No Equador, comunidade Sarayaku resiste a investida de petroleira e é exemplo de luta indígena pela Amazônia

Povo quíchua expulsou empresa argentina e conseguiu vitória na Corte Interamericana de Direitos Humanos; governo equatoriano foi obrigado a pedir desculpas e a obter consentimento dos indígenas para qualquer ação no território

Por David Goodman, em Opera Mundi

Patricia Gualinga permanece serena enquanto o caos se instaura ao seu redor. Com o rosto pintado com tintas vermelha e preta, ela estava na dianteira da Marcha Popular pelo Clima, em Nova York, no dia 21 de setembro de 2014. Atrás dela, 400 mil pessoas ocupavam as ruas exigindo uma ação global contra as mudanças climáticas.

“Nossos ancestrais e líderes espirituais têm falado sobre as mudanças climáticas há muito tempo”, conta ela em espanhol, em meio a todo o barulho, enquanto os fotógrafos se aglomeram ao redor de Leonardo DiCaprio, Sting e Mark Ruffalo, celebridades que lideraram a histórica marcha ao lado de um grupo de líderes indígenas. “Na verdade, estamos falando a mesma língua agora”.

Patricia veio de Sarayaku, uma comunidade nas profundezas da floresta amazônica do Equador. Um ano antes, eu viajei para sua aldeia em busca da história de uma comunidade de 1.200 quíchuas que conseguiram expulsar a indústria do petróleo e uma tentativa do governo de explorar suas terras.

Este não é o tipo de notícia mais ouvido a respeito do Equador. As manchetes têm se focado na parte norte do Equador, onde a Chevron está se defendendo de um processo de 9,5 bilhões de dólares por despejar milhões de litros de dejetos industriais e por envenenar milhares de pessoas.

Sarayaku fica no norte do Equador, onde o governo está vendendo os direitos de exploração de petróleo em uma vasta área de terras indígenas – com exceção da aldeia de Sarayaku. A comunidade se tornou um foco de esperança para outros grupos indígenas e para ambientalistas por ter conseguido interromper uma nova rodada de exploração petrolífera.

Esta não é apenas uma comunidade que defende seu território. Seu estilo de vida, profundamente ligado à natureza, apresenta uma alternativa para que nós humanos nos salvemos do aquecimento global e da extinção. Eles estão lutando e propondo uma visão anticapitalista chamada “sumak kawsay” – cujo significado em quíchua é “viver bem” –, que propõe uma vida em harmonia com o mundo natural e insiste na ideia de que a natureza tem direitos dignos de serem protegidos.

Ingenuamente românticos? Pode até parecer; no entanto, em 2008, a constituição equatoriana se tornou a primeira no mundo a codificar os direitos da natureza e, especificamente, o “sumak kawsay”. A constituição boliviana apresenta provisões semelhantes, e os direitos da natureza estão começando a ser absorvidos por comunidades nos Estados Unidos.

Patricia Gualinga e outros membros da comunidade de Sarayaku já viajaram para a Europa para se encontrar com líderes internacionais e alertar executivos de empresas do setor de energia sobre sua oposição à extração de petróleo em suas terras, já produziram seu próprio documentário sobre sua luta, iniciaram processos, levaram sua mensagem até grupos internacionais como a Amazon Watch e a Anistia Internacional, marcharam milhares de quilômetros em manifestações e testemunharam em julgamentos nos Estados Unidos. A resistência de Sarayaku irrita o governo equatoriano – que bizarramente, reconhece o “sumak kawsay” enquanto promove licitações disputadas para o direito de exploração petrolífera –, mas inspira comunidades indígenas de todo o mundo.

Nosso avião voa baixo sobre a densa selva. O véu da mata se abre, revelando uma pista de pouso e aglomerações de construções de palha. Isto é Sarayaku.

“A comunidade está no momento promovendo uma reunião de três dias para planejar suas ações políticas e projetos de desenvolvimento para o próximo ano. Venha comigo, acho que você vai se interessar”, diz Gerardo Gualinga, irmão de Patricia e um dos líderes da comunidade.

Dentro de uma construção oval com teto de palha, encontramos José Gualinga, outro irmão de Patricia, que na época era o líder de Sarayaku. Ele conduz uma discussão sobre como a comunidade deveria pressionar o governo equatoriano para que este cumpra com o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2012 exigiu do governo do Equador o consentimento de seus povos nativos antes de permitir a exploração de petróleo no território de Sarayaku. Após audiências na Costa Rica, o tribunal ordenou ao governo que se desculpasse e pagasse a Sarayaku 1,25 milhão de dólares, além dos custos processuais.

