Gabinetes superlotados ou com assessores filiados convivem com consultores legislativos que fazem o trabalho duro, sem chamar a atenção – para não tirar o holofote dos parlamentares
Por Sérgio Praça, A Pública
Para entrar em qualquer ministério no Brasil, é preciso ter hora marcada com algum servidor. A recepção do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Legislativo, funciona do mesmo jeito. Na Câmara dos Deputados e no Senado, a dinâmica é outra. Qualquer visitante faz um rápido cadastro e tem o acesso liberado, sem precisar marcar hora. São “Casas do povo”, onde 513 deputados federais e 81 senadores reúnem-se em comissões permanentes, criam Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), conversam sobre quais projetos do governo vão apoiar ou atacar e propõem e votam projetos de lei e propostas de emenda constitucional, entre outras atividades. Como costumam disputar a reeleição ou outros cargos públicos, os 594 representantes procuram aparecer como idealizadores e realizadores de tudo que se passa no Congresso Nacional. Mas eles, é claro, não trabalham sozinhos.
Há 6.163 funcionários no Senado, sem contar terceirizados, e 18.839 na Câmara dos Deputados – concursados ou não – que aconselham, guiam, informam e assessoram os parlamentares. O trabalho dessas pessoas é ainda muito pouco conhecido, quase invisível para quem não acompanha de perto a rotina do Legislativo. Para desvendar esse lado oculto da capital federal, foram feitas 17 entrevistas: oito pessoalmente – em duas viagens a Brasília, em novembro do ano passado e janeiro deste ano –, seis por e-mail e três por telefone. A reportagem traz um levantamento inédito sobre como funcionam os gabinetes dos senadores. Pela primeira vez os nomes dos funcionários da Casa foram cruzados com os dados de filiação partidária mantidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O resultado mostra que, em junho de 2013, 16,1% das pessoas que trabalhavam nos gabinetes dos senadores eram filiadas a algum partido. Alguns senadores praticam contratações cruzadas – ou seja, empregam em seus gabinetes pessoas que são filiadas a partidos diferentes do seu.
Além disso, havia na época 1.336 funcionários em escritórios políticos estaduais, nas bases políticas dos senadores. “Nenhuma dessas práticas é irregular, mas podem indicar uso eleitoral de pelo menos alguns dos cargos disponíveis para os senadores”, afirma o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo (FGV-SP). Apesar disso, o Legislativo encontra capacidade institucional – ou seja, a capacidade de realizar, de maneira plena, suas funções constitucionais – em outras instâncias além do gabinete. A principal delas é a consultoria legislativa e orçamentária, mantida tanto pela Câmara dos Deputados como pelo Senado. A segunda parte da reportagem mostra o que fazem os 341 consultores legislativos do Congresso (184 no Senado e 157 na Câmara, segundo dados de janeiro). Eles são responsáveis por assessorar os parlamentares, de maneira mais técnica e menos política, a fazer projetos de lei, a escrever pareceres aprovando ou rejeitando projetos e a trabalhar nas comissões parlamentares.
Gabinetes flexíveis
Ao assumir o cargo, todo senador tem certa liberdade para montar seu gabinete. Ele pode optar por contratar alguns funcionários concursados do Senado ou vários funcionários com cargos de confiança (ou seja, sem concurso). O ato administrativo n.º 14 da Comissão Diretora do Senado, de 22 de maio de 2013, define que até 55 cargos de confiança estão disponíveis para o gabinete de cada senador, mas há um limite de R$ 70 mil para manter esses cargos. Ou seja, um senador pode optar por ter poucos funcionários bem remunerados ou muitos ganhando bem menos. Dos 6.163 funcionários do Senado (todo o Senado, não apenas os gabinetes, sem contar os terceirizados) que lá trabalhavam em junho de 2013, 3.148 ocupavam cargos de confiança e 3.015 eram efetivos. Quando se fala de cargos de confiança no governo federal, uma confusão costuma ser feita pelo fato de que funcionários concursados podem ocupar esses cargos. Aliás, apenas em torno de 6 mil dos 22 mil cargos de confiança do governo federal são ocupados por pessoas que não fizeram concurso.
