No norte do Pará, os descendentes de escravos fugidos vivem em casas de palafitas, isolados da cidade e próximos da exploração mineradora
Beatriz Borges, El País
Subindo o rio Trombetas a partir de Oriximiná, ao norte do Pará, se avistam pequenas parcelas de terra cercadas pela mata verde e densa da Amazônia, a maior floresta do Brasil. Cerca de três ou quatro casas de palafita, típicas de zonas alagadas que se sustentam por paus de madeira no alto para evitar a invasão das cheias que ocorrem entre dezembro e maio, ocupam esses pequenos espaços desmatados, que aparecem intermitentemente no curso do rio. Nesses limitados recôncavos vivem comunidades quilombolas, remanescentes da época da escravidão de negros africanos que haviam sido levados à vila portuguesa de Óbidos, fundada em 1697 a 82 quilômetros de Oriximiná, para trabalhar nas plantações de cacau no final do século XIX, como também escravos provenientes de fazendas das cidades de Santarém, Alenquer e na capital do estado, Belém. Hoje essa população de aproximadamente 8.000 pessoas distribuídas em 332.654 hectares enfrenta o avanço da exploração de bauxita em seu território.
Os que conseguiram fugir do trabalho forçado no campo subiram o afluente do rio Amazonas em canoas e percorreram uma distância de 223 quilômetros até Cachoeira Porteira, onde se instalaram com o apoio dos índios wai wai e de outras etnias, que já viviam na zona. Protegidos pelas barreiras naturais da selva e das quedas d’água, começaram a formar suas casas à beira do rio, nas partes mais altas e escondidas. Alguns desses escravos eram os avós de Aloízio dos Santos, de 64 anos, um quilombola que vive na comunidade da Tapagem, às margens do rio Trombetas. “Meus avós contam que os índios os acolheram. Meu tio, Raimundo Vieira, nasceu no quilombo Maravilha (um dos maiores do Pará)”.
A região do Alto e Baixo Trombetas ficou conhecida como Palmares Amazônico, em referência ao maior quilombo de negros escravos fugidos do país, no estado de Alagoas, nordeste do Brasil, que congregou aproximadamente 20.000 escravos. Hoje os quilombolas do Pará lutam pela titulação dessa área com a ajuda da Comissão Pró-Índio, uma ONG que trabalha com as 35 comunidades da região. “Ninguém teria vindo para cá se não fosse por medo do branco”, afirma Domingos Printes, um quilombola da comunidade do Abuí, referindo-se ao isolamento da área e dificuldades de transporte e comunicação. A população quilombola tem o rio como estrada e os barcos como carros, já que não há acesso por terra. Do rio também tiram o peixe, tomam banho, lavam a louça e a roupa. Não há rede de esgoto nem saneamento e a energia elétrica fica por conta de geradores movidos a combustível, que na região chega a 3,20 reais o litro.
Os celulares não têm cobertura e apenas uma comunidade, Tapagem, possui um orelhão que “funciona só quando não chove”, afirma uma das moradoras da única vila que se assemelha a uma cidade, já que tem uma escola, luz nas ruas de chão batido, e onde as casas estão próximas uma das outras que é possível até mesmo ouvir desde uma delas o DVD pirata tocando Banda Calypso, um dos grupos paraenses do gênero brega. As notícias locais chegam através de barcos e lanchas, onde homens como Domingos, um dos coordenadores da associação das comunidades quilombolas, a ARQMO, se encarregam de avisar os familiares sobre a morte de um parente, se está chegando um carregamento de madeira ou gasolina, ou que no dia seguinte não haverá aula para as crianças.
O caminho do aeroporto de Porto Trombetas, uma cidade ao estilo da vila dos outros na série de televisão Lost, até a comunidade do Abuí, leva duas horas em lancha rápida. Pelo rio se veem botos (golfinhos de rio), ariranhas (lontras), aves e incontáveis espécies de árvores e frutas. Há dois postos de fiscalização no trajeto, um do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais renováveis, o Ibama, e outro do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, onde os quilombolas devem parar obrigatoriamente por tratar-se de uma reserva florestal e, em alguns trechos, da floresta nacional da Amazônia.
Quando o barulho do motor do barco cessa, as cigarras preenchem o vazio, disputando o volume com o ruído dos macacos. Ao entardecer, mariposas se encarregam de dificultar a visão de quem atravessa o rio e atingem rostos e corpos como chibatadas velozes. Abrir a boca, neste momento, é a mesma sensação que receber um pacote de confetes de papel na língua.
A casa de Domingos é uma construção de madeira típica de ribeirinhos, onde vivem 10 pessoas em três cômodos. Em um município onde a incidência da pobreza é de 43,10%, segundo dados do IBGE, a falta de estrutura e de condições mínimas são evidentes e fazem parte da vida dos quilombolas. Na verdade, ela já foi naturalizada. Mas ainda assim é melhor do que as memórias sofridas na época da escravidão. Para Manuel Cordeiro, de 65 anos, conhecido como Seu Canela, as lembranças das histórias de família lhe deixam indignado. “Se o branco queria escrever, colocavam o óleo quente na mão do negro para alumiá (iluminar). Se me mandassem fazer isso eu preferiria morrer. Por isso eles fugiam”, explica.
