Golpe militar de 1964 foi antecedido de articulação que uniu as Forças Armadas, o empresariado, partidos políticos e setores conservadores da classe média e da Igreja
Por Lucilia de Almeida Neves Delgado, em EM
O golpe político que, em 1964, mudou, com profundidade, a realidade do Brasil foi ensaiado ou anunciado ao menos em duas ocasiões antes de sua efetivação. O primeiro dos episódios aconteceu em 1954, quando do suicídio do presidente Getúlio Vargas, que enfrentou intransigente e cotidiana oposição da grande imprensa, dos políticos da União Democrática Nacional (UDN), do capital internacional e de segmentos das Forças Armadas, em especial os vinculados à Escola Superior de Guerra.
O segundo data de agosto de 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Os mesmos setores que fizeram oposição visceral a Vargas tentaram impedir a posse do vice-presidente, João Goulart, que, como bom herdeiro do getulismo, também era filiado ao trabalhismo, ao nacionalismo, aos quais agregou forte reformismo social. Nessa ocasião, movimentos sociais e governadores de estado como Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, uniram esforços para garantir a posse constitucional do vice-presidente. Brizola chegou a coordenar a campanha pela legalidade que agregou estações de rádio em diferentes partes do território brasileiro. No plano institucional, alguns políticos democratas também se empenharam para garantir o respeito à Constituição. Negociaram o retorno seguro do vice-presidente e sua posse, embora com poderes reduzidos, pela adoção do sistema de governo parlamentarista.
Esses dois acontecimentos podem ser considerados como crônicas de um golpe anunciado. Um golpe que se concretizou em 1964 com a deposição de Goulart e a tomada de poder pelas Forças Armadas. Nessa ocasião, os militares que participaram do golpe político articularam-se com a UDN e alguns governadores de estado. Foram apoiados pelo empresariado nacional e internacional, setores conservadores da Igreja Católica, latifundiários, segmentos das classes médias que viviam aterrorizados com a possibilidade de o Brasil se transformar em um país socialista, governo dos Estados Unidos e grande imprensa, em especial os jornais O Globo, Tribuna da Imprensa, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo.
Era o tempo da Guerra Fria, caracterizada por forte bipolaridade entre socialismo e capitalismo. Esse conflito ideológico e político também alimentou forte tensão interna no Brasil. Em janeiro de 1963, o sistema de governo, depois da realização de um plebiscito, voltou a ser presidencialista. João Goulart recuperou a plenitude de seus poderes e a partir dessa data aprofundou a adoção de políticas governamentais contrapostas aos interesses de empresas internacionais e dos grandes proprietários de terras.
Essa orientação governamental era apoiada e exigida por efervescentes movimentos sociais urbanos e rurais, em especial pelos sindicatos e ligas camponesas. A oposição ao governo entendia que o presidente Goulart extrapolava ao adotar um perfil “populista e demagógico”, pois além de não controlar os movimentos sociais, com eles dialogava com frequência, prejudicando a paz social e as condições de governabilidade.
Intervenções militares sempre ocorreram na história da República brasileira. Mas antes de 1964, com exceção dos primeiros anos sequentes à proclamação da República, não chegaram a levar as Forças Armadas ao poder. Em março de 1964, contudo, ao derrubar um presidente constitucionalmente eleito e empossado, os militares assumiram o governo do Brasil, contando com o apoio de muitos políticos e tecnocratas. Governaram por 21 anos.
A ditadura restringiu de forma crescente o exercício da cidadania e reprimiu com violência as manifestações de oposição. Pela ordem foram cinco os governantes militares, um era marechal e os demais generais: Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista de Figueiredo. Os historiadores costumam dividir o somatório do período desses governos em três fases. A primeira começa e 1964 e vai até 1968. Foram esses os anos de institucionalização e consolidação do autoritarismo.
Entre as medidas mais importantes desse período destacam-se: prisões de cidadãos civis e militares que não apoiaram o golpe de Estado; fim da estabilidade no emprego e criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), intervenção em mais de 400 sindicatos; proibição de greves; início da promulgação dos atos institucionais e da cassação de mandatos políticos; estabelecimento de eleições indiretas para presidente da República, governadores de estado e prefeitos das capitais; dissolução do pluripartidarismo e criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena), que reuniu os governistas, e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que abrigou a oposição autorizada. E por fim, aprovação pelo Congresso Nacional de Constituição centralizadora e autoritária, que entrou em vigor em janeiro de 1967.
Nessa fase, embora a União Nacional dos Estudantes (UNE) estivesse na ilegalidade, o movimento estudantil atuou, de forma contundente, no campo oposicionista, realizando congressos e passeatas. A mais expressiva foi a dos 100 mil, em 1968, no Rio de Janeiro. Reuniu, além de estudantes, artistas, intelectuais e parcela do clero progressista. Em outubro daquele ano, entretanto, o movimento estudantil sofreu forte desarticulação em decorrência da repressão que desbaratou o congresso da UNE em Ibiúna, no interior de São Paulo. Na ocasião, os mais importantes líderes do movimento estudantil foram presos.