Mario Santi, líder de Sarayaku até 2008, explica a história do conflito no local.

No início dos anos 90, “o governo permitiu que as empresas petrolíferas explorassem nosso território. Não fomos consultados. Muitas comunidades acabaram se vendendo às empresas. Sarayaku foi o único povoado que não vendeu seus direitos às companhias”.

O governo do Equador ignorou a recusa da comunidade em vender seus direitos de exploração petrolífera e assinou um contrato em 1996 com a empresa argentina C.G.C., autorizando a exploração da região de Sarayaku. Em 2003, funcionários da C.G.C. – operários e seguranças – e soldados equatorianos chegaram de helicóptero para instalar explosivos e criar poços.

Sarayaku se mobilizou. “Paramos as atividades nas escolas e no trabalho e nos dedicamos exclusivamente ao conflito durante seis meses”, diz Santi. Enquanto os funcionários da empresa derrubavam uma ampla área verde que era usada pelos nativos como fazenda coletiva, os cidadãos de Sarayaku foram para a selva profunda e estabeleceram acampamentos de emergência, planejando a resistência.

“Durante os seis meses de conflito, houve torturas, estupros e muito sofrimento entre o nosso povo, especialmente entre as mulheres e as crianças”, lembra-se Santi. “Acabamos desenvolvendo transtornos psicológicos. Todos aqueles militares…”, ele pausa, para se recompor. “Foi um período muito, muito difícil”.

Em seus acampamentos, os líderes de Sarayaku bolaram um plano. As mulheres da comunidade prepararam uma grande quantidade de chicha, tradicional bebida alcoólica equatoriana feita de mandioca fermentada. Certa noite, um grupo delas viajou discretamente pela floresta, acobertadas por homens da aldeia. Elas chegaram até o principal acampamento dos funcionários da empresa. Ofereceram a eles a chicha que haviam preparado e observaram enquanto eles festejavam.

Quando a bebedeira acabou, os petroleiros adormeceram. Quando acordaram, estavam sob a mira de suas próprias armas automáticas. Empunhando-as estavam as mulheres e os homens de Sarayaku.

Os nativos ordenaram que a empresa deixasse suas terras. Os trabalhadores aterrorizados chamaram helicópteros e foram embora, abandonando suas armas. Nunca mais voltaram. Um general equatoriano chegou, mais tarde, e negociou com líderes da comunidade – cinco dos quais haviam sido presos e torturados – a devolução de suas armas.

Eu perguntei a Santi por que Sarayaku resistiu. “Nossos pais nos disseram que, para que as gerações futuras não sofressem, precisaríamos lutar por nosso território e por nossa liberdade. Isto para que não nos tornássemos escravos desta nova forma de colonização.”

“A cachoeira, os insetos, os animais e a selva nos dão a vida”, contou. “Porque o ser humano e a floresta têm uma relação. Para o mundo capitalista ocidental, a floresta é simplesmente um recurso a ser explorado. Nós, povos indígenas, não podemos viver sem a selva”.

Nina Gualinga (direita), ativista Sarayaku, na dianteira da Marcha Popular pelo Clima em NY, em setembro de 2014
Nina Gualinga (direita), ativista Sarayaku, na dianteira da Marcha Popular pelo Clima em NY, em setembro de 2014

Sarayaku deseja agora ajudar povos indígenas do mundo todo a resistir e defender sua forma de vida. “Estamos levando nossa mensagem à Ásia, à África, ao Brasil e outros países que atualmente discutem as mudanças climáticas, e a eles nós propomos uma forma diferente de desenvolvimento: o desenvolvimento da vida. Essa é a nossa economia para a vida – ‘sumak kawsay’ –, e ela não serve apenas para nós, mas também para o Ocidente. Não é necessário temer o aquecimento global se defendermos a vida das selvas.”

“Não é algo difícil”, diz ele. “Trata-se apenas de continuar vivendo”.

A história de Sarayaku é apenas a mais recente de uma batalha ainda em curso pelos recursos naturais do Equador. A extração de petróleo começou no norte do Equador em 1964, quando a gigante norte-americana Texaco deu início a operações de perfuração em terras indígenas (mais tarde, a Chevron comprou a Texaco).

Quando a empresa deixou a região, em 1992, ela “deixou para trás o maior desastre ambiental relacionado ao setor petrolífero do planeta”, de acordo com a Amazon Watch, uma ONG que defende os direitos dos indígenas. A região devastada e envenenada é hoje conhecida como “Chernobyl das florestas tropicais”.

