Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
Fundamental deixar clara a nulidade dos meus conhecimentos de Direito e, mais ainda, dos rituais seguidos pelo chamado Supremo Tribunal Federal. Na minha indignação, entretanto, prefiro arriscar o equívoco a deixar de registrá-la ante essa ópera bufa que nos foi transmitida pela internet e que podemos tranquilamente dividir em três atos.
No primeiro ato, o Relator Luís Roberto Barroso analisou e deu suas opiniões quanto aos embargos propostos pelo grupo à direita do ringue. O primeiro, proveniente de dois movimentos integralistas que o apresentaram depois do prazo legal e por um cidadão que sequer se teria se documentado devidamente quanto a seus direitos de intervir, foi recusado sumariamente e por unanimidade. O segundo, envolvendo diversos ruralistas e uma tal fazenda Guanabara, teve igual tratamento. Já o terceiro mereceu um pouco mais de tempo.
Apresentado pelo Senador Fracisco Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, o embargo começava por basear-se no que o Relator refutou facilmente como duas contradições: (1) a ausência de citação do estado de Roraima, que só pleiteou sua entrada como litisconsorte depois de estabelecida a ação; e (2) a dimensão executória dada à ação popular, possibilidade já plenamente reconhecida como possível, segundo Luís Roberto Barroso. Novamente, embargo recusado por unanimidade.
Mas o senador de Roraima não ficava por aí. À tentativa de embargo seguia-se uma vasta lista de indagações e questionamentos presentes na mesma petição, segundo o Relator, que passou então a enumerá-las e comentá-las.
Como ficaria a questão da presença de pessoas miscigenadas, casadas com indígenas; poderiam continuar na Reserva? Sim, desde que se auto-reconhecessem como participantes da comunidade e assim fossem também por ela reconhecidas. Autoridades religiosas e templos de denominações não indígenas poderiam permanecer na Reserva? Sim, desde que não tenham fim de aculturar ou de evangelizar, e entendendo que deve caber aos povos indígenas e somente a eles decidir como e em quais circunstâncias se admitirá a presença desses religiosos e de seus templos. Poderão continuar em funcionamento escolas estaduais com currículos voltados para população não índia? Sim, desde que respeitando a ‘orientação’ da União.
Como fica a passagem de não índios pelas rodovias que passam pela Reserva? O acórdão já estabelece o direito de passagem, deixando claro entretanto que passagem não significa acesso aos recursos naturais, permanência no território etc. Como ficam os portadores dos títulos de propriedade de “boa fé”? Essa o Relator reconheceu ser mais complicada. Não haviam sido apreciadas, na ocasião, questões individuais envolvendo a Terra Indígena. A pergunta teria, pois, pertinência e, uma vez transitada em julgado a ação, a decisão é oponível. E aí a coisa começou a ficar enrolada, com o Relator citando a validade da portaria do Ministério da Justiça que estabeleceu Reserva, o decreto presidencial baseado no acórdão, a caracterização da TI conforme o que determina o artigo 231 da Constituição…
De um lado, Luís Roberto Barroso afirmava e reafirmava que a decisão referente a Raposa Serra do Sol “não tem efeito vinculante e refere-se exclusivamente à Reserva”. De outro, explicava que, embora ela não tenha efeito vinculante em sentido formal para além do caso aqui decidido, é claro que outras ações pendentes que deverão ser julgadas pelas instâncias locais levarão em conta a decisão do STF…
Voltando às perguntas do Senador, foi fácil passar pela indagação de como ficaria o caso da posse das fazendas desocupadas e da existência de índios em determinada área que não estão de acordo com os demais: problema a ser resolvido pelos próprios indígenas entre eles. Encerrando, um voto pelo desprovimento dos embargos apresentados pelo senador, exceto quanto às ações individuais pendentes, que não são assunto do STF “mas devem observar sua decisão”.
O quarto embargo, envolvendo novamente a participação do Estado de Roraima, solicitada quando a ação já estava em curso, foi rapidamente afastado, assim como o quinto, envolvendo as competências do Estado de Roraima quanto a serviços de Educação (já resolvido, sob a responsabilidade da União) e o direito de passagem pelas vias públicas (também já deliberado) . Caem, pois, os embargos do lado direito do ringue, considerados desprovidos de mérito. Mas agora vamos para o Segundo Ato.
Os argumentos elaborados pelo Ministério Público Federal presentes no sexto embargo merecem lautos elogios do Relator, pela sua competência, riqueza, sabedoria, conhecimento das leis e mais que valha. O que não significa que não serão todos refutados. Na maioria, eles têm como autora Deborah Duprat, na época Procuradora Geral da República. E ela é radical na defesa dos indígenas e no ataque ao STF, que acusa de ter ultrapassado os limites de seus poderes e, com isso, prejudicado os povos indígenas. Segundo a síntese inicial do Relator, para Duprat, “os princípios democrático e da separação de poderes impõem limites para a ação do Supremo, que propôs normas gerais e abstratas de condutas, que são prerrogativas do legislador”.
