Política no meio da rua

 

Foliões exigem o direito de ocupar as ruas de BH

João Paulo

Hoje, sábado de carnaval, não é dia de ler artigos de jornal. O impulso de alegria leva as pessoas, saudavelmente, para as ruas. No entanto, em nome desse mesmo espírito “rueiro”, é importante não deixar passar sem o mínimo de atenção as recentes medidas que visam desocupar praças e ruas em nome da preservação do patrimônio público de Belo Horizonte.

Mais uma vez, o espírito de classe (ou de casta) traduziu a inépcia pública em ordenar os espaços em proibição geral. Em vez de consertar o erro, eterniza-se o equívoco maior. Há uma operação higienista em movimento na cidade, que atende sempre a interesses particulares em detrimento da circulação pública nas ruas e praças. São Paulo criminaliza usuários de crack, BH vai além: tacha os foliões como desordeiros em potencial.

O tropismo preconceituoso empurra tudo o que é popular para a periferia, ao mesmo tempo que tenta tirar do Centro qualquer movimento de ocupação legítima da cidade. Foi assim com a retirada dos desfiles de escolas de samba da Afonso Pena, com os eventos na Praça da Estação e, por fim, com o Duelo de MCs na região do viaduto de Santa Tereza.

Os eventos ocorridos na Praça da Liberdade, que danificaram o espaço no começo da semana, não foram obra do carnaval ou da boa música, mas dos burocratas que liberaram autorização para um show além das condições de realização do local. Todo mundo sabe que o Monobloco leva muita gente a suas apresentações, sempre na casa da dezena de milhares. Ao autorizar o evento, incorreram em erro de avaliação e incompetência para o exercício da função de curadores do espaço público.

No entanto, pior que a incúria é a tradução ideológica do caso em atitudes radicais de proibição. Há tempos a cidade convive com duas lógicas. Algumas regiões são consideradas públicas, outras protegidas em favor de interesses de grupos de pressão (entenda-se, os ricos ou os que acham que o são).

Assim, não se realizam grandes encontros populares na Praça do Papa, por exemplo. O local, que ganhou seu nome em razão de um evento religioso, da Igreja Católica, impede que outras religiões usem o espaço com o mesmo fim de louvar seus deuses. Há hierarquia de classe até no céu.

A divisão gerou duas ordens de legislação: uma disciplinar, outra proibitiva. Na primeira coluna estariam as normas relativas ao número de pessoas, uso de patrimônio público, horários e porte do evento. Determinadas as condições, cabe ao poder público autorizar com as condicionantes necessárias em termos de segurança, higiene e garantia de tranquilidade dos moradores. É assim em todo o mundo.

A segunda coluna de ordenação é nitidamente antidemocrática: ela proíbe. Que a regulamentação esteja nas regiões desprestigiadas e a proibição no coração da classe média mais tradicional não é mera coincidência. Em teoria política, quando uma afirmação se dá por verdadeira mesmo sem fundamento – ou exatamente por causa da ausência de sustentação –, estamos no terreno da ideologia. Proibir a alegria em nome da paz social é operação ideológica. A tristeza é sempre de direita.

O que ocorreu na Praça da Liberdade foi um exemplo de alargamento ideológico do círculo de segurança que tem afastado as pessoas dos espaços públicos. A Liberdade deixou de ser um nome real e afirmativo para se tornar marca negativa: uma região livre de movimentação. Em vez de melhorar a regulação – a função do poder público –, substitui-se a regra pela busca da ausência de fricção. Sem ter o que julgar, o agente público não vai errar nunca: a competência fica garantida pela inação e fuga ao conflito.

Mesma lógica

Distinguir padrões de ação é uma atitude antidemocrática. O governo republicano se orienta por balizas universais. Quando se estabelecem regras que atingem apenas parte da sociedade, mais que reforçar a ordem de interesses, perde-se em substância política. Na verdade, o difícil equilíbrio se dá entre democracia e República. A democracia aponta para a participação popular, de preferência direta, o que destaca o polo do conflito. A República tem como baliza determinações de valor universal, o que sublinha a necessidade de consenso. Um lado limita o outro.

Assim como ocorre na questão da utilização dos espaços públicos da cidade (em que a democracia é suplantada pelo consenso artificial da norma que serve para proteger interesses da minoria), muitos setores das políticas públicas parecem seguir a mesma lógica. Demandas populares são interpretadas como regressivas, pois confrontam normas de mercado julgadas universais. O desvio, que é nitidamente político, se torna ético.

Isso se vê, por exemplo, no setor de saúde. Somos pródigos em elogiar sistemas funcionais, como o inglês e o canadense, que funcionam na perspectiva da socialização. No entanto, mesmo com a legislação avançada em termos de direito, solapa-se a base do Sistema Único de Saúde (SUS), acusando-o sempre por erros que não são dele, mas da ausência de financiamento. Nessa hora, parece sempre sensato dizer que não falta dinheiro, mas gestão. Não é verdade. O Brasil investe pouco em saúde (menos que países como os EUA, que só têm saúde pública para velhos e pobres) e criou mecanismos de valorização da medicina privada. O SUS ficou refém das corporações, da medicina privada, dos lobbies e do modelo individualizado e intensivo em termos tecnológicos.

Na educação a situação é a mesma. Há consenso de que educar é o melhor investimento possível, mas ao mesmo tempo se sucateia a escola pública, em termos materiais e humanos. Greves são tratadas com descaso e ganham resposta dos governos na forma de publicidade, não de negociação. O mesmo contexto que é denunciado por sua carência se torna motivo de publicidade em razão de seus resultados no jogo do mercado educacional. A lógica da educação é submetida ao cenário da competição e do sucesso em provas e testes, que servem mais para valorizar a iniciativa privada que para medir e avaliar nosso estágio de civilização. A cada ano, comemora-se o primeiro colocado no vestibular (concurso nitidamente excludente) enquanto se desvaloriza o Enem (que é potencialmente inclusivo). A mesma raiva parece penetrar em todas as tentativas de fazer da regulação pública, a partir de ações afirmativas, um elemento que enfrente a falsa meritocracia. As chamadas “boas escolas”, em nome de resultados competitivos, traem o princípio pedagógico e selecionam alunos de acordo com seus repertórios prévios (mais de classe que de competência, de acordo com as pesquisas mais sérias do setor). Uma síndrome de Pigmalião.

Na área da reforma agrária, a mesma lógica esquizofrênica é sacada de tempos em tempos. Chamamos os movimentos políticos internacionais de ocupações, mas demonizamos os nossos como invasões. Um país que tem dívida secular com a reforma agrária, em vez de avançar para seus resultados políticos e econômicos, prefere criminalizar, a partir de desvios (muitos deles por incúria dos responsáveis pela condução e fiscalização dos processos), os agricultores que recebem título de propriedade depois de mobilização tão ou mais heroica que a dos moços dos EUA, do Magreb ou da Grécia. O que é realmente novo, ecológico e democrático (produção de alimentos, agricultura familiar e uso de tecnologias sustentáveis) fica em segundo plano – quando não desprezado – em favor da produção de grãos para exportação, expulsão do homem do campo, desmatamento criminoso e uso de venenos e insumos poluentes.

Está na hora de republicanizar a República (definir valores realmente universais) e democratizar a democracia (criar espaços de participação popular direta que não se esgotem nas eleições).

O carnaval pode ser uma boa forma de começar essa história. Afinal de contas, assim como a folia, a República e a democracia nasceram no olho da rua. Sem pedir alvará.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/02/18/interna_pensar,25111/politica-no-meio-da-rua.shtml. Enviada por José Carlos.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.