Intolerância religiosa: uma herança das senzalas

Foto: AF Rodrigues, Arquivo Pessoal
Foto: AF Rodrigues, Arquivo Pessoal

Por Camille Rodrigues e Alan Miranda, em Observatório da Favela

“O meu direito termina quando o seu começa”: assim, através de um ditado popular, perpetua-se a falácia de que o direito de uns precisa ser interrompido para que o de outros se exerça, em vez de conviverem mútua e pacificamente. No Brasil, um país de culturas diferentes, a busca pelo respeito à diversidade e a tolerância tornam-se pautas cruciais à manutenção da democracia, do convívio entre as diferenças. A espiritualidade é um valor fundamental para as civilizações desde os primórdios da humanidade, desse modo, a intolerância religiosa se mostra uma pedra no caminho do desenvolvimento humano.  

Para adentrar esse debate é necessário partir da consciência de que qualquer religião está sujeita à intolerância, mas os fatores culturais e históricos de cada região determinam as crenças que são mais atacadas. No Brasil, a herança escravocrata, bem como as leis que criminalizavam os cultos afro-brasileiros contribuíram para a intolerância contra as religiões de origem africana. Segundo dados apresentados pelo Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos-CEPLIR, 63% dos casos de intolerância religiosa atingem as religiões de  matrizes africanas no Brasil. No estado do Rio de Janeiro esse percentual sobe para 93%. Esse dados demonstram o quanto o racismo está presente em nossa sociedade.

A  QUESTÃO DA VISIBILIDADE

Outro perigo, que contribui para manter o tema velado é o mito de que religião não se discute. Há um equívoco de abordagem, pois confunde-se fé e religião. A fé tem um aspecto subjetivo e individual, já a religião se constitui como prática coletiva. É preciso sim discutir religião, no sentido construtivo, para que as pessoas possam exercitar a fé sem que sejam cerceadas e sem ferir os direitos de outros. Nesse sentido, a exposição de casos de intolerância, na mídia, contribuem para trazer o debate à tona.

Em 1995, um caso de intolerância ganhou repercussão na imprensa: o vídeo de um pastor da Igreja Universal exibido pela tv Record, em que o líder religioso chutava uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Em 2011, o Supremo Tribunal Militar (STM) apreciou um caso de intolerância dentro de um quartel do Exército, no Rio de Janeiro. De acordo com a denúncia do Ministério Público Militar (MPM), o sargento — e pastor da igreja evangélica Comunidade Cristã Ministério da Salvação — teria apontado uma pistola na cabeça do soldado Dhiego Cardoso Fernandes dos Santos, praticante do candomblé, com o objetivo de “testar” a convicção religiosa do subordinado, pois este teria dito que tinha o “corpo fechado” (isto é, protegido de qualquer mal).

No ano passado, jornais noticiaram casos recorrentes de mães e filhos de santo que foram expulsos de várias favelas do Rio de Janeiro por traficantes evangélicos, inclusive de facções diferentes. Ocorrências como essas e inúmeras outras ainda assolam o país e dar visibilidade para esses casos desperta a condição para combatê-las, que é o conhecimento. Ainda assim, é necessário identificar e enquadrar essas violações nas leis existentes.

Foto: AF Rodrigues, Arquivo Pessoal
Foto: AF Rodrigues, Arquivo Pessoal

Atualmente existem algumas conquistas que se mostram eficazes quando potencializadas pela conscientização: a Lei 7.716 que define os crimes resultantes de preconceito racial. A legislação determina a pena de reclusão a quem cometer atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Com a sanção, a lei regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo e ficou conhecida como Caó em homenagem ao seu autor, o deputado Carlos Alberto de Oliveira.

De 1989 para cá, outras legislações importantes foram criadas, como o Estatuto da Igualdade Racial. Para efetuar denúncias, ainda falta uma ferramenta que atinja a totalidade do país, umas unidades da Federação têm criado os seus próprios meios, como o Distrito Federal (156, opção 7) e o Rio de Janeiro (21-3399-1300).