E aí vamos afundando cada vez mais no jurisdiquês… Para Luís Roberto, é fato que as condicionantes vêm gerando algumas polêmicas, e vale alguns esclarecimentos. Discutir o STF como “legislador negativo” seria um debate fascinante, mas irrelevante para a causa. O STF agiu de forma a garantir a decisão. A maioria entendeu que não era possível pôr fim ao conflito sem enunciar condições que integram o corpo do que foi decidido. O STF estava reconhecendo o direito dos Povos Indígenas com base na Constituição, mas entendo que deveria explicitar todo um sistema constitucional envolvido na matéria. Como disse a ministra Carmen Lucia, ontem em viagem, acolheu-se o pleito e interpretaram-se as circunstâncias constitucionais a respeito. Mas… muito importante: a decisão não é vinculante!!
As ponderações envolvendo os direitos dos índios vêm em seguida: Duprat sustentava que o STF teria dado provimento a interesses da união em detrimento dos direitos dos índios. Para o Relator, não há como acolher isso. O acórdão é claro e expresso, sem primazias a favor de quem quer que seja. Faz, sim, uma ponderação para conciliar, em princípio, pretensões antagônicas, respeitando a Constituição e as condições existentes. Negue-se, pois, provimento também a essa parte.
O Ministério Público vai adiante, questionando o sentido e o alcance da Lei Complementar prevista no parágrafo 6º do artigo 231, e defendendo a participação dos Indígenas nas decisões que afetem seus interesses diretos, afirmando que a consulta é elemento central da Convenção 169, da OIT. Candidamente, Luís Roberto explica que tudo isso foi considerada no acórdão, mas que o direito de participação que os Povos Indígenas têm é o de serem ouvidos e de suas opiniões serem honesta e seriamente consideradas, mas não têm obrigatoriamente que ser acatadas! Envereda por exemplos que envolvem a Fundação Chico Mendes (!), que “não pode decidir considerando apenas os indígenas”, e termina por negar provimento ao questionamento.
Finalmente, chega à questão da vedação à ampliação das áreas demarcadas. Afinal, justifica, a demarcação não poderia permanecer em aberto. Vedação comporta, entetanto, três esclarecimentos: (1) instrumento da demarcação não pode ser empregado para ampliar terra já reconhecida. Mas isso não impede que a área em uso seja aumentada por outros instrumentos, como por exemplo os povos indígenas comprando outras áreas e delas se tornando “proprietários” (entre aspas mesmo, pois foi exatamente a palavra usada). Ou a União comprando-as e em seguida fazendo-lhes doação. Ou ainda por meio de desapropriação. Tudo isso para não criar instabilidade jurídica. Mas – repete – se União achar que deve, pode desapropriar, indenizar e aumentar.
O acórdão também não proíbe a demarcação. A limitação alcança apenas o exercício da auto-tutela administrativa, fundada na conveniência do administrador, já que depende de estudo aprofundado e antropológico. Resumindo e fechando, nega provimento aos diferentes itens oferecidos pelo MPF, salvo para explicitar, mais uma vez, que não tem efeito vinculante – e agora temos uma adjetivação preciosa – em aspecto formal para outros casos a decisão proferida em relação a esta ação popular.
Se até então tudo havia fluído sem problemas, agora o Ministério Público conseguiu que não só haja alguma discussão, como que as máscaras da pantomima comecem a ser tiradas.
Primeiro, é Teori Zavaski que afirma que a decisão estabelece sim “efeito prospectivo” para as terras indígenas.
Marco Aurélio Mello (que foi o único voto vencido no julgamento anterior) diz que não tem dúvidas de que as condicionantes serão utilizadas pelo Estado na medida em que isso for para ele importante. Vai além: afirma que o MPF está correto, pois o STF entrou sim no cenário normativo, introduzindo normas que deveriam ser prerrogativas do Congresso Nacional. E o fez abandonando a postura que devia ser sua, enquanto Supremo Tribunal. Por isso mesmo, vota contra o Relator e acolhe os embargos do MPF.
Gilmar Mendes elogia rapidamente o Relator, e cabe a Lewandowski abrir o jogo de fato. Depois de defender as condicionantes sem usar uma vez sequer as palavras Raposa Serra do Sol, ele escancara a questão, afirmando que a decisão é vinculante sim e define o caminho a ser seguido em relação à demarcação de todas as Terras Indígenas.
