Em Índio é Nós
No meio da mata virgem, nasceu Mundurucu. Seu grito de nascença foi tão esganiçado e esgoelado que a mãe (Mamãe Tupi, a mãe se chamava) previu que o neném recém-parido seria cria de dar tristeza: nem ia dar bom amante, nem bom caçador. Mamãe Tupi acertava no certo e errava no errado, porque o certo é que Mundurucu cresceu feio, fraco e franzino, ruim de namorar, de erguer o arco e ombrear-se com os primos no jogo do luta-luta. Mas o menino mostrou crescendo que tinha o dom de ser sabido e linguajeiro, de conhecer e assuntar as coisas do mundo, e assim compensava as alegrias faltantes com o excesso de outra.
Mundurucu cresceu e Mamãe Tupi pariu mais irmãzinhas e irmãozinhos pra ele. Lá pela décima segunda lua do ano de 1500 do Nosso Senhor, a oca bonita de Mundurucu estava cheia de gente. Viviam ali o irmão mais velho Sateré, a irmã mais velha Zoé, o irmão mais novo Urubu, a caçulinha Tupinambá, e, é claro, Mamãe Tupi, que gostava de todos os seus filhinhos mais do que a luz dos próprios olhos. Sateré era um caboclo valente, destro no arco, na rede e no anzol. Zoé era uma morena linda do queixo comprido. Urubu era um caboclo tagarela que só falava com as mãos (nunca com a boca) e todo mundo entendia o que Urubu falava usando as mãozinhas. Tupinambá era uma menininha arisca e briguenta que tinha o estranho hábito de comer os bonequinhos de barro que a Mamãe Tupi fazia pra ela brincar.
As tias e primos e primas de Mundurucu moravam nas ocas ladeiras. Na oca do norte morava Mamãe Aruaque com as filhas fêmeas Baniva e Tariana e os filhos machos Iaualapiti e Baré. As filhas e filhos de Mamãe Aruaque eram os maiores comedores de farinha da aldeia. Quando falavam, cuspiam farinha pra todo lado, e por isso os primos e primas das outras ocas só conversavam com eles usando uma máscara de palha de buriti. Na oca do centro morava Mamãe Jê, com suas filhinhas Carajá, Xacriabá e Timbira, e seus filhinhos Bororo, Crenaque, Xavante e Maxacali. A oca de Mamãe Jê era a mais espaçosa e mais cheia de criançada, e assim, todos os primos e primas das ocas todas gostavam de passar ali juntos o esconder do sol, brincando até se fartar de luta-luta e de beija-beija. Na oca do oeste morava Mamãe Ianomâmi. Mamãe Ianomâmi só teve uma filha, e, sem saber que nome dar à menina, deu o seu próprio: Ianomâmi. Pra diferençar as duas, as tias e primos e primas das outras ocas chamavam a mamãe de Mami, e a filhinha de Ianô.
Nenhum caboclinho ou caboclinha conheceu o pai deles todos. As mamães contavam uma história que é assim: há muitas e muitas luas, surgiu na praia do leste uma canoa muito grande, chamada caravela. Dela desembarcaram caboclos brancos, barbados e fedorentos, com cabelos de várias cores (pretos, amarelos, vermelhos) e empunhando finos tacapes prateados. Embrenharam-se na floresta do Norte Maltrapilho e, anda que anda, encontraram finalmente a nossa aldeia. O caboclo branco mais esperto de todos tinha cabelos pretos e se chamava Peró. Ele disse a seus amigos de cabelos amarelos e vermelhos pra voltarem à praia, porque ia cair uma tempestade e era capaz da caravela afundar. “Podem deixar, que eu fico aqui, tomando conta da aldeia”. Assim que eles foram embora, Peró tomou as mamães pelos braços, levou-as pra dentro da oca da Mamãe Tupi (que era a oca mais bonita), deitou-se na rede mais larga e fez muita brincadeira de beija-beija com as quatro mamães.
Os amigos de Peró nunca que voltavam, e ele ficou na aldeia por muitas luas, brincando de beija-beija todos os dias e vivendo como um rei. As mamães caçavam, colhiam, pescavam e cozinhavam pra ele, e ele ainda pedia pra elas cortarem troncos de pau-vermelho e empilharem os troncos na entrada da aldeia. Passadas nove luas, os amigos de Peró voltaram em uma noite escura e recolheram os troncos de pau-vermelho, levando embora toda a madeira morta. Peró ficou muito zangado, e nem bem amanhecia, partiu numa nuvem fria com seu tacape prateado, sumindo mata adentro em direção a uma terra chamada Sul Maravilha. Nunca mais ninguém o viu. Foi das sementes brancas de Peró, plantadas nas barrigas vermelhas das quatro mamães, que nasceram todos os caboclinhos e caboclinhas da aldeia.
A maioria das crianças não acreditava muito na história das mamães, e preferia acreditar em Ianomâmi, a priminha que eles chamavam de Ianô. Como era filha única, Ianô era chapiripé, ou seja, meio mágica e vidente das coisas do mundo e do além-mundo pra frente e pra trás. Ela contava que os primos e primas tinham nascido, na verdade, da brincadeira de beija-beija do deus Omama com a filha do monstro aquático Teperesiqui. Quando os caboclinhos e caboclinhas começaram a nascer, Omama ficou preocupado deles crescerem sozinhos na mata e enviou ao mundo as quatro mamães, para que cada mamãe cuidasse de um punhado de caboclinhos e caboclinhas segundo a sua espécie, dando a cada um deles um nome, segundo a sua espécie.