A discriminação, como se sabe, é algo cultivado e incutido na sociedade desde os primeiros passos da formação cultural de um indivíduo, e muitas vezes de maneira sutil. Logo, muitos aspectos dessa violência acabam passando batido, como a proibição que algumas crianças sofrem de pegar doces na festividade de São Cosme e Damião. É algo que esbarra no direito dos pais de orientarem os filhos religiosamente, mas que de modo sorrateiro fomenta o preconceito nas bases da educação.

Apesar dos inúmeros casos de intolerância religiosa, o número de registros de ocorrência desse cunho no país são relativamente baixos. Mesmo com a lei que torna esse tipo de crime inafiançável e imprescritível, o baixo registro de ocorrências em contraste com o número expressivo de caso de intolerância demonstram que a educação é uma das áreas mais importantes para se reverter esse quadro.

Para a pesquisadora Lorrama Machado, da CEPLIR, é preciso apostar na divulgação: “A criminalização da intolerância religiosa continua sendo ignorada, primeiro em razão do desconhecimento de uma lei que criminaliza e prevê a punição deste tipo de ocorrência, segundo porque ainda há severa resistência do aparelhamento policial e seus agentes na identificação deste tipo de ofensa como crime, o que leva à formalização de diversos registros de ocorrência em outros tipos, como penais: injúria, difamação, perturbação da tranquilidade e não naquele que de fato trata da intolerância religiosa”, comentou.   Se não houver conscientização e debate aberto, as violações continuam veladas e normatizadas pelo senso comum.

Para o Babalawô Ivanir dos Santos, Interlocutor da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa- CCIR, é necessário uma mudança sociológica: “O ser humano precisa entender que existem diversas práticas religiosas, as pessoas precisam se conscientizar de que a África é um patrimônio da humanidade.” Segundo Ivanir, um combate eficaz à discriminação deve começar nas escolas. “Primeiro de tudo, o cumprimento da lei 10.6939/2003 que regulamenta a obrigatoriedade do ensino de história e cultura negra e indígena nas escolas, investindo na educação para desconstruir essa visão de que é do mal sem conhecer. As pessoas não sabem da existência dessa lei, tudo começa na educação e essa lei deveria estar sendo cumprida!”  

Outro caso recente – noticiado em agosto desse ano – foi o de um aluno de 12 anos, impedido pela diretora de entrar na escola por estar usando guias de Camdomblé. Em entrevista ao site UOL, a professora Stela Guedes Caputo, da Faculdade de Educação da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) destacou a divulgação de notícias como uma forma importante de levantar o debate sobre a realidade da cultura afro-brasileira: “O ensino religioso no Estado e na cidade do Rio funciona como um catequizador, que só aceita as religiões cristãs. E o ensino da cultura africana ainda é muito fraco, quase nulo. Em nossas pesquisas, as crianças da religião do candomblé de escolas públicas são unânimes em dizer que todos os lugares discriminam, mas que a escola é o mais cruel”, afirmou ela. 

UMA LUTA QUE É DO POVO

De maneira mais contundente, a sociedade civil conseguiu, através da pressão de grupos organizados, contestar uma decisão judicial que determinavam que Umbanda e Candomblé não eram consideradas religiões. O magistrado foi alvo de duras críticas por sua postura que, para os movimentos de defesa da cultura africana, reafirmava estereótipos, preconceitos e racismo. No dia 20 de maio desse ano, o juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Eugênio Rosa de Araújo, reviu a sentença e a mudança foi divulgada em nota, pela assessoria de imprensa da Justiça Federal do Rio de Janeiro. No documento o juiz admitia o erro e modificava parte do conteúdo da sentença. Ele afirmara ainda que “o forte apoio dado pela mídia e pela sociedade civil, demonstrava, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões”.

Isso mostra que a democracia não é um direito que se conquista apenas, mas um direito que se deve zelar e cuidar para que não seja violado. Apesar de inúmeros casos de intolerância, existe a consciência de que a luta não cessa e que a sociedade civil tem papel fundamental para a manutenção de direitos que, em dadas circunstâncias, podem ser violados até pelo Estado. O Dia Nacional da Consciência Negra, assim como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa – criado por meio da Lei nº 11.635,de dezembro de 2007 e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – são datas que remetem não apenas à celebração da cultura de um povo, mas atualizam e contextualizam uma luta que é histórica e constante.

 

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