Para continuar avançando, rumo a posição independente, Brasil precisará enfrentar grande ameaça: a guinada conservadora dos EUA, cada vez mais agressivos, fundamentalistas e provocadores
Por José Luis Fiori – Outras Palavras
“A subida da ladeira exige poder, capacidade de inovação e grande mobilidade
e inciativa política, a serviço de uma estratégia de movimento e de enfrentamento global
das transformações que estão em curso no mundo,
e cujo futuro está inteiramente aberto e indeterminado”
J.L. Fiori, “ A subida da ladeira”, Outras Palavras, 27 de agosto de 2014
Para calcular o futuro imediato do Brasil, dentro do sistema internacional, é bom partir de um dado de realidade: o avanço da radicalização ultraconservadora da sociedade e do establishment norte-americano. Um movimento profundo, quase telúrico, cada vez mais religioso, fanático e agressivo, dentro da sociedade, mas com uma repercussão cada vez mais messiânica e intervencionista, no campo da política exterior dos EUA. Como se fosse um tisunami que avança em ondas sucessivas, cada vez maiores, desde o início da década de 80, com a vitória do projeto de “restauração conservadora” de Ronald Reagan (1982-89), e com sua cruzada anticomunista contra o “império do mal”.
Em seguida, depois da queda do Muro de Berlim e do fim da Guerra Fria, o governo republicano de George H.W. Bush (1989-93) reformulou a estratégia conservadora, propondo o projeto do novo “século americano”, junto com a defesa do bloqueio, ou destruição preventiva, de novas potencias que ameaçassem o unilateralismo dos EUA. Durante a década de 90, o governo democrata de Bill Clinton (1993-2001) reformulou e empacotou esta mesma estratégia com a ideologia da universalização da democracia, do mercado e da ética “ocidental”. E foi em nome desta ideologia que Bill Clinton promoveu a ocupação militar da Europa do Leste, pela OTAN, e mais 48 intervenções militares ao redor do mundo1.
Mas não há dúvida que os atentados de 11/09 de 2001 provocaram um salto qualitativo nesta trajetória, durante o novo governo republicano, de George W. Bush (2001-09). Hoje existem muitos especialistas militares, dentro e fora dos EUA, que consideram que os atentados de 2001 foram um típico inside job, concebido e pilotado pelo que eles chamam de Deep State norte-americano2. Mas seja lá como tenha sido feito, suas consequências foram definitivas, dentro e fora dos EUA: colocaram o núcleo duro do ultraconservadorismo no comando da política externa norte-americana, sob a liderança de Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz; e traçaram uma nova fronteira entre o “mundo do bem” e o “eixo do mal”, iniciando 14 anos de guerra contínua dentro do Grande Oriente Médio, com a demonização progressiva do mundo islâmico, junto da opinião publica ocidental.
Mais recentemente, a volta dos democratas ao governo, com Barack Obama, em 2009, não alterou o rumo das coisas, porque seus projetos pessoais de um “multilateralismo atenuado”, com aproximação da Rússia e a pacificação negociada da Palestina, foram atropelados de dentro de sua própria administração democrata. Pelos mesmos setores que promoveram a rebelião tutelada da Praça Maiden, e se utilizaram do “atentado aéreo” da Ucrânia, para consolidar a fronteira geopolítica e militar que volta a separar a Europa da Rússia Ortodoxa. Ao mesmo tempo em que transformavam o sudeste asiático na região mais militarizada do mundo, à sombra da nova “fronteira chinesa”, anunciada por Hillary Clinton, na condição de chefe do Departamento de Estado do governo Obama.
Resumindo: nestes últimos 24 anos, o projeto da “globalização americana” foi ficando cada vez mais conservador, agressivo e intervencionista, e apesar disto, o “multilateralismo” se robusteceu com a expansão econômica e militar de algumas velhas potências regionais, como Alemanha e Rússia, e de algumas novas potências, ainda mais complicadas, por serem também “polos civilizacionais” — como é o caso da China, Índia e Irã — com seus próprios “sistema de verdade”, e sua visão ética autônoma do individuo, da sociedade e do mundo.
Agora bem, por quê e quando o Brasil entrou nesta história, e nesta “linha de tiro”? Do nosso ponto de vista, graças a três decisões cruciais da sua politica externa:
- quando o Brasil decidiu ampliar e transformar um projeto convencional de integração econômica (o Mercosul) num bloco politico sob sua liderança, com o objetivo de impedir toda e qualquer intervenção externa na América do Sul. Alcançando pleno sucesso, ao bloquear a tentativa da OEA envolver-se na crise política da Venezuela, no primeiro semestre de 2014;
- quando o Brasil decidiu se aliar à China, Índia e Rússia, para transformar um mero “acrônimo mercantil” (BRICS), no principal bloco de poder internacional que se opõe hoje ao projeto unilateralista da “globalização americana”. Sobretudo, depois VI Cúpula BRICS de Fortaleza, quando o Brasil promoveu o encontro e a convergência de agendas, dos países da Unasul com os governantes da China, Rússia e Índia;
- e, finalmente, quando o Brasil decidiu abandonar sua tradicional “zona de conforto” diplomático no Oriente Médio, separando-se e se opondo ao eixo estratégico EUA-Israel, ao condenar veementemente a ofensiva militar israelense na Faixa de Gaza, de agosto/setembro de 2014.
Salvo engano, foi esta mudança qualitativa da política externa brasileira que provocou a intensificação e a radicalização dos ataques conservadores externos, e sua tentativa de intervenção direta ou indireta nas últimas eleições presidenciais do mês de outubro. Mas não há que enganar-se: a ofensiva não vai parar, e deve aumentar ainda mais, depois que os ultraconservadores — democratas e republicanos — se desfaçam de Barack Obama.
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1 Bacevich, A. (2003), American Empire, Harvard University Press, Cambridge.
2 Chauprade, A. (2013), Chronique du Choc des Civilizations, Chronique Éditions, Paris