Também nesse período, movimentos culturais tornaram-se canais de expressão de descontentamento e oposição, em especial no campo da música popular, que fez dos festivais da canção brasileira espaços de protesto. O teatro também contribuiu para manifestação de insatisfação com o regime militar. Muitos espetáculos, em especial os encenados pelo Opinião e Arena, traduziam discordância com um governo cada vez mais ditatorial.
Também nessa fase, João Goulart e Juscelino Kubitschek aliaram-se ao antigo adversário, Carlos Lacerda, e formaram um movimento que ficou conhecido como Frente Ampla. Seu objetivo era congregar as forças de oposição ao governo federal. A iniciativa, de grande valor simbólico, não rendeu frutos, pois foi reprimida.
O fim do período de institucionalização aconteceu como desdobramento mais imediato do pronunciamento do deputado do MDB Márcio Moreira Alves, na Câmara dos Deputados, também no ano de 1968. O parlamentar fez severas críticas ao governo e aos militares, inclusive no campo dos direitos humanos. Na sequência, o Congresso Nacional foi fechado e o Ato Institucional nº 5 editado.
Repressão e tortura
A promulgação do AI-5, em dezembro daquele ano, marcou o início da segunda fase do regime militar, representou o fechamento completo do regime político e consolidou a ditadura ao dotar o governo de prerrogativas institucionais que levaram à ampliação da repressão e à generalização da prática da tortura.
Esse período correspondeu à fase do denominado “milagre brasileiro”. Nessa época, o Produto Interno Bruto (PIB) chegou ao patamar de 12% ao ano. A propaganda governamental divulgava a imagem de um Brasil potência, pacificado e presenteado com a adoção do mar das 200 milhas, a construção da Ponte Rio-Niterói e o início de construção da Transamazônica. Essa estrada jamais foi concluída, mas deixou um rastro de miséria e desmatamento.
Esses foram também os anos de maior repressão às oposições. O alvo principal eram as organizações que atuavam na clandestinidade. Seus militantes foram presos, torturados e processados. Centenas deles morreram ou “desapareceram”. Muitos corpos até hoje não foram localizados. A oposição legal efetiva também não foi tolerada e novas cassações de mandatos políticos proliferaram. Foi um tempo em que uma forte censura às artes e à imprensa limitou a expressão artística e política. Eram os anos de chumbo.
Por volta de 1976 iniciou-se a terceira fase do ciclo autoritário, que coincidiu com o fim do milagre econômico. O aumento vertiginoso dos preços do petróleo e a recessão da economia interferiram negativamente na economia e geraram grande insatisfação popular.
O general presidente Ernesto Geisel sucedeu ao governo Médici. Influenciado por Golbery do Couto e Silva, fundador da Escola Superior de Guerra e do Serviço Nacional de Informações, previu dificuldades crescentes e custos políticos altíssimos para o governo caso os militares permanecessem no poder por um período indefinido. Resolveu então, embora com discordância de seus pares, que controlavam o sistema repressivo, iniciar um processo de “distensão lenta, gradual e segura”.
Ao término do mandato de Geisel, a realidade política brasileira passara por transformações. A repressão diminuiu e as oposições, ainda que de forma tímida, começaram a se reorganizar. Fato expressivo do novo ciclo que se iniciava foi a primeira greve do ABC paulista, em maio de 1978, já no governo Figueiredo. O movimento sindical estimulou a proliferação de inúmeros movimentos sociais e políticos que lutaram pelo retorno da democracia política.
Em janeiro de 1979, a revogação do AI-5 e de outros atos institucionais entrou em vigor, o que facilitou a reorganização das forças de oposição e acelerou o processo de liberalização política. O grande marco dessa fase foi, depois de crescente campanha pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, a aprovação da Lei da Anistia de 1979, que embora limitada e conexa, possibilitou a abertura das prisões e o retorno ao país de milhares de exilados políticos.
Outro fato marcante no processo de democratização foi o restabelecimento do pluripartidarismo. No ano de 1982 ocorreram eleições para governadores de estado e na sequência uma grande campanha política/popular, denominada Campanha pelas diretas, que defendia o retorno das eleições diretas para a Presidência da República.
A década de 1980 marcou o final do ciclo ditatorial. A campanha pelas Diretas já, que reuniu milhões de brasileiros, mesmo derrotada no Congresso Nacional, preparou o caminho para a eleição, realizada pela via indireta e elegeu um presidente civil, Tancredo Neves. Que não foi empossado em decorrência de sua morte.
Mas esse processo de democratização, marcado por avanços e recuos, só culminou quando da realização de uma Assembleia Nacional Constituinte e da promulgação de uma nova Constituição, em 1988. Chegava ao fim um período de exceção que restringiu a liberdade de imprensa, criou um aparato de informação e segurança de grande capilaridade, adotou a tortura como prática cotidiana nas prisões, levou brasileiros ao exílio, instituiu a censura, cassou mandatos políticos, legislou por atos institucionais, pôs em prática a triste medida do banimento de brasileiros, fez vigorar uma Constituição autoritária e ceifou vidas.
Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora e professora dos programas de pós-graduação em história e direitos humanos da Universidade de Brasília.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.