Por Claudio Tognolli
A Procuradoria Regional da República da 3ª Região (PRR3) enviou nesta quarta-feira parecer ao Tribunal Regional Federal (TRF3) requerendo a punição do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e do delegado Alcides Singillo pelo crime de ocultação de cadáver iniciado em 05 de janeiro de 1972 contra o então estudante de medicina Hirohaki Torigoe. O parecer do Ministério Público Federal (MPF), de autoria da procuradora regional da República Rose Santa Rosa, destaca que o crime de ocultação de cadáver é crime permanente e contra a humanidade, sendo, portanto, imprescritível. Além disso, assevera que a Lei de Anistia não pode beneficiar agentes do Estado que cometeram crimes que envolvem graves violações aos direitos humanos, uma vez que o Brasil é signatário de tratados internacionais que impõem a apuração e punição a crimes como os cometidos na vigência da ditadura militar.
Comandante operacional do Doi-Codi-II e delegado lotado no Deops na data dos fatos, Ustra e Singillo eram responsáveis pelas equipes que capturaram, torturaram e assassinaram o estudante e integrante da organização de esquerda Movimento de Libertação Popular Hirohaki Torigoe. A denúncia contra os dois foi oferecida pelo MPF em abril de 2013 e recebida pela juíza federal Adriana Freisleben de Zanetti, titular da 5ª Vara Criminal de São Paulo, em maio. No entanto, em janeiro de 2014, o juiz substituto Fernando Américo de Figueiredo Porto declarou extinta a punibilidade de Ustra e Singillo sob a justificativa de que o crime de ocultação de cadáver seria instantâneo e de efeitos permanentes, e não crime permanente, como sustenta o MPF. Na prática a decisão do magistrado implica na impossibilidade de responsabilização dos réus pelo crime cometido contra o estudante de medicina.
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu da decisão em fevereiro de 2014, e a PRR3 encaminhou o parecer no dia 20 de agosto. No parecer, a procuradora Rose Santa Rosa considera “manifestamente equivocada” a decisão de atribuir ao delito de ocultação de cadáver natureza jurídica de crime instantâneo e efeitos permanente. “Ao contrário do que concluiu o juiz sentenciante, o bem jurídico tutelado (…) não é o morto ou o cadáver, mas, sim, o sentimento de respeito aos mortos, que, na modalidade ocultar, é representado exercício do direito ao luto, assim entendido como um rito social de lembrança, a realçar a ausência de alguém que se perdeu, fornecendo publicidade à saudade do desaparecido”, pontuou a procuradora.
Ela defendeu que enquanto o paradeiro do cadáver estiver sendo ocultado por vontade dos agentes, há a violação do bem jurídico de maneira contínua. “É dizer, enquanto os réus não revelarem onde o corpo de Hirohaki Torigoe foi sepultado clandestinamente, propiciando à família o direito ao luto, a conduta delitiva não cessará, pelo que se conclui, sem sombra de dúvidas, que se trata de um crime permanente”, não cabendo, portanto, a declaração da extinção da punibilidade pela prescrição.
A procuradora acrescenta em sua manifestação que, mesmo mantido o entendimento do juiz em relação à classificação do crime como sendo instantâneo, o fato do Brasil ser signatário de tratados internacionais de direitos humanos e o crime em questão ter sido cometido “por agentes do Estado, num contexto de perseguição política àqueles que se insurgiam contra o regime vigente à época”, insere o caso “dentre aqueles que a comunidade internacional elevou à categoria de crimes contra a humanidade”. “Disso decorre que, sendo a imprescritibilidade uma das fórmulas estabelecidas em âmbito internacional para que os crimes contra a humanidade não restem impunes”, justificou.
Por fim, a procuradora advogou pela não incidência da Lei da Anistia ao caso, uma vez que tal lei tem efeito para o passado e o caso em questão tratar de “um crime cuja execução, embora tenha sido iniciada em 1972, perdura até a presente data.” O julgamento do caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2010, no qual o Brasil foi condenado a não mais invocar os efeitos da Lei da Anistia para impedir a apuração dos crimes cometidos no período da ditadura militar e a responsabilização dos agentes que deram cabo a isso, foi lembrado pela PRR3 para alertar o Judiciário sobre a importância de respeitar o compromisso assumido pelo Brasil de apurar e punir crimes que implicaram em graves violações de direitos humanos.
O parecer foi encaminhado para a 5ª Turma do TRF3, a quem cabe decidir pela reforma ou manutenção da decisão do juiz da 5ª Vara Criminal.
Biografia
Carlos Alberto Brilhante Ustra (Santa Maria, 28 de julho de 1932), também conhecido pelo codinome de Dr. Tibiriçá,é um coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe (de 1970 a 1974) do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período do regime militar no Brasil (1964-1985).
