Pouco mais de duas décadas atrás, chegou à casa dos meus pais um PC-AT 486.
Vocês, que não riram do “Piada em Debate”, da saudosíssima TV Pirata, não tiveram a Gigi, do Bambalalão, como referência de beleza e não se frustraram porque seus pais não podiam compram um Pegasus ou um Colossus, quiçá um Maximus, não saberão do que estou falando.
Na época, era uma sensação – não havia nada mais rápido. Meu pai atua com engenharia, então aquilo era visto como um instrumento de trabalho necessário, não um “brinquedo” – como ressaltava a minha mãe. Ou seja, havia até certa reverência à máquina branca, que desbancou a televisão e um vaso de estimação e ocupou o lugar de objeto mais importante da sala.
Lembro que o meu micro Expert, da família do Hotbit, que rodava programas a partir de fitas cassetes, fugiu de casa de vergonha. Nunca mais foi visto.
Os programas vinham em vários disquetes de 5¼ ou 3½ e levavam horas para serem instalados.
Hoje, um pendrive vagabundo equivale a mais de 1000 desses.
Mas quem se importava? O ruído da impressora matricial mastigando a fita – que fazia o cachorro latir e só podia ser usada durante o dia, pois à noite acordava os vizinhos – era o estado da arte da tecnologia.
Hoje, uma impressora parece que está desligada enquanto imprime. E ainda faz cafezinho e cafuné.
E, é claro, havia o acesso à rede. O computador da casa tinha uma placa de modem discado de 2400 bps de velocidade, com a qual eu acessava BBSs, onde trocava arquivos com amigos. Não havia a comodidade de um ambiente de browser bonitinho. Era roots, meu amigo e minha amiga. E trocar arquivos era um programa lúdico – para baixar uma merreca de 1Mb levava-se uma eternidade.
Hoje, meu celular faz isso na velocidade de um torpedo.
Um dia especial foi quando criei meu primeiro e-mail. Hoje, olhando daqui, me sinto um completo idiota. Com medo de não ser achado ou ser confundido com outra pessoa, criei o endereço [email protected] (sim, eu tenho nome do meio). Faltou só o RG e o CPF para poder abrir conta em banco. Tirando os informes do provedor, nunca recebi uma mensagem sequer.
Anos depois, meu pai vendeu o 486 e comprou outro, mais novo. Lembro que minha mãe ficou possessa porque iam pagar apenas uma parte ínfima do valor que havíamos pago, em suadas e longas prestações. Não adiantou falar que a tecnologia avança, barateira, Lei de Moore, essas coisas. Se o carro podia ser vendido por mais da metade do preço de compra, por que o micro não?
Enquanto escrevia este texto, baixei um documentário que me enviaram e ainda sobrou tempo se quisesse carregar um ou dois episódios de House of Cards – como não amar Frank Underwood?
Enfim, tudo isso para dizer que as histórias podem ser engraçadinhas mas não tenho a mínima saudade da tecnologia daquele tempo.
Como certamente também não terei daqui a duas décadas sobre esta nossa pré-história tecnológica – que renderá excelentes piadas aos nossos bisnetos.
– Hahaha! Põe de novo o holograma daquele cara do século 21 usando teclas para escrever!
– Não, não, mostra aquele em que a mulher colocava energia no celular por uma tomada hehehe.
– Não, melhor! Carrega aquele outro de deputados brasileiros defendendo que ricos tivessem acesso diferenciado à internet.
– Pô, cê quer ver pornografia? De novo?
A Câmara dos Deputados está para votar o Marco Civil na internet. Construído ao longo de anos, num processo com participação da sociedade, o documento é uma espécie de “Constituição” da internet, uma carta de princípios que prevê os direitos dos usuários e deveres das prestadoras de serviço e do Estado. Mas as operadoras de telecomunicações e deputados federais que defendem os seus interesses estão tentando melar a história, que deve ir à votação nesta semana.
Hoje, quando contrata o acesso à internet, você conta com a mesma velocidade independentemente se estiver mandando um e-mail, tramando uma revolução pelas redes sociais, baixando um filme adulto em um site proibido para menores ou fazendo uma DR pelo Skype. O que as teles querem fazer? Ter o direito de bisbilhotar na sua navegação para saber que tipo de conteúdo e/ou serviço você está acessando a fim de criar pacotes diferenciados de acesso. Assim, se você quiser baixar ou subir vídeos, por exemplo, terá que contratar um plano “plus-master-blaster”. Se ficar só no pacote básico, só vai poder mandar e-mail e usar o Facebook.
Na prática, poderá ser criado um apartheid digital, com usuários de duas classes distintas: os que podem pagar para ter acesso à internet “completa” e os que, mais uma vez, terão seu direito de acesso à informação e liberdade de expressão na rede cerceado por seu limitado poder de compra. Triste, né?
A rede possibilitou uma revolução em nossas vidas, revolução essa que não sabemos onde vai dar. O que é fascinante.
O problema é que se as operadoras conseguirem impor sua vontade no Marco Civil, elas vão controlar não apenas a velocidade de conteúdo na rede, mas também a velocidade com a qual se desenrola essa revolução. Regular, neste caso, não significa restringir, mas sim garantir direitos. Evitar que o garoto mais forte da escola roube o lanche dos menores.
Daqui 20 anos, aonde você quer estar? Rindo do que ficou para trás ou lamentando o quanto poderíamos ter caminhado?