Disputa, além de ser estudada pela CNV em virtude das graves violações de direitos humanos, é um exemplo de que a luta pela terra vale a pena, afirma Maria Rita Kehl
Por Analu Fernandes, em Comissão Nacional da Verdade
“Governador, de hoje em diante, ninguém mais abusa de mim.” Este foi o recado que o líder camponês José Porfírio de Souza enviou ao então governador do estado de Goiás, em fins dos anos 1950, dando início à luta pela posse da terra em Trombas. Infelizmente, José Porfírio não imaginava que estava por vir o golpe militar em 1964.
Com a ditadura, os abusos e perseguições que Porfírio de Souza e os camponeses da região de Trombas e Formoso (GO) viriam a sofrer seriam ainda mais contundentes. Zé Porfírio, o primeiro deputado camponês do Brasil, teve que fugir, se afastar da família e de sua terra. Foi preso, torturado e desapareceu. Até hoje a família não pode enterrar seu ente querido.
Neste sábado (15/03), toda a história de Zé Porfírio, de sua a família, amigos e companheiros que está diretamente ligada à luta pela posse da terra nos municípios de Trombas e Formoso (GO) foi rememorada por pessoas que conviveram com ele e pelos descentes destes.
Dirce Machado da Silva, ex- membro do PCB e participante da luta pela posse de terra na região, deu um depoimento emocionado e contou as terríveis brutalidades que os cidadãos sofreram naquele período. “Fizeram brutalidades inacreditáveis. Levaria muitas horas para contar tudo. Mas um fato muito importante, era a solidariedade da nossa turma. Até hoje eu considero a turma de Formoso a minha família. A gente era na doença, era no trabalho, era na hora de defender os nossos ranchos, éramos unidos.”
Esta união aumentou exponencialmente as torturas infligidas pelos agentes do estado aos camponeses da região. A própria Dirce, seu marido José Ribeiro da Silva e seu irmão César Machado da Silva foram presos e torturados a fim de que se revelasse o paradeiro de Zé Porfírio.
“Eles me bateram e disseram ‘se você não disser onde está o José Porfírio eu mato seu marido e seu irmão´. E me xingaram de vários nomes. Eu respondi: ‘não digo porque não sei. E se soubesse também não diria´. Daí eu quis morrer. Reuni todas as minhas forças e dei um tapa no soldado, que cambaleou. Então ele me deu um ‘telefone’ e eu desmaiei. Acordei toda molhada de cachaça e vômito”, relembra Dirce da Silva.
Além de seu depoimento emocionante que fez com que todos entendessem melhor a luta em Trombas e Formoso a fibra dos camponeses da região e o caráter doce e lutador de Zé Porfírio, a camponesa pode auxiliar a Comissão Nacional da Verdade ao entregar à integrante da CNV Maria Rital Kehl nomes de torturadores e ainda o depoimento de seu marido José Ribeiro e do companheiro de lutas Bartolomeu Gomes da Silva, o Bartu. Maria Rita agradeceu o depoimento e recebeu os documentos, que serão analisados.
Segundo o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Cláudio Maia, diante do conflito agrário, o Estado agiu na garantia do latifúndio e da exploração. “E Trombas foi um encontro de experiências, é o encontro que teve a presença de um partido de esquerda, porém o mais importante é que os militantes, os camponeses, eram pessoas que acreditavam no modelo camponês de fazer as coisas”, afirmou.
“Trombas ficou na memória do estado de Goiás como um movimento vitorioso. E a figura de Porfírio se tornou muito conhecida no estado. Ele espelhava não só sua individualidade, como também a sua luta e a luta de cada posseiro. Porfírio matinha a característica de uma liderança consolidada. Esta áurea da vitoria de trombas atravessou 1964”, afirma Dantas.
O professor informa ainda que José Porfírio virou uma síntese do comunismo em Goiás e os militares entenderam que tinham que minar esta figura. Assim, pós-64 todos que eram presos, ligados de alguma forma ao estado de Goiás ou ao movimento camponês tinham que dizer se conheciam ou não Zé Porfírio. “O Porfírio é citado em 17 processos”, diz Dantas.
