A luta das famílias vizinhas ao estádio de abertura do Mundial para não serem expulsas da nova área nobre da pobre zona leste
Talita Bedinelli – El País
No meio da tarde da última quarta-feira, tratores, guindastes e dezenas de homens trabalhavam em ao menos três canteiros de obra muito próximos nos arredores da avenida Miguel Inácio Curi, a 20 quilômetros do centro de São Paulo. A força-tarefa de ritmo frenético estava ali para aprontar em exatos 78 dias um estádio, uma praça, uma calçada acessível para os que vão assistir ao jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014 em 12 de junho e uma alça de acesso de uma via que liga a área até o aeroporto internacional, entre outras adaptações viárias que sozinhas custarão para a Prefeitura 108 milhões de reais. As obras estão, pouco a pouco, moldando um bolsão de riqueza no meio de uma das regiões mais pobres da cidade.
O estádio fica em Itaquera, zona leste de São Paulo, uma região onde vive 37% da população da capital paulista e que é a segunda mais densa da cidade depois do centro. A área tem 291 favelas e registra a menor renda familiar de São Paulo: em média 1.900 reais, 55% a menos do que ganham as famílias da zona oeste, a área mais nobre da cidade. A região também é a que tem a menor proporção de empregos disponíveis em relação à população, sempre de acordo com dados oficiais da Prefeitura.
A 900 metros dos trabalhadores do estádio, Sandra Aparecida Santos, de 61 anos, está sentada no degrau de uma casa simples de portão amarelo localizada em uma pequena viela por onde passam apenas duas pessoas por vez. No ano passado, um ano e um dia antes da abertura da Copa, ela perdeu sua filha Priscilla, de 29 anos, em um hospital público onde a jovem dava à luz seus filhos gêmeos e tem que cuidar agora dos quatro netos que ficaram. A casa pobre fica na favela da Paz, uma vila com cerca de 300 famílias que existe há mais de 20 anos espremida entre um córrego com cheiro de esgoto e as pilastras do pátio de manobras dos trens do Metrô. Quando ela ouve a repórter perguntar aos vizinhos o que havia mudado por ali com a chegada da Copa, interfere, sem titubear: “não mudou nada, não.”
Moradora da comunidade há 17 anos, ela embarcou ao lado dos vizinhos em uma montanha-russa desde o anúncio de que a Arena, conhecida popularmente como Itaquerão, seria construída para funcionar como o estádio paulista do Mundial, no segundo semestre de 2010. Na ocasião, ouviram, assim como todas as comunidades dali de perto, que inúmeros projetos de melhorias na região que estavam “engavetados” seriam colocados em prática de uma vez. E isso implicaria na remoção de milhares de famílias pobres que viviam em favelas iguais a dela. Os primeiros boatos, não confirmados pela Prefeitura na época, davam conta de que mais de 1.500 famílias seriam desalojadas. E favela da Paz, com vista privilegiada para o estádio, estava no topo da lista.
Sem saber o que de fato era verdade e com medo de serem expulsos da noite para o dia de suas casas, que estão localizadas em terrenos irregulares, começaram a se mobilizar ajudados por movimentos sociais do bairro. “Depois de um tempo, descobrimos que a Prefeitura pretendia colocar em prática um projeto de 2004 para transformar essa área em um parque”, conta o professor Valter de Almeida Costa, do Movimento Nossa Itaquera. Depois de muito questionarem o poder público, só obtiveram a informação quando acionaram a Defensoria Pública e o Ministério Público. Um cronograma das obras, obtido no início de 2012, apontava que a favela da Paz seria despejada até 2014. O motivo, segundo a Prefeitura, é que a área onde eles estão é de risco, por isso viraria parque.
O documento apontava as diretrizes de um projeto com “ações para preparar a região para a abertura da Copa”. Em troca, os moradores receberiam da Prefeitura uma bolsa para pagar um aluguel no valor de 300 reais por mês, o que os obrigaria a mudar para locais ainda mais distantes do centro, onde muitos trabalham, já que, com as obras da Copa, os preços dos aluguéis dispararam na região. Um imóvel de quarto e sala, que antes das obras custava o valor da bolsa, passou a valer, no mínimo, 700 reais por ali. “Adotamos como lema: chave por chave. Se a comunidade sairia, seria para um conjunto habitacional permanente”, conta Antônio Carlos de Souza, militante da entidade Comunidades Unidas, formada a partir do impasse, que participa da articulação de Comitês Populares da Copa,um dos grupos que mobiliza os protestos contra a Copa no país.
