Em Taqui Pra Ti
Maria morava há mais de 13 anos no “Alagadinho”, Cacau Pirêra, distrito do município de Iranduba (AM). Saiu de lá, onde vivia submersa durante a cheia, para realizar “o sonho de moradia” em área de propriedade do Estado. Fez roça no quintal. Plantou macaxeira, abacaxi, pimenta de cheiro e plantas medicinais. Acontece que a área foi grilada por particulares. E na quarta-feira (25), o trator, protegido pelas botas da polícia, entrou lá, esmagou plantinhas, esperanças, sonhos. Destruiu tudo.Só deixou lágrimas, fome e Maria, sem casa, sem roça, sem ter o que dar de comer aos filhos.
– “Vocês tem arco e flecha; a gente tem é bala”. Esse foi o “argumento” que um policial militar disparou contra uma índia Kokama, durante a operação dizque “pacífica”, iniciada na segunda-feira (23), para impedir o acesso a uma área ocupada por indígenas e não-indígenas, na rodovia Manoel Urbano (AM-070), região metropolitana de Manaus. Usou a “lógica” colonial do Raposo Tavares, Borba Gato e outros bandeirantes.
A violência da polícia contra os “invasores” foi ocultada e silenciada a exemplo do que ocorreu com os bandeirantes. As agressões físicas e os palavrões com os quais os policiais intimidavam até as mulheres e as crianças – nada disso emergiu nos relatos. As notícias, como regra geral, registraram uma “operação pacífica” de reintegração de posse da terra, com atuação “exemplar” do Estado que colocava um ponto final na “indústria da invasão”. O importante era que os “supostos índios” saíssem de lá.
“Supostos índios”
A versão dos “escrivães da frota” só foi contestada porque uma equipe de pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA), documentou tudo, entre eles a antropóloga Márcia Meneghini, que realizou trabalho de campo durante os três meses de “invasão”.
– Nesse período – escreve Márcia – descobrimos que não se tratava de uma “invasão”, mas de um ato de mobilização coletiva em torno da legítima reivindicação da posse de terra numa área de propriedade do Estado “supostamente” grilada por particulares. Esse ato de mobilização é chamado de “ocupação” pelas pessoas que dela participam. Nesse sentido, ela é vivida e representada como algo que lhes pertence: a terra. Recebe o nome de “Comunidade Deus é por nós”.
A extensão e localização da área variam conforme quem divulga: Km 5 ou Km 6? Quantos são: 10 mil ou 18 mil? O que se sabe é que entre eles há centenas de índios, mas até isso os zeguedegues cretinos questionam com indagações sobre se os “invasores” tem RANI (Registro Administrativo de Nascimento Indígena), se usam cocar, tanga, arco, flecha. Em caso contrário, concluem que não são ‘índios de verdade’, são ‘civilizados’, ‘aculturados’ e portanto – incrível! – sem direito à terra. Surge na imprensa nova categoria ignorada por antropólogos – o “suposto índio”.
Mas afinal o que seria esse “suposto índio”, que nunca é ouvido? É uma categoria criada para esconder um problema antigo – a distribuição de terra na região metropolitana de Manaus. Ela designa índios que migraram para Manaus. São Kokama, Kambeba, Paumari, Mura, Arara, Tukano, Tuyuka, Sateré-Mawé, Macuxi, Tariano, Piratapuia, Carapana – distribuídos em 1.040 famílias – segundo informaram os índios a Márcia Meneghini, que acompanhou neste sábado (28) a operação de reintegração de posse, quando a FUNAI ainda negociava a permanência dos indígenas na área.
Nem o juiz, nem a Polícia e nem a mídia ouviram os pesquisadores da Nova Cartografia Social da Amazônia. Se fizessem a consulta, saberiam que as manifestações surgem porque uma apropriação desigual da terra vem definindo a configuração da cidade. Manaus tem sua história marcada pela prática do Estado de conceder terras a particulares para benefício de grupos do poder. Mas quando grupos étnicos se mobilizam, para juntos reivindicarem a posse comum de terra do Estado, são rapidamente taxados de “supostos índios” com o objetivo de desqualificá-los.
Sabá Kokama
– “Cuidado com os índios. Não se aproxime deles. Eles podem te prender como refém. Vá até onde está a polícia”. Este foi o conselho que um policial deu à antropóloga Márcia Meneghini, quando ela perguntou se poderia entrar na área. Saíam os “invasores” e entravam mais de 400 policiais. Um helicóptero, com um homem armado, sobrevoava o local. O policial não podia imaginar que aquela mulher branca, alta, magrela, de mochila e tênis, estava com medo dele – da polícia – e não dos índios.
