No Grajaú, distrito mais populoso de São Paulo, com 1 milhão e 100 mil habitantes, o Jardim União apresenta novas estratégias de luta por moradia digna
Isabel Harari e Roberto Oliveira, da Revista Vaidapé para Agência Carta Maior
Emily, Jéssica e Vitória encontram um barraco vazio, quase no limite do terreno, já com mato crescendo nos cantos. As meninas, de 8, 12 e 11 anos respectivamente, resolveram ocupá-lo. Conversaram com o proprietário anterior, que já havia ido embora do local, e este cedeu o espaço a elas. Iniciaram imediatamente a reforma: arrumaram as paredes e o telhado, construíram duas portas e uma mesinha de madeira. Para o barracão das crianças ficar pronto só falta cobrir o chão com carpete e arrumar os brinquedos. “Vai ser o clube das meninas, mas todo mundo pode entrar”, explicam.
Cerca de 250 pessoas encontraram um terreno vazio, na região do Grajaú. Resolveram ocupá-lo na madrugada do dia 12 de outubro de 2013. Quatro meses depois a ocupação Jardim União, nome escolhido pelos próprios moradores, conta com quase dois mil barracos e 1200 famílias distribuídas em uma área de 85 mil metros quadrados.
A área habitada pelos moradores do Jardim União está em processo de desapropriação pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Ou seja, a qualquer momento um despejo pode acontecer. Diante da iminência de uma retirada truculenta dos moradores do terreno – visto que houveram cinco tentativas no local habitado anteriormente, o Itajaí – os ocupantes foram às ruas para reivindicar a suspensão do processo de reintegração de posse e o cumprimento dos compromissos assumidos pela CDHU e pela Prefeitura Municipal de São Paulo, de encontrar uma solução efetiva para a questão da moradia na região.
Márcia Cristina ocupou o terreno do Itajaí por cerca de um mês: “a GCM (Guarda Civil Metropolitana) derrubava, eu montava o meu barraco de novo porque não queria sair dali com as minhas crianças. Depois de cinco tentativas de despejo viemos pro Jd. União, e aqui até o momento está firme, vamos continuar na luta”. Vitória dos Santos de Morais, de 11 anos, também estava presente nas ocasiões da entrada da polícia no terreno: “eu acho que não pode fazer isso. Ninguém é cachorro pra ser escorraçado”, contou.
Em ato realizado no dia 20 de fevereiro, moradores das ocupações Jd. União, Jd. da Luta e Recanto da Vitória ocuparam a CDHU e obstruíram as faixas da Rua Boa Vista. Frente à pressão popular, o processo de reintegração de posse foi interrompido até que uma saída definitiva para a demanda habitacional dos ocupantes seja realizada. O acordo foi feito verbalmente pelo presidente da CDHU, Antônio Amaral Filho, que se comprometeu a realizar uma reunião com a participação da Secretaria de Habitação e de Planejamento do município nas próxima semanas para consolidar o trato.
O Jd. União divide-se em 17 grupos distribuídos em quatro quadras. A ocupação ocorreu de forma orgânica, ou seja, as construções foram erguidas a partir de um ponto central delimitado pelos primeiros habitantes do local. “A ocupação ocorreu sem a prévia divisão de lotes. Quando sair a resolução da prefeitura vamos fazer o projeto, junto com a população”, conta Guto, militante da Rede Extremo Sul. O comércio funciona todos os dias, de 2a a 5a feira até 22h, e aos sábados e domingos até a meia noite. Quitandas, cabelereiros e bares estão entre as atividades realizadas pelos moradores.
Mutirões acontecem todos os dias, de acordo com as necessidades da ocupação: limpeza, infraestrutura, água e alimentação. Como grande parte dos ocupantes trabalha durante a semana, os mutirões acontecem mais vigorosamente e com maior participação aos sábados e domingos. Os moradores querem montar uma cooperativa de construção civil para otimizar o trabalho de manutenção das edificações. O Jd. União conta com três pontos de luz e dois pontos de água.
No início, as cozinhas da ocupação eram utilizadas cotidianamente, hoje funcionam apenas em dias específicos. Existem cerca de 15 roças na ocupação, “tem feijão, milho, mulungu, feijão da África, melancia, abóbora…”, conta Mariano Pereira de Moraes, que mora na ocupação desde o início com sua filha Vitória.
Após a escola, Emily e sua irmã Jéssica praticam aulas de capoeira, espanhol e estêncil. A ocupação também conta com mostras de cinema, aulas de jiu-jitsu, cooperativa de costura, alfabetização, um centro de esportes com dois campos e um time de futebol, o Esporte Clube Vitória do Povo, que treina segundas, quartas e sextas, além do final de semana e das peladas em todo fim de tarde. Ou seja, tem futebol quase todo dia. Todas as atividades são promovidas pela iniciativa dos moradores da ocupação.
Tereza Rosa da Silva, a Terezinha, participa da cooperativa de costura desde a abertura, no dia 15 de fevereiro. As aulas acontecem apenas nas 2a e 6a feiras, mas Terezinha está lá todos os dias. Ela aprendeu o ofício na ocupação e mostra com orgulho os calções que costurou a partir de calças doadas para os meninos jogarem futebol.