Com a resistência da comunidade, veio a represália. Ainda no começo de 2012, um ramal clandestino de ligação de energia elétrica, usado há anos pela favela, foi cortado, deixando grande parte dos moradores no escuro. O desligamento, que não era ilegal, foi feito pela Eletropaulo, a pedido da Polícia Militar, que disse que recebeu denúncia dos gatos e temia que ocorresse um incêndio. Na época, o Ministério Público suspeitou que o pedido havia partido da própria Subprefeitura, que tinha a frente um coronel reformado da PM, para forçar a saída da comunidade. A Prefeitura e a PM negaram. E os moradores ficaram.
No primeiro semestre de 2013, a comunidade descobriu que havia um mandato de reintegração de posse para retirá-los do terreno em abril daquele ano. Com o intermédio do Ministério Público e de vereadores, eles conseguiram pressionar o município que, finalmente, suspendeu o pedido. E, provavelmente impulsionados pelo medo, primeiro dos ventos de revolta que culminaram nos protestos sociais de junho daquele ano, depois, das críticas que o governo da petista Dilma Rousseff recebia pelos gastos com a Copa do Mundo, que teve os estádios mais caros dentre as edições do Mundial, começou o diálogo com a Prefeitura recém-adquirida pelo também petista Fernando Haddad.
O projeto de retirada da comunidade foi dividido em duas fases. A primeira, formada por um grupo de 101 famílias que vivem às margens do córrego, deve ser desalojada até junho, o mês de início da Copa, quando receberão as chaves de apartamentos que ficam a dois quilômetros dali. O outro grupo sairá bem depois da Copa, até 2016, para um conjunto mais próximo. Preferiram se beneficiar da vizinhança “rica” que terão.
Drancy Silva, 53, líder comunitário da favela, está no primeiro grupo. Sua casa de concreto, com um pequeno banheiro e um quarto onde cabe uma cama de solteiro e uma mesa com computador, tem das janelas vista para o córrego malcheiroso. “Eu não vejo a hora de sair. Só quem vive nessa situação sabe o que é”, desabafa. Mas ele teme, apesar da garantia da Prefeitura, que os prédios não fiquem prontos no prazo prometido. “A gente vê esse monte de operário trabalhando no estádio e quando visita as obras no nosso prédio parece que tem quatro pessoas na obra, que já ficou parada um tempo”, diz ele. O prédio do conjunto onde eles vão viver foi invadido durante alguns meses por membros do movimento sem teto, que protestavam contra o que chamam de lentidão das políticas de habitação da Prefeitura.
“Aqui nós somos brasileiros, gostamos da Copa. Mas estamos sentindo os efeitos dela na pele. Há esse monte de verba para construir a infraestrutura para os jogos, e para a gente? O que fazem? Olha lá o hospital Santa Marcelina, recebeu verba por causa da Copa, mas os moradores vão lá e falta médico, falta anestesia. Só vai funcionar para os jogos”, afirma. Na mesma quarta-feira que os operários da Copa trabalhavam, passar por um médico poderia demorar quatro horas no pronto-socorro.
O hospital Santa Marcelina, gerido por uma entidade filantrópica em parceria com o Governo Estadual, é para onde serão levadas as ocorrências médicas do estádio. Ele recebeu 7 milhões de reais do governo para a construção de um novo pronto-socorro, que deve ficar pronto às vésperas do mundial. Os moradores esperam que a nova verba ajude a melhorar a situação da saúde na região, já que o hospital é o principal local de atendimento dali. Também esperam as melhorias que o sistema público de transporte deve ter. Nove novos e modernos trens foram comprados pelo Governo estadual para a linha 11-Coral, onde funcionará o expresso da Copa, com trens que nos dias de jogo sairão da Luz (no centro) para Itaquera em 18 minutos, percurso que em dias normais dura 45 em vagões superlotados na hora de pico. Todos os trens já foram entregues –o primeiro em outubro de 2012 o último em julho de 2013- mas ainda não estão sendo usados pela população. O Governo diz que eles estão em fase final de testes e os maquinistas estão sendo treinados para conduzi-los. Eles estarão disponíveis neste semestre, mas não há uma data específica.
Depois da luta para ficarem em suas casas ou saírem apenas para um lugar melhor e da espera dos novos apartamentos, a comunidade, esquecida durante muito tempo pelo poder público, só espera, agora, não ser escondida das vistas dos turistas. Os boatos de que um tapume será implantado na entrada da comunidade para “embelezar” os arredores do estádio já circulam pelas vielas estreitas. E, se isso acontecer, eles prometem incendiá-lo para se fazerem vistos.