“Os índices de violência em lugares como a Terra Indígena de Dourados são, sim, o resultado de uma omissão do Estado”, diz o antropólogo
IHU On-Line – “A violência na Terra Indígena de Dourados é, talvez, um dos fatos mais gritantes a demonstrar que o Estado brasileiro errou, e errou feio, em suas relações com os Kaiowá e Guarani ao longo das últimas décadas”, diz Spensy Pimentel, ao comentar as recorrentes situações de conflitos entre indígenas e não indígenas que vivem no Mato Grosso do Sul.
Hoje, os Guarani e Kaiowá somam aproximadamente 50 mil pessoas divididas em 30 terras indígenas e em pouco mais de 30 acampamentos localizados na beira das estradas e nos fundos das fazendas. Mas os índices de violência estão concentrados na Terra Indígena de Dourados, na qual em torno de 15 mil índios dividem um espaço de 3,5 mil hectares. Segundo o antropólogo, que conviveu com os indígenas nas reservas, eles “enfrentam a falta de perspectivas, em função da crônica falta de espaço e da incompetência e da negligência dos governos locais e federal. Nos acampamentos, aonde vão quando sua paciência se esgota, ficam sujeitos à truculência dos fazendeiros, que têm agido de forma intransigente”, diz o antropólogo”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Pimentel lembra que os conflitos decorrem de ações do Estado, que favoreceram a ampliação do complexo agroindustrial em terras tradicionalmente consideradas indígenas. “Diversas multinacionais importantes, as maiores do mundo em seus setores de atuação, estão instaladas ou atuam ali de alguma forma (com plantas industriais, fornecendo insumos e equipamentos, ou financiando, comprando e transportando a produção): Bunge, Cargill, ADM, Monsanto, Syngenta, JBS Friboi, BR Foods, etc. Esse complexo sempre contou com amplo apoio do governo brasileiro, em vários níveis, na forma de financiamentos e todo tipo de subsídio direto ou indireto”, relata. E acrescenta: “O resultado dessa política de Estado foi desastroso: em poucos anos, essas aldeias indígenas passaram a ostentar altos índices de suicídios, assassinatos e mortes de crianças por desnutrição – um sintoma extremo da fome, da insegurança alimentar generalizada. Para fugir desse ambiente, os indígenas passaram a entrar em conflito com os fazendeiros, e sobreveio mais violência”.
Spensy Pimentel é professor de Etnologia Indígena na Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Em 2013, realizou pesquisa de campo na Terra Indígena de Dourados, justamente na reserva Kaiowá e Guarani, que ostenta os piores índices de violência. Como pesquisador e jornalista, acompanha a situação dos Kaiowá e Guarani há mais de 15 anos. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Considerando o espaço territorial do Mato Grosso do Sul, em que território os índios Guarani Kaiowá estão localizados? Como descreve o ambiente em que eles vivem?
Spensy Pimentel – Os Kaiowá e Guarani de MS já devem somar, hoje, quase 50 mil pessoas — eram 43,4 mil em 2010, segundo o IBGE. Vivem em 30 terras indígenas e em cerca de 30 acampamentos — alguns deles em beira de estrada, outros ao lado de matas nos “fundos de fazendas” da região. A terra que ocupam é absolutamente insuficiente para eles: hoje são pouco mais de 40 mil hectares.
Os acampamentos são um fenômeno político que existe desde o final da ditadura militar: esses indígenas se recusaram a ser confinados em reservas pequenas, arbitrariamente demarcadas pelo SPI [Serviço de Proteção aos Índios] no início do século XX — ao todo, eram oito reservas, somando em torno de 18 mil hectares. Essas famílias que estão acampadas não reconhecem as reservas como “sua terra”, reivindicam a devolução de áreas de onde suas famílias foram retiradas à força.
Por que eles foram expulsos dos locais que habitavam? É que o sul de MS, por onde eles se espalham, desde os anos 1970 é uma região totalmente tomada pelo complexo agroindustrial relacionado a culturas como a soja, a cana e o milho, além da criação de gado bovino, porcos, frangos e peixes. Diversas multinacionais importantes, as maiores do mundo em seus setores de atuação, estão instaladas ou atuam ali de alguma forma (com plantas industriais, fornecendo insumos e equipamentos, ou financiando, comprando e transportando a produção): Bunge, Cargill, ADM, Monsanto, Syngenta, JBS Friboi, BR Foods, etc. Esse complexo sempre contou com amplo apoio do governo brasileiro, em vários níveis, na forma de financiamentos e todo tipo de subsídio direto ou indireto.
