Importante: Professora demitida pela Prefeitura de Jacareacanga denuncia ameaças, intimidação e desrespeito à Constituição e aos direitos dos Munduruku

Emanuelle - caminhão
Bagagens, alimentos e materiais para a escola sendo embarcados no caminhão onde os professores também viajariam a caminho da aldeia Munduruku

Por Emanuelle Limenza Barros

Este relato visa a denunciar e mostrar como os professores que lecionam pela Secretária de Educação de Jacareacanga são tratados, e como eles burlam a Carta Magna de nosso país, sendo essa a Constituição Federal, tudo para continuarem sua corrida pelo poder e pelo dinheiro.

Em Janeiro de 2014, eu, Emanuelle Limenza Barros, após mandar currículo para vaga de professora de área indígena Munduruku pela Prefeitura de Jacareacanga, logo entraram em contato para formalizar o contrato. Então, no dia 2 de fevereiro do mesmo ano, saí do município de Itaituba, no estado do Pará, rumo ao município de Jacareacanga, para ocupar minha vaga.

Ao chegar na cidade todos os professores de área, ocupam uma casa cedida pela prefeitura; nela ficamos por 14 dias até podermos ir as aldeias, para iniciarmos nosso trabalho.

Na reunião pedagógica (que nem poderia ser chamada assim), a única coisa que nos foi passada pelo supervisor pedagógico Jailson Barreto Pereira eram: “Não fazer amizade com os indígenas, não ter nenhum tipo de relacionamento com os mesmos, não beber com os indígenas, não manter comunicação assídua com os mesmos”.

Em nenhum momento foi citado sobre escola diferenciada que pela LDB é obrigatório, planejamento de aulas, ou calendário escolar, assim como normalmente é feito nessas reuniões; o material nós mesmos levamos e escolhemos; e é-nos dado um planejamento pronto, onde devemos colocar nos diários da forma que foi entregue, mesmo se dermos uma aula diferenciada e conforme o aprendizado do aluno.

Esperamos 14 dias na sede, para podermos esperar o transporte, mesmo no calendário dos próprios estando o início da aula colocado para o dia 2 de fevereiro (dia em que cheguei na sede). Após esses dias de espera, chegou finalmente o transporte que nos levaria até o Ramal, um distrito do Apuí, no Amazonas, um caminhão fretado pela prefeitura. Fomos todos em cima desse caminhão, “como bóias frias”, junto com combustível, botijão de gás, alimentação e coisas que seriam levadas para as escolas; na chuva utilizávamos lona para nos proteger…

Bagagens, alimentos e materiais para a escola agora embarcados nas voadeiras, a caminho da aldeia Munduruku
Bagagens, alimentos e materiais para a escola agora sendo embarcados nas voadeiras, que também levariam os professores a caminho da aldeia Munduruku

Finalmente após 5 horas de viagem, chegamos ao Ramal, onde passamos 3 dias até chegarem as voadeiras que nos levariam até nosso destino final, as aldeias. Lá não tivemos nenhuma ajuda na alimentação por parte da Prefeitura, tanto que quando acabou o dinheiro para comermos, tivemos que começar a comer as compras que havíamos feito para levar às aldeias; a alimentação é toda por nossa conta.

Depois de 3 dias, a embarcação chegou e nos levou até as aldeias, da mesma forma. Fomos nas voadeiras em dez pessoas, combustível, material da escola, mais a alimentação que havíamos comprado. Outras embarcações levaram até 15 pessoas mais os materiais. ”Passamos o inferno para chegar ao paraíso”, chuva e sol e nenhum tipo de proteção.

Enfim chegamos à aldeia em que eu lecionaria, Aldeia Missão São Francisco do Rio Cururu, aldeia polo do rio Cururu. Lá como relatei anteriormente foi maravilhoso, fui bem recebida, e logo tratei de conhecer sua cultura, forma de viver e língua. Portanto fiz uma grande amizade com os indígenas e aprendi rápido o básico da língua Munduruku, o que fortaleceu os laços entre mim como professora, os alunos e todos da própria comunidade.

Nessa aldeia, ao todo tínhamos o total de 5 professores não indígenas: eu, Emanuelle; Lucas; Raiza; Dinalva; e a técnica pedagógica Josiane.

Logo no primeiro mês eu e o professor Lucas percebemos que não daria certo o relacionamento entre todos da casa, porque iniciaram as brigas internas, causadas pelo método de ensino utilizado pela técnica Josiane, mas por nós nunca teriam saído essas discussões para aldeia, até que a técnica começou a utilizar seus métodos de forma na minha visão destrutiva para os alunos.

