Márcio Santilli, ISA
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso enviou à presidência da corte, no sábado (12/10), seu voto sobre os embargos de declaração apresentados à decisão do caso da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol (RR), proferida pelo tribunal em 2009. Com isso, já é possível fixar um prazo para a apreciação desses recursos.
A data ainda não foi marcada oficialmente, mas há informações de que o novo julgamento pode acontecer nas próximas semanas. O envio do voto diretamente ao presidente Joaquim Barbosa, e não à pauta do plenário do STF, sugere que Barroso pede urgência para o caso.
A figura do embargo tornou-se conhecida e polêmica recentemente, no caso do “Mensalão”, ao possibilitar uma rediscussão da pena de alguns dos acusados. Trata-se de um recurso que pretende esclarecer dúvidas, omissões ou contradições sobre uma sentença.
A nova decisão poderá ter impacto considerável na discussão que ocorre em todo o país a respeito da demarcação de TIs, com eventuais implicações importantes sobre territórios e povos indígenas. Em 2009, o STF julgou constitucional a demarcação em área contínua da TI Raposa Serra do Sol, mas estabeleceu 19 “condicionantes”, de conteúdo abrangente, que suscitaram dúvidas. Elas são objeto dos embargos que serão julgados agora, com base no voto de Barroso, que substituiu o ex-ministro Ayres Brito na condição de relator do caso.
Entre as condicionantes, há algumas que repetem o disposto na Constituição e valem para todas as TIs, mas há outras que não constam do texto constitucional e o STF definirá se valem ou não para outras áreas. Por exemplo, uma delas veda a ampliação de TIs. Neste caso, não há prejuízo para a Raposa Serra do Sol, pois a própria decisão do STF referendou a demarcação em sua extensão integral. Mas há muitos exemplos de comunidades populosas vivendo em territórios exíguos, que seriam gravemente penalizadas se o STF considerar essa restrição válida para todas as TIs. Outras condicionantes poderiam restringir o usufruto exclusivo dos índios sobre suas terras e recursos naturais.
Barroso já se pronunciou de forma zelosa e positiva sobre os direitos indígenas. É difícil prever, no entanto, qual será sua posição sobre cada um dos pontos discutidos em seu voto. “Eu acho que as condicionantes, no geral, explicitavam deveres ou consequências que já estavam na Constituição. Onde elas explicitavam ou veiculavam ideias que não decorriam diretamente da Constituição, aí acho que vale apenas para o caso concreto da Raposa Serra do Sol, mas aí, sim, acho que o Supremo não tem competência normativa para disciplinar ad futurum, quando vão ser feitas as demarcações”, afirmou, durante a sabatina que aprovou sua indicação ao STF, em junho (veja aqui).
Incompetência e covardia
As repercussões do novo julgamento podem agravar-se em função do atual contexto de continuada incompetência técnica e covardia política do governo federal e do Congresso no trato da questão.
A gestão de Dilma Rousseff tem o pior desempenho, desde a redemocratização do país, com relação aos processos de demarcação de terras indígenas, titulação de quilombos, criação de unidades de conservação e de assentamentos da reforma agrária.
O advogado-geral da União, Luís Adams, editou, em 2012, a Portaria 303 para estabelecer normas para as demarcações com base numa interpretação restritiva das 19 condicionantes, conforme pressões ruralistas, antecipando-se à análise dos embargos. Sob protestos dos índios, suspendeu a portaria, sem revogá-la, condicionando sua reentrada em vigor à decisão do STF.
Vários processos demarcatórios, já concluídos tecnicamente, estão parados nas gavetas do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da presidente (saiba mais). Cardozo alega judicialização de vários desses casos, mas não toma providências quanto aos não judicializados e à possibilidade de indenizar eventuais ocupantes não índios detentores de títulos legítimos sobrepostos a TIs, o que poderia reduzir conflitos e permitir a retomada das demarcações no centro-sul do país. Como se não bastasse, pretende alterar os processos demarcatórios para pior, interpondo interesses de outros órgãos da administração e segmentos da sociedade na decisão sobre eles.
Não é menos desfavorável aos direitos indígenas a atuação do Congresso, onde, na falta de definição programática dos principais partidos, a bancada ruralista passou a impor a sua agenda. Desde a campanha à presidência da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) comprometeu-se com projetos e interesses ruralistas. Nos últimos meses, diante das manifestações indígenas, vem protelando a tramitação de alguns projetos anti-indígenas para evitar desgaste político, mas mantém a porta aberta às investidas da frente parlamentar da agropecuária.
Durante a Mobilização Nacional Indígena, no início do mês, quando 1,5 mil índios paralisaram a Esplanada dos Ministérios, havia somente um pequeno grupo de parlamentares para recebê-los e ouvir sua indignação frente à tentativa de restringir seus direitos constitucionais. Nem Alves, nem os ruralistas responderam à solicitação de audiência feita pelos índios. Aliás, abandonaram o Congresso.
É nesse contexto de silêncio culposo no governo e de crise reacionária no Legislativo, agravado pela ausência de qualquer interlocução ou consulta aos povos indígenas, que o STF poderá suprir lacunas e reafirmar a integridade dos seus direitos. Por absurdo que seja, tornou-se o último reduto do bom senso para o trato da questão, podendo exercer, por exclusão, a função de tutela desses direitos pela União, determinada pela Constituição.