Beradeiros longe do barranco do Madeira

DIGITAL CAMERABeradeiros são ribeirinhos, pessoas que constroem sua existência no barranco do rio. A reportagem mostra que os beradeiros do Madeira, atingidos pelas obras das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, estão sendo jogados cada vez mais para longe do Madeira. A luta dessa população é pela sobrevivência e pela garantia dos compromissos assumidos pelos consórcios das hidrelétricas que, até hoje, viabilizou apenas reassentamentos precários e inadequados.

Por João Marcos Dutra, no MAB

Em março de 2010 foi organizado um grande acampamento pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Mutum Paraná com mais de 300 famílias, que desencadeou numa reunião com a Secretaria Geral da Presidência da República em abril do mesmo ano, na qual se acordou realizar uma reunião junto com a Energia Sustentável do Brasil (UHE Jirau) e outra com Santo Antônio Energia (UHE Santo Antônio), consórcios responsáveis pela construção das duas mega-hidrelétricas que estão em construção no Rio Madeira.

Mutum Paraná era uma das muitas comunidades que foram remanejadas para dar lugar às barragens e seus reservatórios. As obras já estavam em execução e as famílias exigiam participação na construção da proposta para seus reassentamentos. A reunião com a Santo Antônio aconteceu, mas a empresa não estava disposta a realizar o debate sobre a proposta de reassentamento. Jirau sequer aceitou protocolar o ofício que a convidava para a reunião e, além disso, demitiu o funcionário que recebeu o movimento para discutir as propostas reivindicatórias. Nesse momento, os reassentamentos já estavam sendo construídos de acordo com a vontade alheia aos atingidos.

A situação geral dos reassentamentos das famílias atingidas é um verdadeiro fracasso. Além do aniquilamento da cultura dessas comunidades tradicionais, que é extremamente dependente das relações com o território e o ambiente, também impõem inúmeras dificuldades para a produção. Pescadores artesanais, agroextrativistas, pequenos garimpeiros, agricultores de várzea foram obrigados a deixar suas atividades e hoje são poucas as perspectivas de retornar a exercê-las.

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Muitas famílias conheceram os reassentamentos apenas no dia da mudança. Os projetos não foram debatidos com as famílias, mas sim arbitrários e impostos pelas empresas. Os locais, por exemplo, foram definidos pela empresa e, como consequência, há reassentamentos que foram implementados em áreas inférteis, como é o caso de Santa Rita, que está localizado em uma antiga fazenda de gado chamada Carvão. Em outros, como ocorre em Morrinhos, há lotes que sofrem influência do reservatório, com afloração e encharcamento de água no solo.

Em Vila Nova de Teotônio, um dos primeiros reassentamentos feitos pela empresa, foi organizado um workshop aos atingidos pela UHE Santo Antônio, para que alguns atingidos conhecessem um modelo de casa, que seriam entregues aos reassentados. Era mais uma das atividades planejadas para simular um processo participativo de planejamento da mitigação dos impactos. Não houve qualquer padrão no tratamento dado às famílias. Tanto em relação aos lotes que vão desde 400 m² à 10 hectares, quanto às casas que variam entre 50, 60 e 70 m², e algumas raras à 100 m².

Em 2011, o MAB voltou a reunir diversos atingidos dos reassentamentos Vila Nova de Teotônio, Santa Rita, Morrinhos, Riacho Azul, e São Domingos para fazer a “luta dos reassentamentos”, que trouxe novamente a Secretaria Geral da Presidência da Republica à Rondônia. As famílias exigiam a garantia de seus direitos e igualdade no tratamento pelas empresas.

Somente após a mobilização houve o cumprimento de exigências básicas que o licenciamento estabelecia em relação aos reassentados, como o retorno do pagamento de uma verba de manutenção às famílias, que as empresas deveriam manter até o restabelecimento das condições de sustento e geração de renda. A verba é prevista no Programa de Reorganização das Atividades Produtivas, e foram previamente cortadas. Hoje, ainda há a constante ameaça de suspensão deste auxílio aos atingidos.

A comunidade do reassentamento Santa Rita era o único que havia recebido patrulha de máquinas agrícolas para apoiar a produção e aos demais também só foi aberto após as lutas no mês março de 2011. Mas até hoje nenhum reassentado de Santa Rita recebeu a área de Reserva Legal que se trata de 40 dos 50 ha dos lotes, e não se sabe quando e onde será entregue.

