Para justificar que manteria sob prisão preventiva os manifestantes Fábio Hideki Harano e Rafael Marques Lusvarg, o juiz Marcelo Matias Pereira, da 10ª Vara Criminal de São Paulo, escreveu em sua decisão:
“Além de descaradamente atacarem o patrimônio particular de pessoas que tanto trabalharam para conquistá-lo, sob o argumento de que são contra o capitalismo, mas usam tênis da Nike, telefone celular, conforme se verifica nas imagens, postam fotos no Facebook e até utilizam uma denominação grafada em língua inglesa, bem ao gosto da denominada esquerda caviar.”
Tenho ouvido muitas pessoas indignadas com a rica argumentação do nobre magistrado, mas vale sempre lembrar que o Poder Judiciário, bem como o Executivo e o Legislativo, são reflexo da sociedade em que estão inseridos. Não foram trazidos por civilizações extraterrestres dotadas de consciência superiora, mas saíram do mesmo tecido social.
Em suma, podem ser preconceituosos, superficiais e ignorantes como todos nós.
Estamos acostumamos a criticar prefeitos, governadores, presidentes, vereadores, deputados e senadores mas, não raro, poupamos juízes, desembargadores e ministros. Fascinante que uma das consequências de atribuir sabedoria sobrenatural à toga é de que o Judiciário, por falta de pressão e controle externos, é o menos transparente dos poderes.
Um juiz de Sete Lagoas (MG) rejeitou uma série de pedidos de medidas, baseadas na Lei Maria da Penha, contra homens que agrediram e ameaçaram suas parceiras. Sancionada em 2006, a lei torna mais rigorosa a punição da violência contra a mulher. Edilson Rumbelsperger Rodrigues, em suas sentenças, afirmou:
“Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem (…) O mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”
“Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões.”
“A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras, porque sem pais; o homem subjugado.”
O juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, de São Paulo, também usou o posto de magistrado para reafirmar o que muitos considerariam a mais pura homofobia. Em caso envolvendo um jogador de futebol, ele disse no processo:
“Quem se recorda da Copa do Mundo de 1970, quem viu o escrete de ouro jogando (…) jamais conceberia um ídolo ser homossexual.”
“Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme seu time e inicie uma Federação”.
“Cada um na sua área, cada macaco no seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que penso.”
Repito o que falei há dois meses: um juiz (que deveria garantir que os direitos sejam válidos a todos e proteger os cidadãos ameaçados) vem com uma imbecilidade dessas.
Juízes são livres para escreverem o que quiserem em suas sentenças. Mas, não raro, agem não para fazer valer o Estado de Direito, mas sim para incentivar a violência.
O pior não é encontrar peças jurídicas com um grau de preconceito, estupidez, machismo e ignorância. Se elas fossem apenas distorções, vá lá, uma instância superiora célere, competente e honesta seria capaz de revertê-las e um conselho de justiça aplicaria um “meu amigo, vamos conversar” no magistrado em questão. Como disse acima, o problema é saber que, infelizmente, essas análises rasas refletem um naco da sociedade brasileira formado por ricos e pobres, letrados ou não.
Os referidos juízes passaram pelos duros processos de seleção para se tornarem magistrados. Ou seja, não é uma questão de educação pura e simples. É consciência. E isso não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho nas famílias ricas. Mas sim na vivência comum na sociedade, na tentativa do conhecimento do outro, na busca por tolerar as diferenças e entender o que significa os espírito das leis em seu tempo.
Os juízes acima representam o pensamento de uma parcela da população. Fizeram uma decisão judicial – que tem na sua origem o mesmo preconceito e superficialidade das bobagens do dia-a-dia.
Como, da mesma forma, o toma-lá-dá-cá obtido nos conchavos no Congresso Nacional é parente direto daquele cafezinho entregue ao guarda para evitar uma multa. O que muda é o tamanho, não a natureza.
Coloquemos a culpa no processo de formação do Brasil, nas capitanias hereditárias, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais etc.) Tem sido uma luta inglória, mas necessária. Que inclui uma profunda reflexão sobre nossos próprios comportamentos e a exposição daqueles que, em cargos públicos, rasgam os preceitos básicos dos direitos fundamentais.
Mas, como reflexo da sociedade, o Judiciário segue sendo o responsável por zelar pelos mesmos direitos fundamentais. Neste ano, o juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da 15a Vara Cível de Brasília, proferiu sentença em que negou o pedido de indenização da juíza do Trabalho Marli Lopes da Costa Goes que processou este blog por conta de um post aqui publicado sobre a libertação de escravos em uma fazenda de cana. A curta sentença é uma pequena aula do Judiciário sobre a liberdade de expressão:
“No período mais tardio da ditadura militar, quando os poucos destemidos juízes que se insurgiram abertamente contra o poder golpista, já tinha sido ‘expurgados’ e os demais ou manifestaram sua adesão ou recolheram-se a uma submissão pusilânime ou temerosa perante o regime então instalado, os representantes do governo autoritário costumavam afirmar, de modo um tanto cínico, que ‘decisão judicial não se discute, apenas cumpre-se’. Trata-se de um mantra até hoje repetido, mas que tem alcance mais limitado que o que geralmente se lhe é atribuído. Decisão judicial se discute sim, senão pelas vias regulares do recurso judicial, também pelos canais de comunicação social. Não são atos incontestáveis ou insuscetíveis de críticas.”
Enfim, há esperança. Pois há juízes que preferem entender a Constituição Federal de 1988 e as liberdades ali presentes do que basear suas sentenças em sociologia de botequim.