No Senado, a coisa é diferente. Cargos de confiança são usados para manter assessores políticos que fazem, entre outras coisas, a comunicação do senador com a sociedade; o acompanhamento das emendas orçamentárias do parlamentar; uma parte da assessoria legislativa (o resto é feito pelos consultores legislativos, concursados); a parte operacional da agenda política, reserva de hotéis etc; e, por fim, a assessoria política do gabinete. “A parte política da assessoria é crucial. Os assessores do senador servem como intermediários no contato entre prefeitos e os ministérios que podem direcionar verba para os municípios”, disse-me o chefe de gabinete de um senador, que pediu para não ser identificado. Essa função é legítima e admitida pelo senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP). “São Paulo conta com 645 municípios e acredito que muitos de seus gestores nunca puderam vir até Brasília para se informar sobre recursos e programas disponíveis para as suas cidades”, afirmou o senador, por meio de sua assessoria, via e-mail. “Eu e minha equipe temos uma forte presença junto a esses representantes, atendendo-os em meu gabinete em São Paulo, recebendo pedidos de demandas e oferecendo orientações sobre os principais programas do governo. Desde que assumi o mandato de senador, já empenhei emendas ao orçamento direcionando recursos para quase cem cidades de São Paulo. Os funcionários do meu escritório político no estado são parte fundamental nesse trabalho.”
O tamanho da estrutura
Um gabinete “clássico” tem sete servidores concursados que ocupam funções de confiança: um chefe de gabinete (que recebe R$ 2.365, mais o que ganha com relação ao cargo concursado), um subchefe de gabinete (que recebe R$ 1.650 nas mesmas condições) e cinco assistentes técnicos (que recebem R$ 1.036 cada um, nas mesmas condições). Mas o senador pode optar por contratar um assistente técnico parlamentar em vez de dois. Com isso, pode remunerá-lo com R$ 3.768, mais o que esse funcionário já ganha pelo cargo concursado que tem (no mínimo R$ 3.300, podendo chegar a R$ 26 mil). Com relação aos funcionários que não fizeram concurso para o Senado, um gabinete tem, classicamente, 12 deles: cinco assessores técnicos, seis secretários parlamentares e um motorista. Mas cada assessor técnico e cada secretário parlamentar pode ser substituído por três assistentes parlamentares de diferentes salários.
Em junho de 2013, quando já vigoravam as regras descritas acima, o gabinete do senador Fernando Collor (PTB-AL) era recordista em número de pessoas: contava com 64 funcionários. “Essa estrutura deve ter mais a ver com a dinâmica eleitoral do que com o funcionamento do Senado, pois ninguém precisa de tanto assessor para fazer um bom trabalho”, afirma o cientista político Cláudio Couto, da FGV-SP. “Quando Plínio de Arruda Sampaio era deputado federal, eu trabalhava para ele. Ele pagava três funcionários em São Paulo com recursos da Câmara dos Deputados e pagava a secretária do próprio bolso. Três funcionários era pouco, mas acima de 20 é excessivo. Era a época da Constituinte, e o Plínio tinha um papel importantíssimo no diálogo com movimentos sociais”, diz o sociólogo Clóvis Bueno de Azevedo, também professor da FGV-SP. “Um parlamentar precisa de cinco ou seis bons assessores em Brasília e de cinco ou seis no seu estado. Isso está ótimo tanto para um deputado quanto para um senador. O resto é usado para construir a base política, para fins eleitorais mesmo.”
