Para juízo federal de Paracatu, a titulação das terras quilombolas “expõe um efeito nefasto à segurança jurídica do direito de propriedade no Brasil”
Ministério Público Federal em Minas Gerais
O Ministério Público Federal em Paracatu (MG) recorreu de sentenças proferidas pela Justiça Federal que negou pedidos de reparação a comunidades quilombolas em virtude da expansão de empreendimento minerário pertencente à empresa canadense Kinross Brasil Mineração S.A.
Segundo o MPF, a “Kinross acabou por expulsar, mediante uso abusivo do poder econômico, os integrantes das Comunidades Quilombolas Machadinho e Família dos Amaros de suas terras, pressuposto indissociável de sua sobrevivência e existência cultural. A nova barragem de rejeitos foi construída quase que inteiramente no território Machadinho, e os distúrbios e transtornos causados pelas obras acabaram por expulsar os remanescentes da Família dos Amaros do local. Sobraram, ainda, incontáveis arranhões e ataques a direitos existenciais da comunidade São Domingos, entre eles o direito à saúde e à preservação de seu modo de vida”.
A Kinross Brasil Mineração, que incorporou a antiga Rio Paracatu Mineração, é uma subsidiária da Kinross Gold Corporation, empresa global com sede no Canadá. Desde 2006, a Kinross trava uma batalha nos bastidores contra as comunidades quilombolas de Machadinho, Amaros e São Domingos.
As terras pertencentes a essas comunidades, reconhecidas pelo Incra, foram utilizadas no projeto de expansão da mina, que está situada a dois quilômetros ao norte da cidade de Paracatu, região noroeste de Minas Gerais. Diversos membros das comunidades teriam sido vítimas de ameaças veladas por parte da Kinross para obrigá-los a negociar seus territórios. Pelo menos duas pessoas teriam solicitado inclusão no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos.
Ocorre que uma das condicionantes da licença de instalação e operação consistia exatamente na exigência de medidas reparadoras, compensatórias e indenizatórias em relação aos impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais do empreendimento sobre as comunidades quilombolas, bem como a efetiva e concreta implementação de projetos em face dos danos já causados e que ainda advirão do empreendimento.
E apesar de a condicionante não ter sido cumprida, os órgãos ambientais estaduais concederam as licenças e o empreendimento não só foi instalado, como entrou em operação. As notícias dão conta de que, em pouco mais de dois anos, a extração de ouro em Paracatu triplicou a produção anual da empresa.
O MPF/MG viu-se obrigado a ingressar em juízo para pedir que os direitos das comunidades quilombolas, já violados, fossem reparados pela Kinross.
Pensamento escravocrata – Ao julgar improcedentes as ações, o juízo federal de Paracatu disse entender que “a proteção constitucional dedicada aos quilombolas não alcança as comunidades tratadas neste feito”.
Segundo as sentenças, nem todo descendente de ex-escravo pode ser considerado quilombola, porque, para tanto, ele teria que provar que descende de escravo foragido. “Em nenhum dos estudos das comunidades tratadas nos autos, houve o levantamento de registros policiais ou relatos de repressão estatal (…), descaracterizando a realidade de um quilombo, sob o ponto de vista histórico”.
Para o MPF/MG, essa visão revela “apego injustificado ao pensamento escravocrata, impregnado de discriminação, em pleno século 21. Basta ver que a legislação colonial escravocrata conceituava, para fins penais e repressores, o quilombo de forma idêntica à posta na sentença: toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles” (Conselho Ultramarino de 1740)”.
O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu que “a conceituação de quilombos como o escravo fugido de seu proprietário favorece unicamente ao senhor escravista. Os quilombos se constituíram não apenas através das fugas com ocupação de terras livres e isoladas, mas, igualmente, através de heranças, doações, compras, recebimentos de terras com pagamento de serviços prestados, entre outras formas, anteriores ou posteriores à abolição” e lembra que as comunidades podem ser consideradas resistentes, “pois de alguma forma chegaram até os dias atuais ocupando área de uso comum em meio de uma série de infortúnios, sofrimentos e adversidades, como resistência da Marinha, a especulação imobiliária e o preconceito racial”.
Autorreconhecimento negado – Nas sentenças, os magistrados chegam a negar o direito de autoidentificação das comunidades quilombolas, contestando os laudos produzidos pelo Incra, para dizer que “enquanto não houver ultimação de todo o procedimento de reconhecimento e titulação no âmbito administrativo, as três comunidades tratadas não são consideradas quilombolas aptas a merecer proteção especial pela Constituição”. Em determinado momento, citando artigo publicado em veículo de imprensa, afirmam que a titulação das terras quilombolas “expõe um efeito nefasto à segurança jurídica do direito de propriedade no Brasil”.
Ao apelar das sentenças, o MPF/MG lembra que o critério antropológico de autoidentificação do grupo étnico foi reconhecido pela Convenção 169 da OIT e ratificada pelo Congresso Nacional e afirma que “a análise que na sentença se fez da situação jurídica dessas comunidades é insubsistente, eis que ausentes nos autos provas – sequer alegação – de que não são quilombolas”.
Na verdade, a leitura das decisões judiciais permite inferir que os magistrados se basearam, substancialmente, em provas inexistentes, especialmente em um parecer sobre a Região do Pituba que não existe nos autos. “Se o que não está nos autos não está no mundo, referido documento jamais poderia ter sido usado como fundamento para a decisão”, defende o Ministério Público Federal.
O juízo federal também subverteu a lógica jurídica ao dizer que os laudos antropológicos do Incra não seriam merecedores de maior credibilidade do que um parecer produzido por antropólogo contratado pela Kinross, “esquecendo que os atos administrativos gozam de presunção de verdade e legitimidade”, sustenta o recurso.
Para o MPF/MG, a Justiça Federal desconsiderou todo o processo de coação e pressão exercido pela Kinross sobre as três comunidades quilombolas e acabou por chancelar o caminho da expulsão de todos os integrantes da Família dos Amaros e Machadinho do seu território reconhecido pelo Incra e certificado pela Fundação Palmares. “Isso em benefício da gana incessável pelo lucro sem fim (e sem proporcionalidade e razoabilidade) da gigante apelada. Em outros termos, perde a história do Brasil e de Paracatu e ganha o capital e o ouro”.
Irregularidades ambientais – Os recursos do Ministério Público Federal também apontam uma série de omissões na atuação do órgão ambiental estadual Supramnor (Superintendência Regional do Meio Ambiente do Nordeste de Minas).
Em 2008, peritos do MPF/MG já alertavam para a necessidade da divulgação trimestral de relatórios sobre os parâmetros e diagnóstico das águas superficiais e subterrâneas no entorno da mina. Na verdade, a apresentação de relatórios trimestrais estava prevista na própria Licença Ambiental de Operação.
No entanto, quatro anos depois, em abril de 2012, o órgão ambiental estadual informou ao MPF/MG que, até aquela data, não havia feito diligências para conferir a real execução do programa de monitoramento das águas pela Kinross. Seis meses depois, a situação continuava inalterada.
“A inércia e a omissão da Supramnor na fiscalização do empreendimento atrai o poder-dever do Ibama de atuar supletivamente, para suprir a atuação deficiente do órgão estadual, o que acarretaria a necessidade de se realizar novo licenciamento para o Projeto de Expansão e Lavra II, no Morro do Ouro, em Paracatu/MG”, sustenta o MPF.
Os recursos serão julgados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília-DF.