‘Direito à Educação Diferenciada’

Nos relatos dos próprios alunos a mesma proibia eles de falarem Munduruku na sala de aula, começou a mandar embora alunos que viessem vestidos de forma diferente ao que ela havia mandado, todos de calça jeans, sapato ou tênis, mesmo sabendo que em uma aldeia indígena não podemos nunca impor o modelo da escola pariwat (não indígena), justamente porque a lei assim explica. Com isso iniciou-se uma ditadura pariwat dentro da escola da aldeia, o que deixou inconformados alunos, professores indígenas, lideranças, eu e o professor Lucas.

Dentro da aldeia também ocorriam da parte da mesma e da outra professora Raiza impactos culturais que acabavam por as mesmas, não entendendo a cultura, fazerem comentários no mínimo racistas para os próprios indígenas, o que os deixava bravos. Exemplos: fazerem piadas com o adereço de madeira que o Pajé usa na orelha, falar para as mulheres da aldeia que elas achavam ridículo só elas carregarem o ico (cesta feita de palha para carregarem a colheita, madeira, etc; na língua falada tem o som de itchu), causando assim constrangimento das mesmas dentro da aldeia, o que fez que a as brigas se intensificassem dentro da casa dos professores.

Porém, a técnica começou a falar pra aldeia sobre as brigas, levando para fora da casa o que ocorria entre nós, e como a aldeia já estava exausta e não gostavam dela, ficou ao nosso lado; o professor Lucas acabou desistindo e indo embora.

No mês de Fevereiro ainda, ocorreu a demissão dos 70 professores indígenas, o que causou uma comoção por parte desses, que começaram a se unir para conseguirem seus empregos de volta. Algumas aldeias proibiram as aulas dos pariwats até que se resolvesse o assunto (essas mesmas acabaram deixando a aula voltar, quando perceberam que a prefeitura não tinha intenção nenhuma de recontratá-los), ficamos uma semana sem aula, e, como professora, vieram me perguntar se estava certa aquela demissão. Falei a eles a verdade e mostrei os artigos da Constituição e da OIT, que podiam utilizar para uma possível volta, o que fez com que formulássemos um projeto dentro da aldeia, para todas as lideranças, para que ocorressem aulas nos fins de semana sobre estes pontos: Constituição Federal, direitos e deveres indígenas, tipos de documento e OIT 169.

Apereg Ayu e demissões

Em Abril ocorreu a semana do índio e com ela houve na aldeia a Assembleia do Movimento Apereg Ayu (Movimento criado para se opor aos mega projetos que afligem os Munduruku, já que a Associação Pusuru, que respondia por eles, estava negociando com os não indígenas áreas indígenas para mineração e conversando positivamente sobre as barragens, sem o consentimento de todos os Munduruku). A reunião durou 6 dias; participei de todos os dias, como professora dentro da aldeia temos de participar de todos os eventos. Alguns outros professores não indígenas de outras aldeias também participaram, mas da Missão eu fui a única, o que foi para os indígenas a gota d’água sobre a técnica que já pensavam em tirar.

Um dia após o termino da Assembleia, fizeram uma reunião na aldeia, e contaram com o depoimento de professores, alunos, pais de alunos e lideranças, e o resultado foi a expulsão da técnica Josiane da aldeia. Fizeram documento e mandaram pra secretaria. No outro dia antes dela ir embora fui chamada pelo diretor da escola, e ele disse que a Secretaria de Educação havia informado para eu descer junto com ela, porque ela havia denunciado para eles que eu fazia parte do Movimento, e que eu havia influenciado os indígenas contra a mesma. Assim, como pedido eu desci para esclarecer tudo.

Chegando em Jacareacanga, fui até a Secretaria onde conversei com o coordenador de educação, Isaias Krixi, e tudo parecia esclarecido. Pedi que eu pudesse descer a Itaituba para pegar um computador que havia conseguido para a escola da aldeia, ele permitiu. Fui a Itaituba em um dia e voltei no outro.

Assim que eu cheguei em Jacareacanga, fui chamada na Secretaria de Educação pelo mesmo, onde foi dada minha demissão. Isaias disse a mim que o Secretário de Educação, Pedro Lúcio Luz, havia ligado para ele na noite anterior dizendo  que era pra me demitir porque eu estava participando do Movimento indígena  Apereg  Ayu. Em nenhum momento deram alguma chance de explicação sobre o que me acusavam, porque a forma que falavam eram em tom de acusação, como se eu fosse a pior bandida do mundo.