Rosa Weber tenta iniciar citando Teori Zavaski, que retoma a palavra para ratificar o que disse antes sobre o fato de o acórdão estabelecer efeito prospectivo para as demais demarcações. Celso Mello também interrompe para concordar que essa é a consequência natural de qualquer ato ou coisa julgada… Finalmente, a palavra volta a Rosa Weber, que afirma que na verdade Teori completou o que o eminente Relator falou e que nega os embargos nos termos propostos.
É a vez de Joaquim Barbosa, que simplesmente diz que acolhe os embargos, como Marco Aurélio, por entender que o STF (que agora preside) extrapolou e agiu como verdadeiro legislador em relação à matéria. E, há algum tempo de pé, tenta interromper a sessão para um intervalo.
Luis Roberto Barroso toma a palavra, entretanto, e defende o acórdão, alegando que, embora concorde que o STF extrapolou suas funções, caso isso não tivesse sido feito, “a execução do julgado não teria se dado”. E vai além: o Supremo foi ousado, e isso não deve ser padrão, mas nesse caso ele definiu o sistema e o modo de executar. E é mais que claro na forma como resume sua fala anterior: “Está aqui o pacote”! Houve uma ação um pouco atípica, mas necessária.
Gilmar Mendes prontamente concorda: Lembro o general Heleno dizendo que exército tinha necessidade de licença para entrar em determinadas terras. Tínhamos queimadas de pontes etc. Portanto foram essas as circunstâncias que determinaram as condicionantes, e que claro se irradiam para demais processos…
O Relator completa: Não teria acontecido se o Supremo não tivesse ousado… Sou crítico, mas neste caso acho que sem o STF cometer essas “ousadias” não estaríamos aqui…
E Joaquim Barbosa encerra o Segundo Ato: Ultimamente recebi os dois lados desse conflito e considero que alguns condicionantes foram até positivos para os indígenas, mas continuo achando que extrapolamos.
E declara ser hora do intervalo.
O Terceiro Ato é rápido, inclusive porque conta com menos atores. Os dois únicos defensores da posição da Procuradoria Geral da República, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, simplesmente não retornaram. Na ausência de Barbosa, a presidência é de Lewandowski, e a discussão agora envolve os embargos das comunidades indígenas, que o Relator explica logo não serem problemáticos em termos de discussão.
O primeiro envolve garimpagem e faiscação. O acórdão estabelece que os indígenas não poderão explorar minérios e recursos hídricos sem autorização do Congresso e da União. Mas Luís Roberto defende a tese – aprovada – de que não se pode confundir mineração como atividade econômica com práticas culturais extrativistas primitivas. Então provê parcialmente.
A exigência da lei complementar ao parágrafo 6º do artigo 231 já foi discutido no embargo do MPF, embolada com a questão da consulta prévia da Convenção 169 da OIT. A indenização pela ocupação de parte das terras indígenas, ou mesmo no seu entorno, por empreendimentos que a prejudiquem, é questão que não havia sido acolhida antes; nega-se provimento. E a ampliação da área demarcada tem sua negativa ratificada, como já acontecera anteriormente.
Antes de encerrar a sessão Luíz Roberto deseja compartilhar algumas informações. Um desembargador federal cujo nome sequer ele conseguiu decorar informou que a execução do acórdão já foi plenamente concluída desde meados de 2009, sem necessidade de prisões, e que a maior parte dos retirantes já sacou os valores depositados pela Funai como indenização por benfeitorias em ocupações de boa fé. Assim, transitado esse acórdão e não existindo mais o conflito federativo a partir de hoje, ele considera que a jurisdição do STF está exaurida. Questões outras serão locais e, se for o caso, virão ao Supremo, mas de outra forma e em outro momento.
Por todo o exposto:
1. não reconhece os dois primeiros embargos;
2. acolhe parcialmentee, sem efeitos modificativos, o do senador;
3. reconhece a força intelectual e persuasiva do STF, mas reafirma qua a decisão não é vinculante “em sentido técnico” para outros tribunais;
4. são válidos a portaria do Ministério da Justiça e o decreto presidencial que demarcaram a Reserva, observadas as condicionantes;
5. está aprovada a caracterização da área como TI de acordo com o artigo 231 da Constituição;
6. o usufruto dos índios não lhes confere o direito exclusivo de explorar direitos minerais nas TIs, que depende de autorização da União. Mas isso não se confunde com a extração cultural e tradicional, sem fins econômicos;
7. e dá, assim, por encerrada a participação do Supremo na questão.
A sessão já vai ser encerrada quando alguém lembra que Marco Aurélio e Joaquim Barbosa haviam dado provimento integral aos embargos do MPF. Há dúvida quanto às questões do senador, mas isso pode ser acertado na ata, na próxima sessão.
Pano rápido.