Um dos principais problemas que ocorrem no Jd. União é a violência doméstica. Frente à esse quadro, as mulheres estão se organizando em um coletivo, que se reúne aos domingos, às 15h30, no barracão da educação – espécie de centro comunitário da ocupação. A primeira reunião contou com a presença de 40 mulheres e já teve como resolução a confecção de uma carta de princípios que será entregue aos homens para discussão.
Às 4a feiras acontece uma reunião de organização interna, que conta com a presença de aproximadamente 100 pessoas. A pauta não é preestabelecida e parte das necessidades dos moradores, como a regulamentação do comércio local e a agenda das atividades. “Alguém pode chegar e dizer que quer ensinar tal coisa, ou pedir outra. É uma tentativa de educação popular, educar dentro da luta”, explica Carolina Moura, pedagoga e militante da Rede Extremo Sul. “A gente valoriza mais os espaços das reuniões do que as assembleias. Até janeiro tinha assembleia todo o sábado, agora é só quando precisa, há uma convocatória”, continuou.
A Rede Extremo Sul, movimento popular atuante na zona Sul, se aproximou dos moradores da ocupação na ocasião do quarto despejo do Itajaí. Organizada de forma horizontal, a Rede busca desconstruir princípios como a hierarquização e burocratização na luta. “[A ocupação] é uma responsabilidade de todo mundo. É um exercício que coloca dificuldades porque é muito mais fácil chegar alguém dizendo ‘eu é que mando!’, e a gente não quer isso”, aponta Guto, militante da Rede. “A gente traz uma forma de organização distinta dos outros movimentos. Muitos deles se tornaram braço do Estado e são quem levam a cabo a politica habitacional das empreiteiras”, explica.
A partir de junho de 2013 houve um aumento das ocupações na região, só no Grajaú foram consolidadas 20 ocupações espontâneas. “Na rua, na praça, nos terrenos vazios… Tava tudo ocupado!”, comenta Carolina.
Uma das explicações para o avanço dos processos de ocupação na zona sul é o aumento exponencial dos alugueis e demais custos de vida. Terezinha tem três filhos, trabalhava de doméstica e mora de aluguel na região. Paga 330 reais mais 170 de água e luz, preço que corresponde à quase totalidade do seu salário, por conta disso ocupa um barraco no Jd. União e compõe a luta por uma moradia digna e acessível. Guto aponta o loteamento em frente à ocupação: “esse terreno vale R$ 140 mil e tem só 125m2. O capital imobiliário está vendo que essa é uma área de grande potencial. Estão fazendo a substituição da população”.
O Grajaú está inserido na região da Capela de Socorro e, junto com os distritos de Socorro e Cidade Dutra, contabiliza uma superfície de 134km2, que corresponde a 8,8% do total do município. Aproximadamente 90% do território está inserido em uma área de proteção aos mananciais responsáveis pelo abastecimento de 30% da população da região metropolitana.
O terreno do Jardim da União é público, considerado uma Área de Proteção Ambiental (APA) e de manancial. A CDHU alega que por conta disso não se pode construir moradias populares, pois causaria danos ambientais. No entanto, existem planos para a construção de imóveis idealizados pela própria Companhia.
Em 1975 foi promulgada a Lei de Proteção dos Mananciais, que estabelece limites para a ocupação do solo e dificulta o licenciamento de empreendimentos na área. A população, no entanto, já habitava parte do local e a lei foi insuficiente para conter o avanço das edificações. Para Carolina, o discurso ambiental é utilizado para barrar o avanço populacional, pois “dá pra fazer um processo de construção que respeite o manancial. Já tem gente ocupando, não dá pra tirar as pessoas de lá!”.
O Grajaú é o distrito mais populoso de São Paulo, com 1 milhão e 100 mil habitantes, segundo levantamento da subprefeitura. O Plano Diretor Estratégico de São Paulo, idealizado pela prefeitura, promete a construção de 55 mil moradias, destas, 16 mil na região, número incompatível com a demanda habitacional. Hoje existe 1 milhão e 200 mil pessoas na lista por moradia com o auxílio aluguel. O valor entregue para as famílias cadastradas, gira em torno de R$ 400 reais.
“O que está proposto só vai gerar mais problemas. Essa solução só vai gerar adensamento populacional e intensificar outros problemas. O bolsa aluguel é uma politica de massacre. A nossa luta é por moradia e não por migalhas”, aponta Carolina. “A politica habitacional fica dentro da especulação imobiliária. A gente tem claro que a batalha vai ser grande”, continuou.
Emily, Jéssica e Vitória tem outro projeto: ocupar o barraco ao lado do “clube das meninas”. Já construíram uma porta de acesso na lateral e começaram a limpar o entorno do terreno. Só falta falar com o antigo morador para começarem a reforma com as outras crianças. Logo o “clube dos meninos” estará de pé, mas, assim como o das meninas, todos podem entrar.