RJ – Em São Gonçalo, famílias lutam por moradia

Acampamento Zumbi dos Palmares / Foto de Camila Nobrega
Acampamento Zumbi dos Palmares / Foto de Camila Nobrega

Camila Nobrega – Do Canal Ibase

Em contraste com o céu cinza claro do dia nublado, um mar de plásticos pretos ocupa a grama crescida em um terreno na Avenida Santa Luzia, muito próximo à rodovia Niterói-Manilha. Bambus são carregados em várias direções. De cima, vê-se uma uniformidade ainda com poucos coloridos. Mais de perto, surgem as singularidades das mais de 400 de histórias de vida que se embaralharam em uma área de cerca de 60 mil m²: alguns desenhos de crianças já decoram lonas pretas, carrinhos de bebê são empurrados pela grama, bonecos, sofás, marmitas prontas para a noite e muitas expectativas.

São barracos improvisados para famílias que, há uma semana, estão instaladas em um terreno abandonado na Avenida Santa Luzia, no Jardim Catarina, em São Gonçalo. Em comum, a busca por soluções de moradia. Muitas famílias da região não conseguem mais pagar os aluguéis cujos preços no Estado do Rio de Janeiro estão exorbitantes mesmo em favelas, outras vivem em áreas de risco e há quem divida um quarto e sala com mais de 20 parentes.

Nasceu naquele local uma comunidade com nome e sobrenome. No mês da consciência negra, a ocupação, que foi organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ganhou o nome de Zumbi dos Palmares e se tornou o epicentro de uma discussão que abrange todo o país: o déficit habitacional e a necessidade de avanço nas políticas de moradia popular. São Gonçalo tem aproximadamente 1,2 milhão de pessoas e cerca de 20 mil pessoas são atingidas pelo déficit habitacional no município, segundo dados confirmados pela prefeitura da cidade.

Cerca de 20% da população do município têm esgoto a céu aberto

Às 19h, um alto-falante chama: é hora de assembleia. Crianças de todas as idades e até aquelas que ainda sequer completaram o primeiro ano de vida, adultos e idosos já com amparo de muletas voltam os rostos pouco iluminados por algumas lâmpadas para um palco improvisado. “Vai ser duro, cada um de nós vai precisar resistir ao cansaço, aprender a dialogar e dar muito suor, mas vamos lutar por essas casas”, diz um dos representantes do MTST no alto-falante. Os aplausos são muitos.

Roberta Conceição, de 31 anos, também aplaude, mas, como outros, compartilha a apreensão. “Suor a gente tem muito para dar, mas meu medo é a violência da polícia ou de outros. Eu estou aqui porque os preços para morar estão de um jeito que não tenho como pagar, mesmo dentro da favela onde vivo com meus dois filhos, o Jardim Catarina. Pago R$ 450 num lugar à beira de um valão, com um cômodo só, cozinha e banheiro”, conta ela, que trabalhou durante muito tempo como camelô e hoje é diarista. “Eu trabalhava no Centro, vendia pastilha refrescante, trabalhava muito, mas gostava. Hoje o trabalho em casa de família é mais pesado ainda”, explica ela, ao lado dos dois filhos que cria sem ajuda do pai.

A maior parte das pessoas na ocupação vive em casas muito precárias, próximas a valões, lixões, com pouca ventilação e muita umidade, situação perfeita para a proliferação de doenças. Como a maioria da população de São Gonçalo, as famílias estão inseridas em um contexto de violações de direitos, como mostram dados do sistema de Indicadores de Cidadania (Incid), do Ibase, para a região.  De acordo com dados oficiais, cerca de 20% das moradias têm esgoto a céu aberto. E, no campo da saúde, a situação também é grave. Para se ter uma ideia, mais de 9% dos bebês nascem com menos de 2,5kg, o que aponta falta de acesso ao pré-natal, entre outras questões para o cuidado durante a gravidez. “São muitas as violações em São Gonçalo, em vários sentidos. E há peculiaridades. Interessante notar, por exemplo,  o crescimento do movimento feminista no município. Há muitas mulheres chefes de família e há, também, muita violência doméstica”, explica Gênesis de Oliveira, supervisor de uma equipe do Incid em São Gonçalo, que esteve no primeiro dia da ocupação e fez um relato para o Canal Ibase.

“Tem gente que dorme até com a barriga no fogão”

Juliele Mota de Azevedo, de 10 anos, é uma das filhas de casas compostas apenas por mulheres. A casa é de um quarto, sala, cozinha e banheiro. Quantos vivem nela? “Na base de mais de dez cabeças”, diz a menina, para, logo, começar a contar com duas primas. “Nossa, são 20, contando minha mãe, irmãos, minhas tias e meus primos. Dorme gente em todo canto, até com a barriga encostada no fogão”, conclui ela, que está aprendendo o caminho da escola a partir daquele lugar, que sonha ser uma nova moradia com pelo menos algum espaço a mais.

A ocupação vem resistindo, mesmo em meio a dificuldades. No primeiro dia, foi vítima de um incêndio. Após o episódio, foi lançada nas redes sociais a campanha “Menos Ódio, Mais Moradia”. Parlamentares, artistas e ativistas sociais encamparam a ideia e estão postando fotos apoiando a ocupação, que foi batizada como Zumbi dos Palmares.

De acordo com a prefeitura de São Gonçalo, o terreno pertence à empresa G Bastos Comércio e Indústria de Embalagens Plásticas LTDA. Segundo o MTST, a empresa passou por um processo de falência e tem dívidas fiscais com a prefeitura.

Segundo Vitor Guimarães, membro da coordenação estadual do MTST, o objetivo principal é manter as famílias mobilizadas para a luta pela garantia de moradia, direito reconhecido pela Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948: “As famílias estão sendo identificadas e agora têm uma luta em comum. Agora são o conjunto de famílias do acampamento Zumbi dos Palmares. Seguiremos mobilizados para que o programa Minha Casa Minha Vida possa dar uma oportunidade a estas famílias, que vivem em condições precárias.”

Com base na experiência do MTST, em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, a Ocupação Zumbi dos Palmares quer erguer moradias por meio do Minha Casa, Minha Vida, que concede financiamento para organizações da sociedade. Em São Paulo, no conjunto João Cândido, o movimento construiu 1.089 unidades, distribuídos por 16 prédios com ajuda dos futuros moradores das casas. O programa recebe o nome de Minha Casa Minha Vida Entidades e vem se tornando referência.

Das reivindicações encaminhadas à prefeitura para beneficiar a ocupação, o MTST cobra rapidez no fornecimento de água, ligações de energia elétrica e banheiros químicos. Técnicos da prefeitura informaram que os serviços são atribuições das concessionárias e não podem intervir. Sobre os banheiros, alegaram falta de verba e necessidade de licitação pública.

A todo momento, novas famílias chegam ao acampamento. Casais de mãos dadas, curiosos, chegam perguntando se podem se juntar, explicam a situação em que vivem. Chegam crianças, avós. Alguns já trazem sofás, colchões, cadeiras e até uma televisão improvisada. “Essa tevê aí vai ficar no meu quarto, que eu mesma vou pintar, que já sei”, explica uma criança à outra.

A estrutura ainda é pouca, mas a quantidade de sonhos e expectativas compartilhadas por famílias cuja renda é comprometida, muitas vezes em mais de 50%, para pagar aluguel em casas inóspitas, mal cabem nos 60 mil m² do Zumbi dos Palmares.

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