Márcia cortou caminho pelo mato, longe da vista do policial, para entrar no lado dos “invasores”, dos “perigosos”. Fugiu da barricada policial. Foi encontrar com um dos líderes do movimento, Sebastião Castilho Gomes, mais conhecido como Sabá Kokama ou Sabá. Ele nasceu em Sapotal, Tabatinga, no Alto Solimões (AM). Começou no movimento indígena lutando com os Tikuna pela demarcação das terras indígenas Éware I e Éware II em Tabatinga. Já trabalhou na FUNAI e foi vice-presidente da União dos Povos Indígenas de Manaus (UPIM).
A atuação de Sebastião Kokama incomoda, porque chama a atenção do poder público para a problemática de moradia, saúde, educação, não apenas de indígenas, mas também de não indígenas, que vivem nas periferias da cidade. Em 2011, ele participou do “Movimento indígena por uma vida melhor”, conseguindo moradia para muitos índios. Hoje, o Parque das Nações Indígenas, no Tarumã, na zona oeste da cidade, é resultado dessa luta. “Falar numa “indústria da invasão” por “supostos índios” e “invasores” é camuflar o problema da terra” – diz a antropóloga.
Acusar os “invasores” de crime de degradação ambiental é outra forma de mudar o foco das discussões. O terreno reivindicado é extenso e abrange um grande areal. Na parte baixa, há igarapés entre as árvores da floresta. Sebastião Kokama comentou com a antropóloga que a floresta em questão não é nativa: “Quando chegamos era capoeira. Ali quem tirou foi o próprio governo para botar terra para ali [obra da Ponte Rio Negro]. Quem tirou as madeiras daqui não foram os índios, não. Foram as olarias e os empresários. Vocês já viram índio com caçamba aqui dentro?”.
A polícia não quer conversa, usa a porrada como argumento. Casos de violência física foram relatados aos pesquisadores. O objetivo é isolar a área, quem está fora não entra. Um Tuyuka, de 16 anos, mostrou as marcas no corpo da agressão sofrida quando retornava com água e mantimentos ao local na manhã de segunda-feira (23). “Me algemaram e me jogaram dentro do camburão. O policial me trancou com ele sozinho na sala e disse: ‘agora nós vamos conversar’. Puxou o cassetete dele. O delegado [de Iranduba] chegou. [Eles] me seguraram e me deram um murro”, disse o menor.
O rapaz também contou que foi ameaçado. “Eu me senti ameaçado, por [ele] dizer que ia descarregar uma pistola na minha cara”. Em seguida, segundo o menor, uma equipe do Conselho Tutelar apareceu e impediu que a violência continuasse. “Começaram a me dar guaraná, café, bolacha pra comer. Aí queriam me dar um monte de recurso: bolsa-escola, bolsa-família, minha casa-minha vida. Eu falei que não queria nenhuma dessas coisas. Falei que eu queria o meu direito. Que eles não podiam ter me batido. Não estava fazendo nada”.
Casas foram destruídas por tratores. Sem poder entrar, as pessoas se aglomeravam do lado de fora, relatando a violência da polícia. “Uma jovem, aqui, foi apoiar sua mãe, e um policial do Iranduba bateu nela. Todo mundo viu, agora ninguém pode falar nada, porque, se falar, ele volta de tarde e bate na pessoa”, afirmou J.W, cuja casa e objetos pessoais foram destruídos. “Estão quebrando tudo. Minhas coisas lá dentro estão quebradas. Dá até vontade de chorar. Já pensou um homem de 51 anos chorando? Mas é triste. A gente não tem onde morar”, continuou.
O Kokama, D.C., 20 anos, conseguiu fugir depois de ter sido agredido e algemado, quando tentava retirar seus pertences de sua casa. Levou um tapa na cara. “No descuido deles, eu puxei meu braço e sai correndo. Pulei a cerca e eles correndo atrás de mim. Só não me pegaram por causa do resto dos guerreiros que fecharam a rua para eles não passar”, explicou.
A guerra de Iranduba acontece no momento em que a bancada ruralista no Congresso Nacional lança poderosa ofensiva para anular os direitos dos índios e quilombolas garantidos pela Constituição Federal que comemora, agora, em outubro, 25 anos de vigência. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil está convocando, entre 30 de setembro e 5 de outubro, uma mobilização nacional em defesa dos direitos dos índios.
No sábado (28) à tarde, Michelle Kokama informou que a operação de retirada de índios e não índios havia terminado. É uma vergonha para o Amazonas, o maior Estado do Brasil, a polícia dar porrada em quem busca um lugar para morar. Os amazonenses deviam fazer como os cariocas fizeram com o Sérgio Cabral: infernizar a vida do Omar Aziz. Cadê o José Ricaro Wendling e o Marcelo Ramos que estão sempre sintonizados com os interesses populares?