À noite parecia que faltavam lugares para sentar. A sala estava repleta: nem todas as famílias possuem televisão e acabam indo a casa uma das outras para assistir a novela ou o Big Brother, um dos programas mais populares entre os quilombolas. Ainda assim, o futebol é o que tem maior número de espectadores, especialmente se é jogo do Vasco ou Flamengo.
Quando o gerador cessa, o escuro volta a preencher todos os cantos, superados apenas pelos vagalumes e a lua, que insiste em aparecer apesar das nuvens. As paredes de madeira rugem com o balançar das redes, acama onde dorme o quilombola. As placas de lenha não alcançam o teto da casa, o que faz com que todos os cômodos estejam conectados. Ainda que o bloqueio visual funcione em certa medida, considerando que também não há portas, se ouve tudo. O banheiro é na mata e toma-se banho no rio, que tem uma água um pouco amarelada pela folhagem que cai e por estar misturada com a argila do fundo. Dizem que não há mosquitos pelo PH ácido desse trecho do rio Trombetas. Ainda assim, preferem usar essa água “por ser corrente, não parada”, explica Claudiana, mulher de Domingos.
Durante o dia os espaços se revelam. Aquela lenha que estava sob a mangueira era na verdade um banco onde o pai de Claudiana, o quilombola Domingos Humberto de Oliveira, de 73 anos, se senta para trabalhar o ambé, um tipo de cipó que serve para tecer o paneiro, uma espécie de mochila cilíndrica usada pelos quilombolas para colher castanha. Oliveira se dedica a fazer paneiros e tipiti, um espremedor de massa de mandioca feito com outro tipo de cipó, a jacitara. Um paneiro custa em média 40 reais e demora três dias para ser feito, porque o ambé, depois de descascado, deve ficar pelo menos 24 horas mergulhado na beira do rio, para facilitar seu manejo e evitar cortes nas mãos do artesão. Seu sonho, disse, “é ter uma casa perto dos recursos, em Orixi, porque aqui a gente tem saúde, mas não tem remédio”, explica Oliveira, que teve um AVC aos 50 anos e ficou oito dias sem falar por falta de assistência médica.
Oliveira teve três irmãos mortos pela pneumonia, uma doença que ainda mata os quilombolas durante as cheias. Sobre a origem de sua família, Oliveira afirma não ter certeza se seus familiares eram escravos: “só sei que minha mãe era cearense e meu pai de Orixi”. Antes de vir morar no Abuí, Oliveira foi expulso de uma zona onde havia um quilombo inicialmente, o Jacaré, local em que está instalada a base do Ibama hoje. Manuel Raimundo Pereira dos Santos, Seu Tinga, um quilombola de 65 anos, conta que seus parentes também foram expulsos do Jacaré, “com muita violência”, em 1976. “Todos eram descendentes de escravos e ainda haviam alguns vivos naquele tempo, que eram fugidos”, relembra. O avô de Anízia Garcia dos Santos, professora de 40 anos, era um escravo fugitivo, que se instalou acima das cachoeiras, no famoso quilombo Maravilha. Anízia explica que a maioria dos idosos têm vergonha de contar sobre o passado e que por isso não conseguiu obter muitas informações com o avô. “Até porque a escravidão, para eles, ainda existe, desde o ponto de vista da proibição de uma das tradições do quilombola, que era comer tartaruga. A proibição do Ibama, como também a regulamentação do período de colheita da castanha na reserva e a nossa circulação na área do Tabuleiro (Jacaré), onde nossos antepassados viviam, são vistas pelos mais velhos como formas de opressão do branco sobre o negro”, explica.
Enquanto Seu Domingos tira os excessos do ambé, uma galinha se aproxima para bicar uma manga que recém caiu do pé. Sua bisneta, Bruna, de dois anos, sai correndo atrás do animal, descalça e nua, como a maioria das crianças que vivem em contato constante com a natureza naquela localidade.
Se na década de 80 os quilombolas se sentiram ameaçados pela chegada do Ibama na região, que lhes expulsou de onde viviam e lhes proibiu de comer tartaruga, se encontram agora encurralados pela exploração da bauxita em seu território. A Mineração Rio do Norte (MRN), um consórcio composto pelos acionistas Vale (40%), Alcoa (18,2%), bhpbilliton (14,8%), RioTintoAlcan (12%), CBA (10%) e Hydro (5%), iniciou os trabalhos na região de Trombetas na década de 70. O primeiro passo foi mapear os platôs onde se concentrava o minério, matéria prima do alumínio. Posteriormente, depois de conseguir algumas licenças e instalar a base em Porto Trombetas, começaram a explorar.
