Os camponeses que viviam ali, naquele sertão da Bahia, jamais haviam testemunhado tamanha barbárie. O que se passou dentro de casa foi um suplício familiar
Preso político? O que é isso? Eu nasci em 1984 e devia ter uns 6 anos de idade quando escutei essa denominação em uma estranha conversa dos meus pais. Meu pai teve o cuidado de me convencer que eu não entenderia naquele momento. Guardei aquele dia como se fosse hoje e, aos poucos, a expressão ganhou contornos. Lembro de ter acompanhado diversos jornalistas indo entrevistá-lo lá naquele sertão, em Brotas de Macaúbas, na Bahia. Por que tantas entrevistas? Carlos Lamarca, José Campos Barreto (Zequinha), Iara Iavelberg, Otoniel Barreto, Luiz Antônio Santa Bárbara, quem eram essas pessoas?
A grande oportunidade para entender melhor veio quando eu tinha 9 anos, pois foi lançado o filme Lamarca dirigido por Sérgio Rezende com base no livro Lamarca: O Capitão da Guerrilha escrito pelos jornalistas Emiliano José e Oldack Miranda. Nas cenas do filme vizualizei um cenário de guerra no entorno e dentro da casa dos meus avós no povoado de Buriti Cristalino. Aqueles torturadores assassinos buscavam Lamarca e Zequinha. Um era capitão do Exército que recusou servir à ditadura saindo em 1969 e o segundo era um operário que esteve sob tortura do Dops de São Paulo por estar à frente da greve da Cobrasma, em 1968. Os dois passaram a viver na clandestinidade e suas vidas se cruzaram decisivamente.
Foram cassados como bichos para serem exterminados, e para isso o Exército brasileiro e toda sua estrutura civil-empresarial de colaboração armou a famigerada Operação Pajussara, liderada pelo então major Nilton Cerqueira e pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Primeiro mataram Iara Iavelberg que havia fugido com Lamarca mas estava em Salvador no dia 20 de agosto de 1971. Outra equipe seguiu para localizar o paradeiro de Lamarca e Zequinha. Cercaram a casa no povoado de Buriti Cristalino fazendo todos que estavam dentro reféns no dia 28 de agosto de 1971. Jamais esquecerei a descrição que ouvi do meu pai, Olderico Campos Barreto, sobre a tortura que viveu. Arrancaram todas as suas unhas enquanto indagavam sobre o paradeiro de Lamarca e Zequinha. Ele não entregou nem essa nem nenhuma outra informação. Esse local foi um campo de concentração da ditadura brasileira que marcou a violência contra camponeses no Brasil. Há um documentário recente intitulado Do Buriti à Pintada: Zequinha e Lamarca na Bahia, que contém importantes depoimentos das vítimas da época inclusive das cidades vizinhas. A família Barreto abrigou o capitão em sua pequena propriedade pois este foi um dos homens respeitáveis do Exército que resolveu lutar ao lado de quem era alvo do plano de opressão e exclusão.
Os camponeses que ali viviam jamais haviam testemunhado tamanha barbárie. O que se passou dentro da casa foi um suplício familiar. Santa Bárbara que também estava escondido tombou com um tiro na cabeça dentro da casa. Meu avô, José de Araújo Barreto, de tanta tortura gritava. Otoniel, seu filho de 19 anos, ficou desesperado e chegou a atirar em um soldado (mas não acertou) para tentar encerrar aquela dor provocada no seu pai. Saiu correndo e foi alvejado. Caiu morto. Sérgio Paranhos Fleury disputou com os outros soldados a autoria da morte. Olderico foi torturado na frente de toda população. Levou tiros, teve seus ferimentos como ponto de tortura onde jogaram produtos químicos e o costuraram sem nenhuma anestesia. Ao menos no seu rosto e na sua mão posso tocar as cicatrizes. No dia 17 de setembro de 1971 Lamarca e Zequinha foram assassinados no povoado de Pintada que pertence ao município de Ipupiara. No local foi construído o Memorial dos Mártires onde se deseja sepultar os filhos da terra mortos pela ditadura. Se for desejo da família, os restos mortais de Lamarca também podem ser transferidos.
A ditadura fez vítimas e ela sempre renegará. Na Bahia, o coronelismo já configurava suficientemente um regime opressor, e 1964 veio apenas para intensificar as dificuldades de vida das populações isoladas ou esquecidas país afora. Adelaide Campos Barreto, conhecida como dona Nair, minha avó, para mim também foi vítima. Ela recebeu como um golpe a informação contida em um telegrama em julho de 1968 o qual dizia que Zequinha estava preso e sofrendo por participar da greve. A ferida resultou em um câncer de mama, e dona Nair faleceu em 1970. Soube depois pelo bispo dom Luiz Flávio Cappio que meu avô relatou que chegou a se ajoelhar no chão agradecendo a Deus por ela não ter presenciado tamanha violência naquela casa em 1971. Me perguntei: que dor é essa que foi provocada capaz de suplantar a dor que o próprio já carregava por ter se despedido tão cedo da sua esposa a quem tanto amou?
Neste ano de 2014 completarão 50 anos do golpe e há quem diga que tudo isso que passou com a minha família e tantas milhares de outras não merece sequer ser lembrado. Enquanto isso, aquelas cicatrizes que toco no rosto e na mão do meu pai simbolizam uma ferida que inevitavelmente se abriu em mim. Nunca consegui visitar o túmulo dos meus tios durante as idas no cemitério do Campo Santo em Salvador, onde foram enterrados, pois não há nenhuma identificação e os registros antigos não estavam lá. Os assassinos privaram a família de ter por perto os restos mortais dos entes queridos e os levaram. Meu pai estava preso e não lhe foi permitido acompanhar o enterro. Espero que a existência da Comissão Nacional da Verdade possa proporcionar a exumação dos corpos de Zequinha e Otoniel e os devolva para a família ao menos cultuar a lembrança desses exemplares brasileiros.
*Thaís Barreto é jornalista, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Seu relato é parte de uma série de artigos que o site de CartaCapital publica sobre os 50 anos do golpe-civil militar de 1964.