IHU On-Line – A que o senhor atribui a notícia de que a área onde está localizada a reserva indígena dos Guarani Kayowá de Dourados é uma das mais violentas do país?
Spensy Pimentel – A violência na Terra Indígena de Dourados é, talvez, um dos fatos mais gritantes a demonstrar que o Estado brasileiro errou, e errou feio, em suas relações com os Kaiowá e Guarani ao longo das últimas décadas. Em tempos de autoritarismo, o país impôs para esses indígenas a ida às reservas que haviam sido demarcadas pelo SPI — sem nenhum diálogo, é bom lembrar.
O resultado dessa política de Estado foi desastroso: em poucos anos, essas aldeias indígenas passaram a ostentar altos índices de suicídios, assassinatos e mortes de crianças por desnutrição — um sintoma extremo da fome, da insegurança alimentar generalizada. Para fugir desse ambiente, os indígenas passaram a entrar em conflito com os fazendeiros, e sobreveio mais violência.
Nem nas reservas, nem nos acampamentos os Kaiowá e Guarani têm tido sossego nas últimas décadas. Nas reservas, enfrentam a falta de perspectivas, em função da crônica falta de espaço e da incompetência e negligência dos governos locais e federal. Nos acampamentos, aonde vão quando sua paciência se esgota, ficam sujeitos à truculência dos fazendeiros, que têm agido de forma intransigente: querem resolver na base da violência ou nos tribunais um grave problema social, que não vai se extinguir na bala, nem com a canetada de um juiz.
IHU On-Line – Também existem conflitos entre os indígenas?
Spensy Pimentel – Às vezes, representantes da elite sul-mato-grossense chegam a afirmar que o Estado e o povo brasileiro não têm responsabilidade pelo que acontece nas aldeias do sul de MS. Eles usam dados sobre os índices de violência nas aldeias para sustentar que os crimes são praticados entre os próprios índios, por isso não há o que fazer.
Isso, além de cinismo, é uma completa falta de visão histórica. Como explicar a coincidência de que os altos índices de violência e problemas sociais tenham aparecido nas aldeias exatamente quando se completou o processo de confinamento das comunidades, no período da ditadura? O mais absurdo é que quem está lavando as mãos em relação a esse problema é a elite de um estado que está absolutamente enriquecido, nos últimos anos, pelos altos lucros proporcionados pelo agronegócio.
Responsabilidades
É bom que se diga, há erros que não são apenas do Estado. As grandes empresas multinacionais, como eu mencionava, são um dos pilares desse complexo agroindustrial. As igrejas protestantes atuaram como linha auxiliar no processo de confinamento, a partir de uma ideologia que associa a conversão ao “progresso” individual e coletivo — o que, além de uma política etnocêntrica e etnocida, é até hoje aplicado, às vezes de forma violenta, pois muitas pessoas que são adeptas do xamanismo entre os Kaiowá e Guarani sofrem há muito tempo perseguição dos convertidos.
A universidade, o meio acadêmico, também tem sua parcela de responsabilidade, é claro, mas, pelo menos, até onde vejo, é um dos setores que mais enfrenta essa dívida histórica que temos com esses povos (até por isso, somos perseguidos). Outros setores, declaradamente, preferem negar até mesmo que exista qualquer pendência.
Como essa elite que nega a existência do problema ocupa os cargos mais importantes no Estado, em nível regional, chegamos ao atual quadro, em que os avanços são lentos, e frequentemente temos a sensação de estar dando voltas sem chegar a lugar nenhum. Por exemplo, no que tange à segurança nas aldeias Kaiowá e Guarani, e falando de Dourados, especificamente, é bom lembrar que a situação ali existente — quase 15 mil pessoas morando em pouquíssimo espaço, 3,5 mil hectares — é uma novidade absoluta para os indígenas como povo. Um agravante para os problemas é que na TI Dourados não são só dois grupos, mas três: os Kaiowá, os Guarani e os Terena. Estes últimos têm alguns traços culturais muito distintos dos Kaiowá e são predominantemente evangélicos. Por isso, além de conflitos culturais, há também problemas que, poderíamos dizer, têm cunho religioso.