Embora tenha processado a Chevron pelos danos, o governo equatoriano do presidente Rafael Correa deu início a uma nova rodada de exploração petrolífera no sul do Equador, liberando milhares de acres para a atividade. O governo foi severo com a resistência, exigindo o fechamento da sede da CONAIE, organização indígena nacional do Equador sediada em Quito, tentando impedir ativistas equatorianos opostos à exploração petrolífera de participar de um encontro da ONU no Peru e fechando a Fundação Pachamama, ONG que defende os direitos dos indígenas locais.

A maior parte do território de Sarayaku foi excluída dos novos projetos exploratórios, embora comunidades adjacentes, incluindo a do povo Sápara, estejam ameaçadas. Sarayaku participa dos protestos de seus vizinhos.

José Gualinga diz que estas lutas têm implicações maiores. “Estamos fazendo isso para impedir a emissão de carbono e o aquecimento global. A luta dos povos indígenas é o caminho para salvar a Pachamama [Mãe Terra]”.

As mulheres têm estado no centro da resistência. “Somos aquelas que se mobilizaram pela vida”, diz Patricia. Ela conta como, em 2013, 100 mulheres de diferentes grupos indígenas caminharam 250 quilômetros de suas comunidades até Quito, onde se dirigiram à Assembleia Nacional. Nos anos 90, a mãe de Patricia participou de outra marcha, semelhante, com milhares de mulheres indígenas.

Os membros da comunidade de Sarayaku viajam pelo Equador e para outros países, mas sempre retornam à sua aldeia.

“Queremos continuar a ter nossa vida na floresta”, diz Patricia. “Queremos ser respeitados e também nos tornarmos um modelo que possa ser replicado”.

Sigo Sabino Gualinga, um xamã de 70 anos, enquanto ele caminha pela mata. Ele para e aponta para uma árvore.

“A casca desta árvore ajuda a curar a gripe. Já esta aqui”, diz, apontando para um tronco acinzentado, “ajuda a conter a febre. Aquela”, aproxima-se de uma planta parecida com uma samambaia, “ajuda a curar problemas psicológicos”.

Naquela noite, os filhos de Sabino, Gerardo e José, juntaram-se a nós diante de uma fogueira para falar sobre a trajetória de Sarayaku. José, líder de 2011 a 2014, liderou a comunidade quando levaram sua luta até a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Parte do julgamento da corte exigiu que os líderes do governo equatoriano se desculpassem com o povo de Sarayaku.

Em outubro de 2014, a ministra da justiça do Equador, Ledy Zúñiga, foi até a aldeia de Sarayaku e proclamou: “Pedimos desculpas públicas pela violação de propriedade indígena, da identidade cultural e do direito à consulta, tendo colocado em sério risco as vidas e a integridade pessoal desta população, bem como pela violação do direito a garantias e proteções judiciais”, declarou.

A decisão da corte e o pedido de desculpas oficial parecem ter dado a Sarayaku uma nova garantia de proteção em relação a novas investidas exploratórias. O governo precisa agora garantir pelo menos uma aparência de consentimento, se não quiser ser novamente levado a julgamento.

“Nós mostramos que as leis podem mudar”, refletiu Gerardo. “Não vencemos apenas em nome de Sarayaku, mas em nome da América do Sul”.

Um elemento-chave na história de sucesso de Sarayaku foi o fato de terem difundido sua história. Um filme sobre a comunidade, “Filhos do Jaguar”, ganhou o prêmio de melhor documentário no National Geographic All Roads Film Festival de 2012. Sarayaku também passou a utilizar as mídias sociais. Membros da comunidade me conduziram até uma cabana de palha onde jovens diante de vários computadores atualizavam páginas do Facebook e sites por Internet via satélite.

Agora, disse José, “quando o Estado disser, ‘Sarayaku, vamos destruí-los’, teremos testemunhas no mundo inteiro. Poderemos contar a verdade às pessoas”.

“Tudo de que precisamos está aqui”, disse Gerardo, apontando a selva ao nosso redor. José se aproxima da fogueira. “Somos um povoado pequeno, mas simbolizamos a vida. Todos deveriam se unir em prol da vida humana e da Terra”.

Tradução: Henrique Mendes

Matéria original publicada na revista norte-americana YES! Magazine.

Destaque: Patricia Gualinga, uma das principais ativistas na luta dos Sarayaku contra a exploração de petróleo em suas terras

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.