Cruz Alta, um dos maiores platôs, fica justamente na área quilombola e tem previsão de iniciar as explorações em 2022. A área é reivindicada pela população quilombola que pede seu direito de titulação da terra, previsto na Constituição de 1988. O processo está em andamento, apenas aguardando a publicação do relatório de identificação do território, já realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra. Pelo tumultuado processo, que envolve os órgãos responsáveis pelo meio ambiente, por tratar-se de uma área que também tem uma parcela de Reserva Florestal e da Floresta Nacional, o ICMBio suspendeu recentemente as atividades da MRN nesta área até que seja realizada a consulta prévia prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O posicionamento das comunidades é que os estudos não se realizem até que a titulação saia.
Clóvis Bastos, gerente de Gestão, Saúde, Meio Ambiente e Relações comunitárias da MRN afirma que “a abertura das trilhas estão suspensas, mas elas já existem, porque foram abertas há mais de 30 anos para a pesquisa”. Os estudos que foram paralisados pela suspensão do ICMBio serviriam para fazer o relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA), que posteriormente seria apresentado à consulta popular prevista em lei. No entanto, ainda que a população não esteja de acordo, o subsolo brasileiro é de propriedade do Governo federal. E, para ressarcir a população, o único que poderia ser feito seriam “medidas compensatórias, além do reflorestamento mais próximo da mata original”, conclui Bastos.
“A senhora já viu a cor de uma mata reflorestada?”, pergunta indignada e descrente Albenize, esposa de Manuel Francisco Xavier Valério, cabeça de uma família quilombola. Enquanto uma das filhas empunha um facão para abrir as castanhas, sentada sobre uma pedra, Albenize e Manuel dizem que não querem que a mineradora explore o platô de Cruz Alta. O desmatamento é fundamental para a exploração da bauxita, que se encontra no subsolo, em uma terra vermelha que não se distingue do minério de mesma cor. “Se desmatar vai prejudicar o mutum, o inhambu, o jacamim, o jacu…”, lista Albenize as aves da região, que fazem parte da dieta dos quilombolas, assim como porcos, cotias e animais menores obtidos com a caça. Ainda assim, dependem de alguns alimentos básicos da cidade, como o arroz e o óleo de cozinha, que não podem extrair da terra onde habitam “porque o Ibama não deixa a gente desmatar nem um pouquinho, nem para criar gado pra gente comer”, afirma Manuel Francisco.
Além da venda da castanha-do-pará, que no ano passado gerou 4,9 milhões de reais em renda somente no município de Oriximiná, a família de 11 filhos conta com o auxílio da Bolsa Família. “Antes vinha 374 reais, agora recebemos somente 38, por um filho que tem bolsa jovem”, explica Albenize. Apenas um dos filhos, Francilene, terminou o ensino médio. E ela quer fazer engenharia da computação, algo exótico tanto pela escolha quanto pelo desejo de cursar o terceiro grau, algo que a maioria dos quilombolas nem chega a almejar.
Apenas os quilombolas que saem para trabalhar em outros lugares, como Seu Tinga, sabem o que é o preconceito, já que a maioria vive entre negros a vida inteira e não notam o racismo que existe na sociedade brasileira. “A parte branca sempre foi preconceituosa com os negros. Eu me achava feliz de ser negro porque na minha patota era feliz. Até que eu me vi como o único negro em uma equipe de geólogos com quem trabalhei, aí que vi o preconceito, eu ficava isolado deles”, explica.
De modo geral, as famílias são muito unidas e o respeito aos mais velhos é uma obrigação: as crianças e até mesmo os adultos pedem bênção aos mais antigos. Raramente falam palavrões e usam um vocabulário limitado para se comunicar – quando o fazem, porque o quilombola não gasta saliva à toa quando não tem nada importante a dizer. Palavras como “espia” e “agonia” são usadas em inúmeras situações e os sentidos mudam dependendo da ênfase do discurso. As portas das casas estão sempre abertas, qualquer um entra e sai, sem muitas formalidades, obedecendo a uma regra simples: deixar o calçado do lado de fora para não arrastar a terra para dentro de casa. Eles jogam tudo pela janela, de restos de comida a líquidos, considerando que o chão absorve e que logo vem um cachorro ou uma galinha para comer qualquer coisa que tenha sido jogada fora.
A rede é o objeto mais valorizado, já que serve como casa durante as expedições na mata em busca da castanha e da copaíba, óleo usado na indústria cosmética que se recolhe nas árvores e que são a fonte mais rentável entre os produtos vegetais extraídos. Uma árvore de copaíba pode dar até vinte litros em poucas horas e o litro é vendido a 25 reais. Enquanto com a castanha recebem 40 reais por um caixote de feira cheio delas, obtidas depois de uma manhã inteira de trabalho na mata. A vida simples do quilombola, na qual as crianças e bichos correm livres, não ressente da falta de facilidades como energia elétrica, água encanada ou banheiro. A convivência com essas “dificuldades”, do ponto de vista de quem mora na cidade, é natural para eles. Mas o que sim faria feliz ao quilombola seria matar as saudades dos filhos que moram longe, se pudessem falar com eles pelo telefone. Algo que, em 2014, ainda não podem fazer.