Mundurucu era o único que acreditava tanto na história de Ianô quanto nas histórias das mamães. E queria porque queria sair da aldeia e ganhar mundo, embrenhando-se mato adentro em direção ao Sul Maravilha, nas pegadas de Peró. O único jeito de fazer Mundurucu sossegar era a Mamãe Tupi contar histórias maravilhosas do Sul Maravilha.
Contava que ali há uma cidade (“o que é cidade, mamãe?”) chamada Belo Horizonte, no sopé de um belo monte e com ocas muito compridas que nem cupinzeiros, onde vivem espremidos montões de caboclos e caboclas. Contava que os caboclos e caboclas de Belo Horizonte correm mais rápido que qualquer onça, não com as próprias pernas, mas ajuntados dentro de enormes tatus prateados, que rolam pela cidade adentro. Que os caboclos e caboclas não precisam pescar, nem colher, nem caçar. É só ofertar aos caboclos de pele branca umas folhinhas de acapu pintadas de jenipapo, e esses caboclos dão pra gente tudo o que se possa querer: carne, farinha, fruta, mandioca, cauim prontinho já fervido na cumbuca… até água! Contava que esses caboclos de pele branca têm tantas folhinhas pintadas que nem precisam cozinhar: é só dar ordenança, que as caboclas de pele preta, muito obedientes, fazem todo o cozinhamento pra eles. E que essas caboclas de pele preta são muito boas também pra dar faxina na oca. Elas sabem deixar aquelas ocas enormes, compridas que nem cupinzeiros, brilhando como fossem o próprio sol.
Mundurucu dormia ouvindo as histórias à noite, e de manhã já acordava com vontade de conhecer a cidade (“o que é cidade, mamãe?”) de Belo Horizonte, com suas ocas compridas que nem cupinzeiros, com seus tatus prateados, com suas folhinhas pintadas de jenipapo, com seu cauim prontinho já fervido na cumbuca, com seus ricos caboclos de pele branca e suas faceiras caboclas de pele preta.
Mamãe Tupi ficou com muita raiva, pois sabia que as histórias que ela contava só faziam aumentar a querência desatinada do filho de ganhar mundo e conhecer o danado do Sul Maravilha. Então Mamãe Tupi, que não era boba nem nada, e era sabida da fraqueza franzina de Mundurucu, disse pro menino: “Escuta, curumim meu. Se você quer mesmo ganhar o mundo, não posso dizer que não. Mas você é fraco e franzino, e o mundo fora da aldeia é cheio de malvadezas de gente forte. No dia em que você derrubar, só com os seus dois pezinhos, o tronco da árvore do acapu que dá sombra à nossa aldeia, eu deixo você partir sem dizer uma palavra que for”.
Desde esse dia, todo dia de manhãzinha, Mundurucu pulava da rede e corria pra árvore do acapu. Jogava os dois pés com toda a sua força no tronco e ficava esperando a árvore despencar. E dia após dia, nada que nada do acapu cair. Mas se Mundurucu era fraco de corpo, nem queria saber de fraquejar em desistências. Depois de luas e luas machucando os pezinhos na tentativa de derrubança do acapu, foi consultar Ianomâmi, que os primos e primas chamavam de Ianô, e era chapiripé, meio mágica e vidente das coisas do mundo e do além-mundo pra frente e pra trás. Ianô disse pra Mundurucu não se preocupar. Que logo, logo, ia acontecer uma desgraça na aldeia, e essa desgraça ia ser a graça de Mundurucu, pois ele ia ter que abandonar a aldeia e fugir mata adentro, na direção que ele quisesse. Mas se a desgraça era inevitável, a graça só ia acontecer se toda manhã, depois de tentar derrubar o tronco do acapu, Mundurucu subisse lá no alto da árvore, e olhasse em direção ao sul.
Mundurucu chorou de tristeza. Queria muito bem à aldeia, à mãe e às tias, aos irmãos e irmãs, aos primos e primas, e como Mundurucu era sabido, sabia que a desgraça tinha mesmo de acontecer, pois sabia que Ianô sabia das coisas pra frente e pra trás. Fez o que Ianô disse. E feito o dito, dito e feito. Uma manhã se ouviu de longe um barulho medonho, barulho de água crescendo, barulho de água chegando. A água invadiu a aldeia e afogou todo mundo. A água matou de afogamento as quatro mamães e todos os caboclinhos e caboclinhas. Quase todos. Sobrou Mundurucu, que no exato momento em que as águas principiavam a lamber a entrada sul da aldeia, estava trepado lá em cima, no galho mais alto do acapu. Pra alertar os parentes, Mundurucu piou um pio forte de macaco guariba, mas era tarde demais. Só Mundurucu viu que as águas não vieram sozinhas, por vontade própria, e nem por ordenança do deus Omama ou por malvadeza do monstro aquático Teperesiqui. Olhando em direção ao sul, o menino viu um amontoado de caboclos brancos e barbados que, com a ajuda de seus tatus prateados, acabava de erguer imensas paredes de pedra atravessando o grande rio do sul. “São os amigos de meu pai Peró”, pensou Mundurucu. “São os caboclos de pele branca do Sul Maravilha”.
Depois que as águas se acalmaram, Mundurucu desceu do acapu, nadou até a parte seca da floresta e vagou mata adentro, seguindo o rumo do Norte Maltrapilho. O menino, que era sabido, nunca mais quis saber do Sul Maravilha.
Minibiografia
Beto Vianna estudou a língua dos macacos, é professor de línguas humanas e há cinco anos escreve pra adultos e crianças no Livro de Graça na Praça. Publicou uns livros, arriscou alguns poemas de amor e é pai de Tábata e Ariel. Publicado originalmente pelo Projeto Livro de Graça de Belo Horizonte, em 2013.