De setembro de 1970 a janeiro de 1974, Ustra chefiou o DOI-CODI do II Exército (São Paulo), órgão encarregado da repressão a grupos de oposição à ditadura militar e aos grupos de esquerda que atuavam na região. No mesmo período, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista.
Segundo Thomas Skidmore descreve em seu livro Brasil: de Castelo a Tancredo, em 1986, a então deputada Bete Mendes reconheceu em Ustra, adido militar no Uruguai durante o governo José Sarney, o homem que a torturou em 1970. A deputada enviou uma carta ao então presidente Sarney, solicitando que ele fosse exonerado do cargo e pronunciou discurso sobre o assunto no Congresso Nacional. No entanto, o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército à época, manteve Ustra no posto e também avisou que não demitiria nenhum outro militar por acusações de tortura. Isso tornou Ustra um protagonista da primeira crise militar do governo Sarney .
Em resposta a Bete Mendes, em 1987, o ex-coronel lançou o livro Rompendo o silêncio, em que narra sua passagem pelo DOI/CODI, no período de 1970 a 1974, além da operação OBAN. Em 2006, lançou o livro A Verdade Sufocada, em que conta sua versão dos fatos que viveu durante a ditadura.
Em 2008, por decisão em primeira instância do juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, o coronel Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado em ação declaratória por sequestro e tortura, mais de trinta anos depois de fatos ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985).
Publicada em 9 de outubro de 2008, a sentença é o julgamento, em primeira instância, ao requerimento de dois ex-guerrilheiros e seus filhos Janaína de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e uma quinta pessoa, Criméia Alice Schmidt de Almeida, que acusaram Ustra, agente de órgãos de segurança nos anos 1970, de sequestro e tortura em 1972 e 1973, requerendo à Justiça que, através de uma ação declaratória, ele fosse reconhecido como torturador.
Na sentença, ficou reconhecido que o militar, na qualidade de chefe de operações do DOI-CODI de São Paulo, deveria saber que naquele lugar eram feitas sessões de interrogatório. O advogado do coronel Ustra, Paulo Alves de Souza, continuou afirmando que os ex-guerrilheiros, autores da ação, mentiam e anunciou que recorreria da decisão.Em agosto de 2012, o TJSP rejeitou o recurso de Ustra, confirmando a sentença anterior que o declarara torturador.
Em junho de 2012, Ustra também fora condenado a indenizar por danos morais a esposa e a irmã do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971. Merlino foi preso no dia 15 de julho daquele ano, em Santos, e morto quatro dias depois. A versão oficial da sua morte, fornecida pelos agentes do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), foi a de que ele se suicidou enquanto era transportado para o Rio Grande do Sul.
Em maio de 2013, Ustra compareceu à sessão da Comissão da Verdade, a primeira aberta ao público em geral e transmitida pela televisão. De posse de um habeas-corpus que lhe permitia ficar em silêncio, mesmo assim ele respondeu a algumas perguntas, negando que tivesse cometido qualquer crime durante seu período no comando do DOI-CODI paulista e que recebeu ordens de seus superiores no Exército para fazer o que foi feito, alegando em sua defesa que “combatia o terrorismo”. Ustra também negou que qualquer pessoa tivesse sido morta dentro do DOI-CODI, afirmando que todos os mortos o “foram em combate nas ruas”. Acusou a presidente Dilma Roussefde participar de quatro organizações terroristas mas, quando questionado sobre a existência dos chamados instrumentos de tortura “pau-de-arara” e “cadeira do dragão” nas dependências do órgão, exerceu seu direito de manter-se em silêncio.
Mesmo quando confrontado com um documento exibido por um membro da comissão, Claudio Fonteles, um documento do próprio exército, listando a morte de pelo menos 50 pessoas dentro do DOI-CODI no período em que foi comandado por Ustra, o ex-militar afirmou que o documento não provava que essas mortes tinham realmente acontecido nas dependências do órgão. Convidado a uma acareação com o atual vereador paulista Gilberto Natalini, que se encontrava na plateia e já havia dado seu depoimento sobre as torturas que lhe foram infligidas pessoalmente por Ustra naquela época, o militar recusou-se gritando que “não fazia acareação com ex-terrorista”, o que provocou a reação do vereador aos gritos dizendo que era “um brasileiro de bem. O senhor é que é terrorista. Eu fui torturado pelo coronel Ustra!”,levando ao encerramento da sessão.
Ouvido também em audiência pública antes do ex-coronel, o ex-sargento do Exército Marival Fernandes, que trabalhou na análise de documentos do órgão, entre 1973 e 1974, e quatro meses sob o comando de Ustra, testemunhou que o ex-comandante, então capitão, era o “senhor da vida e da morte” do COI-CODI e “escolhia quem ia viver e ia morrer”.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.