

O artigo 27 do Pacto de NY prevê: “Nos estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”.

O filho do cacique Marcos Veron, Ládio Veron Cavalheiro, 44 anos, que foi sequestrado, agredido e quase queimado vivo no ataque dos funcionários da Fazenda Brasília do Sul ao acampamento indígena lamentou que mais uma vez tenha sido adiado o julgamento, após sete anos à espera de uma decisão.

“Pela segunda vez, a gente se deslocou de lá para cá, esperando que esse julgamento acontecesse, mas violaram nosso direito de falarmos nossa própria língua, sendo que a Constituição nos garante esse direito. A constituição foi violada, pois a juíza não nos deixou falar nossa própria língua”, disse a vítima, uma das que seria ouvida na tarde de hoje.

CANCELADO PELA SEGUNDA VEZ – Esta é a segunda vez que o júri do caso Veron não começa de fato. Em 12 de abril, o júri não foi instalado a pedido da defesa, que juntou um atestado médico informando que o advogado dos réus, Josephino Ujakow, necessitava se afastar do trabalho. Ontem, o júri foi, enfim, instalado, sete anos após o crime, mas agora é interrompido.

Ontem (03/05), a juíza Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal de São Paulo, que preside o júri, rejeitou requisição da defesa, que queria o afastamento dos dois procuradores da República nomeados pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, para atuarem no caso em auxílio ao MPF em São Paulo: Marco Antônio Delfino de Almeida (PR-MS) e Vladimir Aras (PR-BA).

Segundo a defesa, estaria sendo violado o princípio do “promotor natural”, argumento rechaçado pela juíza. Hoje, entretanto, a Justiça aceitou um documento que estava fora dos autos e que foi apresentado pela defesa em plenário, fora do prazo legal, na interpretação do MPF. A defesa alega que o tradutor seria suspeito e a juíza o impugnou.

CASO TRANSFERIDO – O caso foi desaforado do Mato Grosso do Sul para São Paulo, a pedido do Ministério Público Federal, por dúvida quanto à isenção dos jurados locais, argumento aceito pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, devido ao notável preconceito da população e autoridades locais com os índios. Este foi o terceiro caso de desaforamento interestadual do Brasil. Os dois primeiros ocorreram no julgamento do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal. Dois de seus júris federais foram transferidos de Rio Branco (AC) para Brasília.

Deverão ser submetidos a júri popular, em data a definir, os réus Estevão Romero, Carlos Roberto dos Santos e Jorge Cristaldo Insabralde. Um quarto acusado pela morte de Veron, Nivaldo Alves Oliveira, está foragido, e o processo em relação a ele foi desmembrado e suspenso.

Os denunciados ficaram presos preventivamente por quase 4 anos e 6 meses, tendo sido soltos por meio de um habeas corpus concedido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Foi relator o ministro Gilmar Mendes, que reconheceu excesso de prazo na prisão preventiva. O MPF ofereceu ainda uma segunda denúncia no caso, em outubro de 2008, contra outras 24 pessoas envolvidas no crime.

Além de Almeida e Aras, atua na acusação o procurador da República Roberto Antonio Dassié Diana (PR-SP). A Funai foi admitida como assistente de acusação e será representada no júri pelo procurador federal Derly Fiuza.

“Há um grande preconceito contra os índios, com se houvesse um conflito entre o modo de vida indígena e o agronegócio, que é muito forte naquela região”, afirma Aras. Esse conflito se acentua, na avaliação do procurador, à medida que o agronegócio se expande e os índios intensificam a luta pelas terras que consideram como tradicionais.

O forte preconceito contra os índios no Mato Grosso do Sul pode ser medido por críticas aos indígenas, proferidas pela Assembléia Legislativa do Estado, apenas dois meses após a morte de Veron. Os deputados criticaram o fato de os índios terem enterrado o líder na própria área ocupada, o que ocorreu sob o amparo de uma decisão da Justiça Federal proferida em resposta a uma Ação Civil Pública do MPF e, por esse motivo, a instituição também foi criticada por “apoiar indistintamente as invasões de terras privadas”.

ACUSAÇÕES – Além do homicídio duplamente qualificado pelo motivo torpe e meio cruel (o cacique foi morto a golpes na cabeça), o MPF e a Funai sustentarão a ocorrência de um crime de tortura, seis tentativas qualificadas de homicídio, seis crimes de sequestro, fraude processual e formação de quadrilha.

O processo começou na Justiça Federal de Dourados (MS) e foi conduzido desde o início pelos procuradores da República Charles Stevan da Mota Pessoa e Ramiro Rockenbach da Silva.

A Justiça Federal foi firmada competente com base nos artigos 109 e 231, da Constituição, pois o crime ocorreu em virtude de disputa sobre direitos indígenas, uma vez que o grupo de Veron reivindicava a anexação da área da fazenda à terra indígena, processo que estava sob a competência da Funai, órgão ao qual compete demarcar a terra indígena, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

A acusação do MPF foi recebida pelo juiz federal Odilon de Oliveira, que determinou que os réus fossem submetidos à júri popular. Com a transferência do júri para São Paulo, passa a presidí-lo a juíza Paula Mantovani Avelino. A investigação policial foi realizada pelo DPF João Carlos Girotto, que foi arrolado como testemunha do MPF para o plenário. Outras onze pessoas seriam ouvidas nos próximos dias como testemunhas da acusação, entre as quais sete vítimas do ataque.

Informe da Procuradoria da República no Estado de S. Paulo, publicado pelo EcoDebate, 05/05/2010

http://www.ecodebate.com.br/2010/05/05/mpf-abandona-juri-do-assassinato-de-cacique-apos-justica-negar-abertura-de-oitivas-na-lingua-guarani-kaiowa/

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