Segundo relatório de estudos da própria Santo Antônio Energia, em maio de 2011, as relações de trabalho e renda pioraram para 74 % dos atingidos. Em relação aos efeitos gerados às atividades pesqueiras, 88% consideram que piorou.

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Em 2012, uma auditoria foi realizada pelo Tribunal de Contas da União solicitada pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados (CFFC),  que visitou os reassentamentos Santa Rita, Morrinhos, Vila Nova Teotônio e Nova Mutum Paraná. Sobre a produção nestas áreas, afirma que “em relação à reorganização das atividades produtivas, 93% dos entrevistados afirmaram que ainda não houve o restabelecimento das fontes de renda da população”.

Em relatório de vistoria técnica do IBAMA, realizada em agosto de 2013, para acompanhamento do Programa de Remanejamento da População Atingida, entre várias considerações feitas, como a necessidade de garantir acesso à água potável, pois há reassentamentos inteiros com os poços de água contaminados e a correção do solo para a agricultura, aponta que seja feita a distribuição mensal às famílias que se encontram em situação de risco com relação à segurança alimentar.

Nova Mutum Paraná: como não fazer na Amazônia

O “polo de desenvolvimento” prometido e amplamente divulgado a sua maneira pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil é na realidade uma cidade de placas de cimento, asfaltada e sem árvores, As casas de placa são insuportáveis sem ar condicionado. As contas de luz que agora são cobradas tem um valor altíssimo e incompatível com a renda da população cujas atividades que garantiam a renda e o sustento foram desestruturadas.

Entre as muitas promessas dizia-se que “Nova Mutum” seria um polo que atrairia a atividade industrial e que a população remanejada teria assegurada postos de trabalho que garantiriam renda na nova morada. Mas a única ação que os empreendedores realizaram neste sentido foi a criação do Polo Industrial Jirau, criado para produzir as placas das casas montáveis. Hoje o suposto polo industrial está abandonado e as casas já estão rachando e se desfazendo. A “descartabilidade” do local revela a real intenção de sua construção, acomodar temporariamente os engenheiros e demais funcionários da usina.

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Alguns reassentados de Nova Mutum tiveram direito a lotes rurais no chamado Reassentamento Rural Jirau, onde as terras são inférteis para a agricultura, distantes de Nova Mutum Paraná e não há transporte dos lotes para as casas na “cidade modelo”.

Linhões passam por dentro de alguns dos lotes, parte deles abandonados ou habitadas por terceiros, a quem os desistentes repassaram. Quem optou por tentar sobreviver na área construiu uma casa ao lado de uma espécie de “galpão” construído pela empresa. Não há a garantia de acesso a direitos básicos como saúde e educação.

Segundo o Parecer Técnico 540/2013, que analisa parte da condicionante específica 2.15 da Licença de Operação de Jirau, que diz respeito ao monitoramento das famílias do Reassentamento Coletivo Jirau, “pode-se constatar que as famílias não estão conseguindo gerar nenhum tipo de renda nas propriedades rurais. A renda das famílias está baseada principalmente em atividades externas a propriedade, recebimentos de aposentadorias ou outros auxílios sociais e aluguel de casa em Nova Mutum Paraná. Em relação aos aluguéis, com o eminente processo de desmobilização da mão de obra da UHE Jirau o mercado imobiliário tende a ter queda, portanto, essa fonte de renda tende a não se manter por muito mais tempo. Além disso, é premissa do Programa de Remanejamento da População que as famílias restabeleçam as condições de moradia e renda e isto não tem se observado no reassentamento”.

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O Movimento dos Atingidos por Barragens aguarda reunião com a Santo Antônio Energia e Energia Sustentável do Brasil (Jirau), solicitada à Secretaria Geral Presidência da República, em um documento síntese de uma Audiência Pública Popular realizada em agosto, em Jaci Paraná, com mais de 500 atingidos, pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual e o Governo do Estado.

Não podemos admitir que as duas hidrelétricas estejam funcionando, com Licenças de Operação concedidas, sem que os direitos das famílias que saíram de suas casas e de suas terras, para dar lugar aos canteiros de obras e aos reservatórios, não estejam garantidos e sejam os mais prejudicados com os empreendimentos. Dessa vez, o governo deve manter uma posição firme para exigir que as empresas, no mínimo, cumpram as condicionantes estabelecidas previamente nas obras e, além disso, respondam pelas sistemáticas violações de direitos humanos no rio Madeira.

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