A polícia não está em guerra com seu povo. Ao menos, não deveria, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Quando alguns amigos me contam, com a indignação à flor da pele, sobre experiências de blitz em que são parados em nome do bafômetro, penso comigo mesmo o que aconteceria caso sofressem os esculachos que alguns conhecidos lá do Pirajussara sofreram.

Não, não me entendam, mal. Não estava desejando o mal a ninguém, apenas percebendo que se o centro entendesse de verdade o que acontece na periferia, talvez a vida seria diferente.

Ou talvez não.

Quando nós, da “elite branca”, somos vítima de violência durante uma abordagem policial em bairros nobres, a repercussão é muito diferente daquela que ocorre por conta de mortes em locais pobres.

Já disse várias vezes e repito: ao contrário de outros países, o Brasil não consegue tratar suas feridas deixadas após a ditadura para que cicatrizem. Apenas as tapam com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixa claro aos seus quadros que usar da violência, torturar e matar não são coisas aceitáveis. E com a anuência da Justiça que, através do seu silêncio, manteve aqueles crimes impunes.

Nossa política para tratar dos abusos durante a ditadura prevê compensações financeiras para quem sofreu nas mãos do Estado. Afinal de contas, por aqui, paga-se e não se fala mais nisso. Para que remexer o passado, né?

Nada sobre rediscutir a filosofia e a natureza da corporação. Pois o problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel, os métodos e o caráter militar da polícia em nossa sociedade. Setores da corporação estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias. Pagamos salários ridículos e exigimos que se sacrifiquem em nome do nosso patrimônio.

Isso inclui um processo de desmilitarização da polícia. As Forças Armadas são formadas para a guerra. Em última instância, militares são treinados para matar. A polícia, por outro lado, não está em guerra com seu próprio povo. Ao menos, não deveria.

Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo “em guerra” contra a violência – como se isso não fosse, em si, um contrasenso. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: “se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”.

E se não se importam com inocentes, imagine então com quem, posteriormente, é considerado culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante.

Enfim, mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com o terror como principal ferramenta de ação policial.

Como também já disse aqui, a polícia é um instrumento. Nosso instrumento. Que reluz diante de nossa ignorância, refletindo quem somos de verdade. Uma sociedade com uma elite para a qual os domínios fora do castelo são terra de ninguém. O que acontece lá, fica por lá, desde que a nossa segurança esteja garantida.

Afinal de contas, na maior parte das vezes os que morrem são pretos e pobres, inocentes, culpados, moradores, policiais.

 

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