Além disso, lembra Couto, faz sentido contratar poucos assessores e pagar um salário alto para atrair bons profissionais. Um número menor (ou intermediário) de assessores extremamente especializados pode ajudar o senador a trabalhar nas comissões, que têm jurisdição abrangente, ou seja, tratam de muitos assuntos ao mesmo tempo. Mas a experiência prévia dos parlamentares pode atrapalhar a busca por uma equipe mais preparada. “Muitos senadores já tiveram cargos no Executivo e estão acostumados com equipes grandes e certas mordomias. Cada senador tem direito a um carro, o deputado federal, não”, disse-me a chefe de gabinete de um senador, que pediu anonimato. Seu raciocínio faz sentido: 24 senadores já foram governadores (e outros quatro foram candidatos ao governo), 11 foram ministros, dois foram presidentes, sete foram secretários estaduais, dois foram prefeitos e 16 foram deputados federais. Apenas 16 senadores não tiveram cargo político relevante antes de assumir o mandato em Brasília.
Assessores com partido
O cruzamento da lista de funcionários, obtida no Portal de Transparência do Senado, em junho de 2013, com a relação completa de todos os filiados a partidos políticos, disponibilizada pelo TSE, mostra que 16,1% dos assessores de gabinete dos senadores são filiados a partidos. Os campeões de filiados trabalhando com esses parlamentares são o PMDB (48), o PT (41), o PSDB (29), o PDT, o PTB e o DEM (27 cada) e o PSB (26). A vantagem de contratar militantes é clara. São pessoas que tendem a conhecer mais o trabalho do senador ou que talvez já tenham trabalhado em sua campanha. Saber isso com exatidão é muito difícil, porque as campanhas eleitorais não fornecem os nomes de funcionários e voluntários.OBS.: Entre os sem partido, há 2418 servidores com cargo de confiança e 2705 servidores concursados.Há mais três senadores, um do PROS (Ataídes Oliveira, Tocantins) e um do SDD (Vicentinho Alves, Tocantins), e um do PSD (Sérgio Petecão, Acre) , cujos partidos não estão contabilizados aqui, pois não havia dados de filiação em Junho-2013 para essas legendas. O senador Gim Argello (PTB-DF), que empregava, em junho, 27 funcionários filiados – 11 deles ao seu partido, o PTB –, discorda. “Muitas vezes essas pessoas são filiadas há muitos anos e não têm mais qualquer relação formal com esses partidos. Diríamos que são filiações que, na prática, não existem mais”, afirmou, via e-mail, pela sua assessoria. “Pautamos as contratações pelo critério técnico. Ou seja, as pessoas precisam estar qualificadas para exercer as funções que forem destinadas a elas. Agora, como todo gabinete parlamentar, há ainda o viés político. Recebemos e analisamos indicações partidárias e até suprapartidárias de setores com os quais temos ligações políticas. (…) Há indicações do PTB, mas também de outros segmentos. E, nesse caso, não fazemos qualquer tipo de censura ou imposição partidária, desde que a pessoa trabalhe com correção e lealdade.”
Outros senadores consultados ecoam as justificativas de Argello. “Funcionários do meu gabinete são contratados a partir de uma prévia avaliação curricular”, disse a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO). “Posteriormente, são submetidos a entrevistas. Nessas etapas, privilegiamos a experiência, perfil profissional que seja adequado ao perfil do nosso mandato e características que atendam à função que cada um irá exercer. Depois, eles ainda são submetidos aos critérios de contratação estipulados pelo Senado – entre eles, o Ficha Limpa para todos os servidores.” Em junho do ano passado, havia quatro filiados no gabinete da senadora, um deles ao seu partido. Há também a questão das contratações cruzadas. Elas ocorrem quando o senador do partido X mantém, em seu gabinete, funcionários dos partidos Y e Z. Em junho de 2013, quando foram coletados os dados para esta reportagem, havia 196 funcionários nessa situação. O senador Jorge Viana (PT-AC) contratou um funcionário do PSDB e a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) tem uma funcionária petista, por exemplo. “Não tenho conhecimento de quem são os assessores filiados a cada partido citado por sua pesquisa. Essa informação foi desconhecida ou irrelevante no ato da contratação”, afirmou a senadora. Outro exemplo: Collor tem um funcionário filiado ao PT. Para o cientista político Cláudio Couto, é estranho alguém do PSDB contratar um assessor filiado ao PT. “Mas pode ser que o sujeito tenha um conhecimento específico e é contratado apesar da filiação partidária. Pode ser também que os dados de filiação partidária estejam desatualizados e o sujeito não seja mais do partido que o TSE diz que ele é”, disse.