Para a representante da Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita Kehl esta Audiência Pública foi muito importante visto que Trombas foi um dos movimentos importantes camponeses de luta pela terra.
“Este foi um movimento vitorioso. Vitorioso até certo ponto, e eu digo até certo ponto porque eles já estavam assentados na democracia. Depois da ditadura é que houve uma fortíssima e violentíssima repressão. Então acho que esta audiência pública é importante por dois motivos: um, evidentemente, porque nós temos que denunciar todas estas violações de direitos humanos, mas também é importante mostrar como um grupo organizado lutou e preservou a sua terra. E até hoje ainda existe o assentamento. Também é importante sabermos o outro lado – que não cabe à Comissão Nacional da Verdade, não é a nossa tarefa – mas eu acredito que paralelamente ao contar esta história e mostrar que mesmo com tudo isso que aconteceu, com toda a violência, eles conseguiram permanecer na terra. Vale a pena lutar pela terra.”
FILHOS – Um dos momentos mais emocionantes da audiência pública foram os depoimentos dos filhos dos camponeses que lutaram pela terra em Trombas e Formosos. Todos eles, em geral, lembram de um período de privações, de fome, de fuga da polícia, medo dos agentes do Exército e das maneiras que usaram para sobreviver e se manter firme diante da repressão. Mas, a perda do contato com os pais, o não saber o que estava acontecendo com eles, se voltariam a ver os pais algum dia foi o que mais doeu.
Zilda Pereira dos Santos, filha do preso político Nelson Marinho diz que o que mais a marcou era a tensão sempre que diziam que a polícia iria chegar a Trombas. “Ficávamos na expectativa porque sabíamos que ela não vinha à toa, vinha por algum motivo”. Sobre o pai, Nelson, ela diz emocionada: “Meu pai foi preso, amarrado pelado, num pau no mato, às vezes até apanhando, por causa de um pedaço de terra. Terra que ele lutou para conseguir para poder ter o sustento para os filhos comerem.”
Todos os descendentes concordam que a ditadura fez vítimas não só os seus pais. Também a cidade e várias gerações. Antônio Pereira da Costa, filho de Domingas e do perseguido político José Pereira da Costa, conta que desde os dois anos ficou separado do pai até o início da juventude. Esta separação causou grandes traumas segundo Antônio, pois seu pai, vivia fugindo da repressão militar, até mesmo para proteger a família. Os descendentes dos perseguidos políticos de Trombas foram as verdadeiras vítimas inocentes. E que este pedaço das suas vidas o Estado os deve. Para Costa, a repressão às famílias foi covarde. “Nós somos os condenados inocentes da ditadura militar em Trombas”, afirmou.
Antes do fim da audiência, Dirce Machado disse que sentia que tinha que mostrar para o mundo os horrores da ditadura:
“Esta juventude e muitas pessoas que não viveram e presenciaram os horrores não sabem o que é sofrer. Mas acho que temos que ressurgir das cinzas e estar prevenidos contras outras investidas. A onça não morreu. Ela está hibernada, e quando existe uma luta todo mundo quer ser o dono do pedaço do couro. E eles não querem saber quem participou. Então temos que estar vigilantes”.
Durante a audiência o deputado Mauro Rubem fez uma pausa para inaugurar a sala José Porfírio onde serão feitas apuração de casos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) estadual e será um espaço para reunião de lideranças. Também foi lançada a idéia de construir um busto a fim de homenagear o deputado desaparecido. Já a prefeitura de Trombas entrou com o pedido junto ao Iphan para que seja erguido o memorial José Porfírio de Souza. A pedra fundamental deve ser inaugurada em 7 de julho.
A audiência foi encerrada com a frase do jornalista e militante da luta de Trombas (GO), Sebastião de Abreu: “não vamos parar de lutar. Queremos que os militares devolvam os restos mortais de José Porfírio”.
Comissão Nacional da Verdade
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.