Estamos falando de uma das dez terras indígenas mais populosas do país. É muito difícil administrar no dia a dia a quantidade de problemas que surgem da convivência de tanta gente. É um fato que, “em casa onde não tem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão”, como já dizia o ditado. Frequentemente, em função disso, as próprias lideranças familiares demandam ajuda policial.
Há muito tempo se discute a necessidade de trabalho policial nas aldeias de MS, sobretudo nas reservas. Um acordo entre o governo federal e o estadual para instalar um plano nesse sentido é negociado há anos, sem resultados. O Ministério Público Federal tem tentado cobrar responsabilidade do estado e da União, mas, até agora, o que se tem é somente o policiamento emergencial que vem sendo praticado pela Força Nacional de Segurança Pública — em missão temporária na região. A ação da Força Nacional não é suficiente para coibir a violência e os crimes. Para que se tenha ideia da dimensão do problema: segundo o MPF, havia até mesmo uma orientação da administração estadual para que o telefone 190 não desse resposta a ligações oriundas das comunidades indígenas. Uma decisão judicial já determinou a ilegalidade dessa orientação, mas a situação de descalabro persiste. Recentemente, a Justiça ordenou que a Polícia Federal destaque um contingente para policiamento nesses locais, mas isso não vai resolver o problema.
Os índices de violência em lugares como a TI Dourados são, sim, o resultado de uma omissão do Estado, que envolve prefeituras e os governos estadual e federal. Todos têm sua parcela de responsabilidade.
IHU On-Line – Segundo dados do Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI de Mato Grosso do Sul, entre 2007 e 2013, foram registradas 487 mortes violentas de índios, sendo 137 por homicídio. Quais são as principais causas de morte dos indígenas no Mato Grosso do Sul? O que esses dados revelam, considerando a população indígena que vive em Dourados?
Spensy Pimentel – Revelam, principalmente, que se trata de uma população marginalizada, extremamente vulnerável. A extensão do problema é o que mais espanta: são centenas e centenas de mortes nos últimos anos.
A quantidade de tragédias familiares que se acumulam é impressionante. Há famílias com histórias terríveis, vários filhos perdidos em função da violência. Como alguém certa vez me questionou: as crianças vão sendo salvas da desnutrição pelos programas sociais, para depois crescerem e morrerem assassinadas ou se suicidarem?
Há muita negligência, não só em relação à segurança, mas a quase todas as políticas públicas. Por exemplo, fala-se muito da violência na TI Dourados, mas quem sabe que em boa parte dessa reserva falta água potável às pessoas? Recentemente, visitei pessoas em cujas casas a água não chegava havia mais de 40 dias. É um problema crônico e antigo.
Existe todo um conjunto de fatores que faz com a vida em lugares como a TI Dourados seja terrível para boa parte das famílias indígenas. Os jovens se revoltam com essa falta de condições de vida. Estão perto da cidade, os brancos lhes esfregam no nariz a riqueza que acumulam a partir das terras que tomaram de seu povo. E, como tem acontecido com jovens das periferias nos shoppings em São Paulo e no Rio, se eles vão tentar consumir, um pouco que seja, frequentemente são discriminados. A escola ajuda a disseminar padrões de comportamento e consumo que são incompatíveis com a vida rural e a cultura indígena. Muitas igrejas evangélicas, em vez de pregar o amor de Cristo, pregam o ódio e o medo, incentivam os próprios indígenas a desprezar suas práticas ancestrais.
A revolta é tão grande que muitos jovens têm se inspirado no rap feito na periferia de São Paulo para expressar o que sentem. Em suma, essa é a tragédia coletiva dos Kaiowá e Guarani que nós, brasileiros, ajudamos a construir, voluntária ou involuntariamente.
IHU On-Line – Qual a atual situação de assistência à saúde aos indígenas que residem no MS?
Spensy Pimentel – Há poucas semanas, os funcionários indígenas da saúde em Dourados fizeram marchas e bloqueios contra a falta de condições de trabalho. Na TI Dourados, por exemplo, os agentes de saúde atendem até 100 famílias cada um. O ideal, segundo lideranças do setor de saúde, seria atender 60. Também faltam remédios e veículos, e equipamentos estão obsoletos.
