A democracia e a Política Nacional de Participação Popular

Grupo de deputados que impediu o decreto da PNPS festeja no Congresso. Será que há algo a festejar?
Grupo de deputados que impediu o decreto da PNPS festeja no Congresso. Será que há algo a festejar?

Por Sheila Holz(*), para o Quem tem medo da democracia?

Quem tem medo da democracia? é uma pergunta bastante apropriada neste momento. Isto porque ontem (29/10/2014) foi barrado na Câmara o Decreto nº 8243/2014 que institui a Política Nacional de Participação Popular ou Social (PNPS), com a votação da PDC 1491/14 de autoria do DEM, sob a alegação de que o decreto retira atribuições do Congresso Nacional. Foi repudiado por alguns partidos por considerá-lo autoritário, e sua queda foi comemorada como uma vitória da democracia. Desde a publicação do Decreto já se ouviu muito falar dele, muitas vezes com referências negativas, acusando-se o governo de tentar implantar uma “ditadura petista” através de um “decreto bolivariano”, discurso rapidamente replicado pela imprensa tradicional e por diversos cidadãos nas hoje tão populares redes sociais.

Ligar um decreto que amplia canais de participação a uma ditadura é um equívoco, não apenas semântico, mas também histórico. A primeira razão é o fato de que numa ditadura não se admite participação cidadã, a segunda é que o decreto apenas regulamenta canais de participação já definidos na Constituição Federal de 1988, não por acaso chamada de Constituição Cidadã.

O parágrafo único do art. 1º da CF/88 diz que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Por isso, além de os cidadãos terem o direito de escolher nossos representantes através do voto, têm ainda o direito de participar diretamente nos processos de tomada de decisão. Porém, ao povo só é permitido exercer o direito de participar se houverem espaços institucionalizados para isso. Estes espaços não são, portanto, inconstitucionais como se fez acreditar e também não afrontam a democracia representativa. Portanto, o sistema representativo brasileiro não foi mudado pelo Decreto.

Os espaços participativos já existiam antes da publicação do Decreto 8243, que apenas os regulamentou, e o Brasil já experimentou diversas práticas de participação, que foram fortalecidas desde o início da década de 1990. O decreto teve por objetivo organizar a relação entre ministérios e outras repartições federais com diversas instâncias de participação social, fortalecendo as relações da sociedade civil com o governo. Estas instâncias são os conselhos permanentes de políticas públicas, as conferências nacionais temáticas e audiências públicas, por exemplo. O número de conselhos nacionais atualmente é de mais de 60, e já foram realizadas mais de 110 conferências em âmbito nacional. Estes conselhos dedicam-se a diversos temas, como juventude, habitação, direitos dos idosos, trânsito, previdência social e drogas. Alguns deles são apenas consultivos, ou seja, não têm poder de decisão, e outros são deliberativos, como é o caso do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Porém, existem Conselhos muito mais antigos, como o da Educação, criado em 1931 e o Conselho Nacional da Saúde, criado em 1937. Estes conselhos não afetam a estrutura legislativa, pertencem apenas a estrutura administrativa.

O decreto não implicou o aumento da despesa nem a criação ou extinção de cargos públicos, por isso o governo entendeu que não era necessário que tramitasse pelo Congresso Nacional. Ele também não criou novos conselhos, mas definiu alguns parâmetros para sua criação, e não deu ao governo o poder de controlar estes conselhos, nem aos conselhos poder de legislar. O governo deve, apenas, considerar as decisões tomadas, para garantir a aproximação com a vontade dos cidadãos.

Para pensar este decreto é preciso considerar também o momento histórico, social e político em que vivemos. A democracia representativa tem tido imensa dificuldade em representar a vontade dos distintos grupos sociais existentes e que compõem nossa sociedade, unida a facilidade de termos acesso a um sem fim de informações e também ao fato de que cada vez mais somos uma sociedade com educação. Estes fatores fazem aumentar as críticas às decisões dos nossos representantes e o desejo de participar mais do que apenas elegê-los (sensação fortalecida pelo fato de que muitas vezes não nos identificamos com eles). Assim, gerou-se uma crise de representatividade, pela sensação de que a democracia não é democrática. É neste momento que a participação coloca-se como uma alternativa, uma tentativa de aproximar o cidadão dos processos de decisão, e assim uma forma de democratizar a democracia.

A chamada crise de representatividade não é exclusiva da realidade brasileira e tem sido combatida com a institucionalização de diversas práticas de participação. Muitos são os países que criaram leis para promovê-la, com o objetivo de aproximar os diversos grupos sociais aos processos de decisão e também para legitimar os processos de decisão, evitando conflitos maiores. Na Região Toscana, na Itália, o incentivo a estas práticas acontece desde 2007, quando foi criada uma lei para incentivá-las, inclusive com recursos financeiros para que sejam implementadas. Outras regiões da Itália também já criaram leis para promover as práticas participativas, como a Emiglia-Romagna e a Puglia. Em outros países, como Estados Unidos, França, Espanha e Portugal já existem práticas participativas instituídas.  A própria União Europeia tem incentivado sua realização nos estados-membro.

Assim, vale nos questionarmos as razões para este decreto ter sido chamado de bolivariano e tenha sido relacionado a um modelo ditatorial. Note-se que as comparações foram feitas sempre, inclusive pela imprensa e não apenas por nossos representantes eleitos, a um modelo que deve ser temido por ser uma afronta à democracia e não como um modelo que deve ser incentivado por aprofundar nossa cidadania. É preciso observar que as práticas participativas têm o claro objetivo de atrair os cidadãos para os processos de decisão, combatendo o modelo tradicional que nos acostumou a pensar na vida política a cada 2 anos, apenas nas eleições e cada vez mais de uma forma irresignada. Quantas vezes não ficamos insatisfeitos com as decisões tomadas por nossos representantes no exercício de seus poderes sem podermos questioná-las de forma adequada? Quantos não somos os que gostaríamos de não precisar escolher? Quantas vezes já ouvimos dizer que escolhemos entre o menos pior?

Por isso, o sentido da participação é transformar o cidadão de sujeito passivo em sujeito ativo, envolvendo-o na construção da sociedade onde vive por meio da criação de espaços próprios para discussão. Isto promove não apenas a democratização da democracia, mas também empodera o cidadão, atraindo-o para o espaço público de debate sobre a sociedade que vivemos. A institucionalização destas práticas tem o poder de abalar os meios tradicionais de decisão, e, por isso, não é estranho que sua prática encontre resistência por parte daqueles que estão habituados a exercer o poder sem serem contestados. A legitimação da participação cidadã pode, portanto, ser contrária aos interesses de alguns representantes, habituados a decidirem em nome do povo.

E assim, retomo a pergunta inicial, quem tem medo da democracia?

*Sheila Holz é formada em Direito e faz doutorado em Democracia no Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde estuda a importância da lei para promoção de práticas participativas. Bolsista de investigação da FCT-Portugal.

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