Por Cidinha da Silva
Olha, Patrícia Moreira, funciona assim: se você está dirigindo um carro pelas ruas de Porto Alegre, atende o celular, desconcentra-se das funções de motorista, freia em cima da faixa de pedestres e quase mata de susto um pai que atravessa a rua tranquilamente, de mãos grudadas no filho de 4 anos, é justo que ele te diga: “tu és uma imbecil, guria, uma irresponsável! Tu podias ter matado meu filho, não vês? Mas, se ao invés disso, igualmente tomado pelo calor da hora, pela ira, ele te disser: “mulherzinha ordinária, onde compraste tua carteira? Tu devias estar em casa, dirigindo fogão e lavando as cuecas do teu marido, isso, se tu tiveres marido, guria vagabunda, que homem nenhum deve querer uma idiota como tu.” Se ele fizer isso, PM, não há sangue quente que o redima, isso é machismo, discriminação por gênero e cabe processo.
Outro exemplo: você não havia nascido ainda e no final dos anos 70, início dos anos 80, houve uma campanha importantíssima no Brasil, protagonizada pelo movimento de mulheres, chamada “Quem ama não mata.” A campanha pretendia alertar a sociedade brasileira do direito à vida que as mulheres precisavam exercer plenamente – soa ridículo, não? Veja, era necessária uma mobilização social e política para dizer ao país que as mulheres tinham o direito de viver, que os homens não tinham o “direito” de assassiná-las “por amor”, “movidos por forte emoção”, “em defesa da honra”, etc. Essas justificavas são absurdas e inaceitáveis, mas, infelizmente, ainda conseguem ouvidos e relativização de sentenças, assim como sua irônica justificativa para discriminar Aranha por ser negro, ou seja, “aquela palavra macaco não foi racista, foi no embalo do jogo.”
No embalo do jogo inúmeras mulheres foram e continuam a ser assassinadas por homens que se julgam seus donos, mesmo que hoje tenhamos a Lei Maria da Penha. No embalo do jogo, todo o privilégio branco que você carregou em 23 anos de existência se manifestou contra um homem negro que trabalhava como jogador de futebol. No embalo do jogo, o juiz da partida ameaçou expulsar esse jogador de campo, quando ele reclamou com firmeza da agressão racial que recebia de você, de seus amigos brancos e dos negros assimilados que faziam coro. Veja que irônico, seu privilégio branco é tão consolidado e perene, que o juiz da partida, sem sequer te conhecer, assegurou, de dentro do campo, as condições para que você e seu grupo continuassem a agredir Arranha, diretamente, e, por extensão, a todas as pessoas descendência africana no mundo.
Toda vez que você chama uma pessoa negra de macaca, PM, do alto de sua branquitude, você a manda de volta para o tronco, você está dizendo a ela para regressar ao lugar de subalternidade que o seu privilégio branco, construído às custas da exploração das pessoas negras, julga ser o lugar dos negros no mundo! Compreendeu? Dou-me o trabalho de explicar just in case de você ou seu advogado argumentarem que você faz isso inconscientemente, o que pode ser verdade, diga-se, pois é característica do racismo construir um campo de ação alargado que vai das ações mais simples, cotidianas e vis de destruição da psiquê de um ser humano, como chamá-lo de macaco, à crise de consciência e remorsos que abrem as comportas das lágrimas de crocodilo da pessoa racista que o discrimina. E isso ainda comove muita gente, portanto, você tem chances de sair livre desta.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.