Outro problema é a segurança alimentar. A boa alimentação, como se sabe, é a base de qualquer política de saúde preventiva. Falta uma política integrada, que coordene a interação entre programas sociais e o apoio à agricultura familiar. Há vários anos, o que se vê é a distribuição emergencial de cestas básicas, uma política de acesso aos programas sociais, mas o que mais faz falta é um apoio consistente às roças para produção de alimentos.
Os Kaiowá e Guarani têm, em suas terras, um problema sério com capins invasores, trazidos pelos colonos não indígenas. Alguns formam touceiras de mais de dois metros de altura, com raízes fortíssimas, que inviabilizam o trabalho manual na roça sem apoio mecanizado. Hoje, cabe às prefeituras preparar a terra nas aldeias, usando tratores e óleo que são repassados pelo governo federal, mas esse trabalho quase nunca é feito devidamente, no tempo correto. O resultado é que se dificulta muito a autonomia das comunidades.
IHU On-Line – Os crimes que ocorrem em Dourados também envolvem o consumo de álcool e drogas?
Spensy Pimentel – Sim, há álcool e drogas, comercializados no entorno e também no interior da Terra Indígena, segundo investigações têm demonstrado. Essas substâncias são um catalisador, muitas vezes, isso é fato, mas jogar a responsabilidade pela violência sobre elas é um erro — e um preconceito.
As famílias nas quais se faz uso abusivo de álcool e drogas estão vivendo uma série de outros problemas, que são os que, frequentemente, fazem com que as pessoas apelem para o alívio temporário trazido por essas substâncias. Na casa dessas pessoas, muitas vezes, falta água, falta comida, falta gás para cozinhar, falta trabalho digno, falta saúde. Muita gente não tem nem documentos. É o cúmulo da contradição, as pessoas que enfrentam as piores condições de vida nas aldeias não conseguem acessar os programas sociais porque as prefeituras lhes pedem uma lista imensa de documentos como pré-condição para serem cadastradas. O resultado é a exclusão dos que mais necessitam de ajuda. E as pessoas vão colocar a culpa no álcool e nas drogas?
IHU On-Line – Desde o período em que vivem na aldeia em Dourados, os Guarani Kayowá perderam terras que haviam sido demarcadas?
Spensy Pimentel – Perderam terras que não foram demarcadas e terras que haviam sido prometidas pelo próprio Marechal Rondon, conforme os mais antigos contam.
IHU On-Line – Quais são as terras que os indígenas reivindicam no Mato Grosso do Sul? Que percentual territorial do estado elas representam?
Spensy Pimentel – Isso é importante, porque existe uma campanha naquela região que espalha inverdades sobre essa questão. Os Kaiowá e Guarani reivindicam uma porção de terra que, segundo cálculos preliminares, é de cerca de 2% do estado. Havia quem dissesse que eles reivindicavam até um terço dos 35,7 milhões de hectares de MS, o que, absolutamente, não corresponde à realidade.
Para que se conheça o total exato das terras reivindicadas e seu perímetro, a Funai tem de publicar os vários relatórios de identificação que foram iniciados em 2008, após pressão do MPF.
Esse trabalho de análise dos relatórios está atrasado, e tudo indica que o Ministério da Justiça paralisou o processo de reconhecimento de terras indígenas em todo o país, após pressão dos ruralistas no início de 2013. Isso é muito grave, pois a demora em resolver a situação em lugares como MS e Bahia pode gerar novas tragédias.
Há, ainda, o caso terena, que é a segunda maior população indígena do estado. Aí, além de algumas terras de extensão já conhecida, como o Buriti, onde morreu o professor Oziel Gabriel, em maio de 2013, também há outras terras que ainda precisam ser identificadas.
De qualquer forma, isso não aumenta muito a estimativa que trouxemos acima, a ponto de “ameaçar a economia do estado”, como alguns, falsamente, apregoavam.
IHU On-Line – Os indígenas reivindicam a demarcação de suas terras tradicionais. Por outro lado, os fazendeiros e produtores rurais do MS alegam que receberam ou compraram as terras da União. Diante desse conflito, qual seria a melhor maneira de solucionar a questão?
Spensy Pimentel – A melhor maneira, evidentemente, é sentar e conversar, para que se chegue a um acordo. Já houve alguns avanços, mas os fazendeiros seguem agindo de forma intransigente e truculenta. Basta ver que, no fim de 2013, fizeram um leilão para arrecadar fundos que, conforme inicialmente divulgado na imprensa, seriam usados para reforçar a defesa das fazendas — inclusive com a contratação de homens armados.
