Marcello Castilho Avellar
Luz, em São Paulo; Pelourinho, Salvador; Lapa, Rio de Janeiro; Praça da Estação e Praça Sete, Belo Horizonte. O que todas essas áreas têm em comum? Um processo de abandono pelas elites, apropriação pelas classes populares e tentativa de retomada pelas primeiras. Todas foram, em algum momento da história, importantes na vida social e comercial das cidades que integram. Depois, com a expansão urbana, os residentes mais ricos as abandonaram, e o comércio voltado para eles seguiu atrás.
Só que, ao contrário do que insinuam projetos batizados de “revitalização” ou “requalificação”, tais bairros não “morreram”: sua degradação foi física, provocada, acima de tudo, pelo descaso do poder público, que tradicionalmente no Brasil investe apenas onde o dinheiro graúdo circula (vide a reforma longa, mal planejada e desnecessária na Savassi). Do ponto de vista social, a tal “desqualificação”, ela está apenas no olhar pejorativo com que nossas elites frequentemente veem as classes baixas – as mesmas que impediram o vácuo naquelas regiões, elegendo-as seu espaço de socialização e lazer.
Chegamos, então, à tentativa de retomada. Com a evasão dos ricos, o preço dos imóveis naquelas áreas despenca. Elas se tornam, a partir daí, promessa de bom negócio. Adquiri-las a preços aviltantes, “requalificá-las” ou “revitalizá-las” (para usar os preconceituosos jargões vigentes) e depois revendê-las por novo preço (adequado à faxina representada pela tal “requalificação”) ou nelas reinstalar o comércio de primeira linha se tornam possibilidades de lucro.
Há, contudo, duas questões a serem resolvidas. A primeira vem do fato de que o capital, historicamente, foi-se tornando cada vez mais avesso ao risco: ninguém quer investir em algo que, claro, pode não dar certo. É questão simples: basta convencer o poder público a arcar com os custos, diretamente, por meio de projetos de reurbanização, ou indiretamente, pelo apoio à iniciativa privada. A segunda questão é a mais complicada: o que fazer com o “povinho” que frequenta o lugar, já que sua função, de manter aquele espaço ocupado e funcional, terá terminado, e as elites sentem urticária quando precisam se misturar – ou seja, se as classes baixas não forem expulsas do espaço, os cidadãos mais ricos não vão viver ou adquirir bens ou serviços nele.
Outros muros – Só que vivemos tempos politicamente corretos. Nada que evoque preconceito pode ser utilizado como argumento para alguma intervenção de força. O fantasma da luta de classes ainda paira sobre nossas cabeças, apesar da queda do Muro de Berlim há décadas. Para expulsar as classes pobres, então, é preciso um bom pretexto, que tenha cheiro de interesse público. “Estamos expulsando vocês, mas isso não é luta de classes, mas ação pelo bem comum”, é o que tentam dizer o poder público e o capital. “Estamos fazendo isso para incrementar o turismo, por exemplo, e isso vai dar emprego a vocês” – este foi, por exemplo, o discurso que norteou a reforma do Pelourinho levando em conta apenas as necessidades dos negócios, e não a da população local, “convencida” a sair do lugar pela elevação do preço dos aluguéis ou, frequentemente, pelo assédio policial. Sintomaticamente, a reforma termina abruptamente, às vezes no meio de um quarteirão – se tal área é desnecessária para a implantação do “parque temático” que atenderá aos interesses econômicos, ela não é prioridade para a restauração, e pode continuar caindo aos pedaços.
Outro argumento frequentemente invocado é a segurança pública. Na Luz, por exemplo, vemos poder público e empresariado brandindo sem pudor o discurso do combate às drogas e ignorando por completo os interesses da população trabalhadora que ali vive e construiu seus laços. A Luz, aliás, é exemplo bem acabado da fronteira borrada entre interesse público e privado, com o poder público tentando conceder à iniciativa privada, para uso generalizado, até mesmo prerrogativas que o Estado só deveria usar com parcimônia – como a capacidade de desapropriar imóveis.
Convivência – Aqui em Belo Horizonte, encontramos a mesma conversa na tentativa de desalojar o Duelo de MCs de seu espaço tradicional, sob o Viaduto de Santa Tereza: o poder público não fala em solucionar problemas de segurança com o evento cultural lá, apenas em removê-lo. É sintomático que ele ocorra ao lado de um dos espaços mais sofisticados (e, portanto, com potencial para negócios) do Centro de BH, a Serraria Souza Pinto. Como, em tempos recentes, a tentativa de eliminar eventos culturais (e suas multidões) na Praça da Estação foi vista como algo essencial para que outro desses espaços pudesse alcançar seu crescimento pleno, o Museu de Artes e Ofícios.
Ironicamente, há boas demonstrações de como reurbanizações podem ser levadas a cabo sem a expulsão dos ocupantes das classes mais baixas. No Rio, a nova Lapa é bom exemplo de como um projeto de restauração que respeite todos os interesses envolvidos conduz à convivência entre a Zona Sul rica e seus interesses em turismo e entretenimento, e a população que ocupava o território em seus momentos de desprestígio. Em BH, temos a Praça Sete: bem-aventurados sejam os arquitetos que, ao planejar seus quarteirões fechados, construíram nichos que abrigam, hoje, uma infinidade de tribos em convivência rara, talvez até mesmo impossível em outras cidades. No processo, a praça se tornou também, pelo encontro entre públicos bem distintos, espaço privilegiado para manifestações culturais, de artistas autônomos, como os que fazem estátuas vivas ou músicos ambulantes, a grupos como o Hibridus, de Ipatinga, que recentemente realizou ali sua intervenção Travessia.
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2011/10/22/interna_pensar,11106/elite-tem-alergia-de-gente.shtml
Enviada por José Carlos.