Escritórios estaduais inflados
Para fazer o trabalho político no estado, os senadores são autorizados a manter um escritório com funcionários pagos pelo parlamento. Havia 1.336 funcionários trabalhando nos escritórios políticos estaduais dos senadores. Desses, 449 (33,6%) são filiados a partidos políticos. O uso dos escritórios estaduais varia muito entre os senadores. Em março deste ano, o recordista era João Vicente Claudino (PTB-PI), com 42 funcionários em seu escritório estadual. O senador não respondeu ao pedido de entrevista.
OBS.:Há apenas 80 senadores pois Gleisi Hoffman assumiu o cargo após a coleta dos dados. Portanto, haveria dados referentes ao mandato de Sérgio Souza, que não está mais no Senado. Os dados são referentes apenas aos funcionários dos gabinetes, excluindo os funcionários dos escritórios políticos estaduais.
A senadora Vanessa Grazziotin (PC do B-AM) mantém 29 funcionários no estado – 16 são filiados a partidos, sendo 14 deles ao PC do B. “Eles são os responsáveis pela permanente prestação de contas das nossas atividades em Brasília no estado do Amazonas. Consideramos o atendimento à população uma obrigação e um dever”, afirmou a senadora, por e-mail. “Nossa estrutura em Manaus comporta assessores capacitados para dialogar com os mais diversos setores da nossa sociedade e atuam para que o mandato seja transparente e ao mesmo tempo referenciado nas legítimas aspirações e demandas do povo do Amazonas.” Em contrapartida, o senador Eduardo Braga (PMDB-AM), do mesmo estado, afirma que apenas dois funcionários em seu escritório político estadual bastam para fazer um trabalho de boa qualidade. Ele mantém, contudo, 57 funcionários em Brasília e é o quinto senador com maior número de pessoas no gabinete. “Os profissionais que hoje estão alocados em Manaus são importantíssimos no apoio ao trabalho legislativo que desenvolvo quando não estou em Brasília. Eles recebem pessoalmente os políticos e parlamentares do estado quando estou em Brasília, analisam as demandas, organizam minha agenda no estado, levantam informações sobre o Estado, entre outras atividades. O número de profissionais é adequado para atender às demandas existentes.”
Em junho do ano passado, o senador Ruben Figueiró (PSDB-MS) era um dos cinco senadores que não tinham escritório político estadual. “Não sou candidato a novo mandato. Após mais de 60 anos de militância política e atividade pública, creio haver cumprido a minha missão e os ideais que sempre alimentei”, afirmou o senador, em e-mail, por meio de sua assessoria. Em março deste ano, no entanto, Figueiró passou a contar com nove funcionários no seu escritório estadual. Se em Brasília os critérios para a contratação de servidores são mais relativos à “capacidade técnica desses funcionários”, no escritório estadual o senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP) afirma que considera “o perfil político” de seus servidores, além do conhecimento sobre recursos e programas do governo federal. Uma parte relevante do trabalho de assessoria parlamentar dos senadores é feito por funcionários escolhidos de acordo com critérios políticos e partidários. Como veremos na segunda parte desta reportagem, o trabalho mais técnico – redação de projetos de lei, elaboração de pareceres favoráveis ou contrários a projetos etc – é feito por um corpo de funcionários à parte. São os consultores legislativos.