Acusações e perseguição

Entendo sobre as leis. Eu aceitei mas informei que iria comunicar à aldeia, para não deixar como abandono, e também iria entregar o computador aos indígenas da minha aldeia, que se manifestavam ali contra a demissão dos professores indígenas.

No mesmo dia fui expulsa da casa dos professores, Os únicos que me abrigaram foram os próprios indígenas do movimento na sede em que ficavam. Quando avisei para eles que não voltaria na aldeia porque havia sido demitida, eles ficaram revoltados e foram se manifestar contra. Ao chegarem lá, o mesmo senhor Isaias Krixi informou outra versão da demissão, dizendo que a comunidade em que eu trabalhava havia mandado documento me tirando. O documento nunca foi mostrado nem aos indígenas nem a mim, e o capitão da aldeia, Arlindo Kaba, disse na frente dele que ninguém da aldeia sabia desse documento, e que ele não existia, portanto, se ele existisse era totalmente falso.

Falei via rádio com a aldeia, e todos estavam esperando minha volta, ninguém sabia sobre esse documento. Ainda piorou ao descobrirem que a técnica Josiane, que havia sido tirada realmente da aldeia, tinha sido mandada para outra aldeia perto de Jacareacanga, o que deixou os indígenas indignados.

A partir daí, iniciou-se uma perseguição por parte da Secretaria de Educação e do Ivanio Alencar, Secretário de Assuntos Indígenas, tanto a mim, como ao movimento que fazia manifestações totalmente pacificas, pedindo a volta dos professores e minha volta.

“Ativista Branca”

O mesmo começou a colocar as pessoas contra o movimento (existem gravações que provam isso) e contra mim, me chamando de “Ativista Branca”. Citavam meu nome e minha aparência, falando que eu que estava influenciando os indígenas a fazerem “baderna” na cidade, e que eu tinha que ser expulsa da cidade.

No dia em que queimaram a casa dos professores, eu havia ido lá à tarde. Fui chamada pelos próprios professores, esses que foram colocados contra mim. Quando cheguei lá logo depois Ivanio Alencar chegou com outro homem, esses rudemente me acusaram, me mandaram embora da casa, me ameaçaram dizendo “é melhor você sair da cidade ou se não pode te acontecer coisas”, e os mesmos como em uma “previsão” falaram que os indígenas do Movimento colocariam fogo na casa dos professores por minha causa (isso também tem gravação de áudio). Uma hora depois que sai da casa, ela pegou fogo.

Os indígenas do movimento todos estavam na casa da Maria Leusa, portanto não foram eles que fizeram isso, e na mesma noite, Ivanio Alencar fez uma reunião na casa do prefeito Raulien Queiroz e planejou a “Manifestação popular” que no outro dia tinha por volta de 500 garimpeiros, comerciantes e pessoas ligadas ao governo.

Com palavras absurdas de punição, este senhor incitou todos que participavam a partir pra cima dos indígenas do Movimento, que tomavam café na frente da casa da indígena Maria Leusa Cosme Kaba Munduruku. Com fogos de artificio jogados em cima dos indígenas ele falava frases incitadoras: “hoje rasgo meu documento de secretário”; “vem, seus boiolas”, falava, enquanto os indígenas se escondiam dos fogos de artificio e dos garimpeiros enfurecidos (tem gravação em vídeo).

Ameaças e compromisso

Nesse dia fui informada para me esconder e não sair, porque os mesmos haviam colocado duas pessoas à minha procura, um tal de Gil e de Goiano. Então me escondi até conseguir um transporte para poder ir embora de Jacareacanga. No mesmo dia ao cair da noite fretei um táxi que me trouxe até Itaituba.

Quando cheguei vi que havia blogs com minha foto e acusações, todos os outros professores com medo de serem demitidos ficaram contra mim, e alguns entraram na onda e inventaram coisas sobre mim, para conseguir “pontos” com a secretária.

Em Itaituba continuei a luta com os indígenas do movimento, e conseguimos pelo Ministério Público o pedido para a volta dos 70 professores indígenas, e o pedido de demarcação da aldeia Sawre Maybu, do Médio Tapajós.