Os indígenas vinham aceitando o diálogo, mas, como os fazendeiros têm insistido em protelar as negociações, e a solução para os problemas está demorando a chegar, alguns grupos voltaram a realizar ocupações de terra. Há, inclusive, uma ocupação bastante grande, na terra conhecida como Yvy Katu, em Japorã (MS), envolvendo milhares de pessoas na operação. Se não houver muita habilidade para resolver situações como essa, há risco de graves conflitos. Urge chegar a acordos!
IHU On-Line – Quais são os acordos necessários hoje em MS?
Spensy Pimentel – Há um acordo que está sendo negociado hoje, envolvendo uma lista de terras pelas quais o governo federal se compromete a pagar indenizações, reconhecendo a responsabilidade do Estado brasileiro pelo descalabro que existe atualmente no estado. O movimento indígena está negociando os termos desse acordo. É importante checar os prazos, porque os conflitos em MS só se acirram quando se tenta empurrar os problemas com a barriga.
Porém, existem outros dois acordos urgentes, sem os quais qualquer negociação resultará incompleta. Primeiro, há os acampamentos indígenas, que são numerosos. É preciso encontrar uma forma de garantir que esses grupos possam esperar os processos de demarcação em condições dignas, sem ataques armados, sem a pressão psicológica trazida pelas disputas judiciais e com o devido acesso aos seus direitos mínimos, como seres humanos e cidadãos brasileiros. Hoje, em grande parte dos acampamentos, mesmo os que estão a poucos quilômetros da maior cidade da região, Dourados, não há água potável, nem acesso à escola ou a programas sociais. Conheço famílias com até cinco, seis crianças, todas sem documentos e fora da escola. O que há, somente, é assistência à saúde e cestas básicas.
É uma covardia o que se está fazendo com o acampamento do Apykai, por exemplo. Dona Damiana, a líder da comunidade, perdeu seis familiares nos últimos anos, alguns deles em atropelamentos mais que suspeitos. Em vez de os fazendeiros negociarem para permitir que o grupo permaneça em algum pedaço de terra até que a negociação toda seja concluída, querem tirá-la por decisão judicial, fazê-la voltar para a beira da rodovia, onde mais desgraças podem acontecer. É um poderio econômico completamente insensível esse dos fazendeiros de MS.
No acampamento de Pyelito Kue, aquele que ficou famoso em 2012, em função da carta que foi tomada como uma ameaça de suicídio coletivo, as crianças estão há dois anos sem escola. No Guairivy, onde foi morto, em 2011, o líder Nísio Gomes, as crianças têm aula dentro da casa de reza, porque até agora o prédio da escola não foi construído. Os benefícios sociais, nesses lugares, têm sido suspensos por mera falta de atenção das prefeituras. Falta sensibilidade e sobra preconceito com a situação dos indígenas entre os administradores locais na região.
O terceiro acordo necessário diz respeito às condições de vida nas aldeias onde a situação fundiária já está definida. Água, saúde, educação, alimentação são direitos básicos, e eles não estão sendo garantidos em muitas comunidades. Sobretudo, o apoio à agricultura tem sido absolutamente negligenciado. Várias comunidades estão passando por problemas, o trabalho é inconstante e insuficiente.
IHU On-Line – Em que medida a política indigenista aplicada no país contribui para aumentar os conflitos?
Spensy Pimentel – O que mais contribui para aumentar conflitos é, principalmente, a não política indígena, a falta de políticas de um lado — a omissão do governo federal e também de governos estaduais e prefeituras. Essa não política tem a ver com o fato de que o Estado brasileiro tem dificuldade em reconhecer os indígenas como atores políticos, em pensá-los como parte do presente e do futuro do país. Há um setor da elite que não conseguiu absorver a ideia de que os indígenas são parte do país, sem precisar abdicar de suas diferenças.
É como se essas pessoas ignorassem a Constituição — que nem é tão nova, já tem 25 anos! Ainda agem como se vivêssemos no tempo em que, para ser considerado cidadão, o sujeito tinha que falar português, cantar o Hino Nacional e ser batizado. As coisas mudaram, mas certos setores resistem a aceitar isso… Um indígena não deveria ser menos cidadão porque não quer falar português ou ser cristão. Infelizmente, na prática, por vias indiretas, muitas vezes a discriminação continua.