Ainda hoje recebo ligações de ameaças com números desconhecidos. A última, na semana em que ocorreu a reunião do Ministério Público, falava: “ou você cala a boca ou te calamos”…

Mesmo após tudo isso não desisti da luta, e cada vez mais sinto à vontade e a coragem de ajudar o povo que me adotou como uma eles e que me batizou no nome deles: Akay Buyat gu Munduruku… Esse é meu nome na aldeia, e respeito muito esse presente que ganhei. E sempre respeitarei esse povo lutador, que só pede a chance de ser ouvido e visto em um país que fecha os olhos para seus originários, e que só luta pelo direito de poderem viver em paz, com sua cultura, sua língua e sua forma natural de viver com todo seu povo.

Obs: Nunca, durante os 4 meses que fiquei na aldeia e trabalhei para a Prefeitura, foi assinado algum tipo de contrato entre as partes.

Enviada para Combate Racismo Ambiental através de Marquinho Mota.

Observação: os entretítulos foram colocados por este blog, para facilitar a leitura.

Comments (9)

  1. Olá, Djalmira e Emanuele!
    Fico orgulhosa por tomar conhecimento desse lindo trabalho e do desempenho de vocês nessa luta em favor da classe indígena, tão massacrada pelos que se dizem da classe dominante.
    Infelizmente, o povo brasileiro ainda não se atentou para a necessidade da escolarização indígena nem para a valorização e a preservação dessa cultura.
    Vejo que vocês têm tentado fazer a diferença e isso incomoda a muitos.
    Parabéns! E muitas vitórias pra vocês.

  2. Emmanuele, no meu parecer vejo que há muito desrespeito mesmo por parte de pessoas que se dizem profissionais, pois pra mim os comentários que esses professores fizeram ( que eu não duvido em nada que tivessem faldo isso, pois já presenciei situações assim) é vísivelmente um comportamento de pessoas preconceituosas, porém, pra mim a incompetência está nas pessoas que estão a frente de todo o processo, pessoas que nem mereciam estar onde estão, visto que deveriam ter contribuido ou tivessem a responsabilidade de fazer com que esses professores tivessem uma orientação que de fato ensinasse como atuar com a educação voltada para indígenas, de como essas pessoas deveriam ser tratadas, orientação até mesmo para que deixassem seus preconceitos para trás e procurassem entender ou melhor, procurar compreender e respeitar a cultura e o modo de vida do outro,sem questionamentos ou críticas. Você sofreu diversas perseguições sim por que você conseguiu entender esse universo, o modo de vida indígena sem preconceitos, procurou de alguma maneira exercer o papel de cidadã procurando orientar e ajudar e tratar e ver meus parentes como seres humanos, e esse diferencial muitas pessoas não possuem.

  3. Olá, Djalmira e Emanuele!
    Fico orgulhosa por saber de tão lindo trabalho e a forma como vocês conduzem as questões indígenas.
    Infelizmente, a nação brasileira não leva em conta as injustiças para com esse povo massacrado pela ganãncia dos que se dizem soberanos.
    Essa luta pela educação indígena e o respeito pela cultura e sua preservação precisa avançar. E isso vocês estão tentando fazer.
    Parabéns e muitas vitórias nessa empreitada.

  4. Eu é que perguntei pelo sobrenome dela.
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  5. Eu sou a mãe da Emanuelle. Sou servidora pública federal e acompanhei, mesmo doente, toda essa trajetória da minha filha com a Secretaria de educação de Jacareacanga daqui mesmo de Itaituba. Ela me manteve informada de tudo, ora pelo rádio amador, ora por telefone, ora pelo facebook. De posse do celular e do notebook, acompanhei a perseguição contra minha filha, que o que mais pretendia era ganhar experiência na educação indígena para fazer seu estágio e TCC do curso de História. Preparou-se estudando leis indigenistas e grande acervo de informações tinha sobre educação diferenciada e bilíngue. Jacareacanga recebe muito dinheiro para aplicar em área indígena, mas pelo que vejo isto não chega ao seu destino. Não sei como aceitam pessoas que não gostam de índios para administrar (dinheiro) assuntos indígenas. Emanuelle nunca recebeu pelos 4 meses que trabalhou pela prefeitura de Jacareacanga, na Aldeia Missão Cururu. Parece-me que sumiram com o contrato dela. Depois chamaram para demiti-la. Como não tinha contrato, e chamaram para demiti-la? É, no mínimo obscuro!

  6. deixo por aqui minha indignação a ignorância dos supostos educadores,mercenários,mesmo considerando q a “técnica”possa ter o conhecimento de textos pedagógicos e um diploma decadente só disso que se valem,pois conteúdo moral e verdadeiro do que realmente significa “PROFESSOR”,estão longe de atingir,considero esses falcatrua gananciosos uma verdadeira ameaça para qualquer criança prestes a receber instruçao

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