Por Luciana Nepomuceno, para Borboleta nos olhos, em Geledés
Quando eu era mais jovem eu costumava ignorar os problemas. Assim, quem sabe, eles tivessem sumido quando eu voltasse a abrir os olhos. Meu pai me chamava de avestruz. Olha só: os problemas não sumiam por eu não tratar deles. Quando voltava a fitá-los, ainda estavam ali, às vezes maiores ou agravados.
Tem uma porção de gente fechando os olhos e enfiando a cabeça na terra quando o problema em questão é a discriminação racial. Sim, o racismo. O meu, o seu, o nosso. Esse que todos os dias dizem que não existe e todos os dias se agrava e aprofunda. Não, não adianta você até ter amigos negros. Não adianta, nem mesmo, eu ser descendente de escravo (meu bisavô paterno) ou você ter namorado um negro na adolescência. Nosso racismo é estrutural. É um problema individual, mas não só. É uma questão da sociedade inteira e suas instituições e mecanismos. Está na escola, na mídia, no mercado de trabalho, no sistema prisional, por onde você olhar.
Este racismo age diariamente, sob nossos olhos, imiscuindo-se nas relações sociais que travamos, nas decisões políticas, nas escolhas estéticas. O racismo está ali, presente, quando andamos à noite e mudamos de calçada se vislumbramos alguém “suspeito” andando na direção contrária. Suspeito porque é um jovem negro, nós não completamos o pensamento, mas ele existe, se não pronto a ser enunciado, pronto a ser posto em ato. E o racismo está, também, presente, de forma igualmente cruel, diferenciando nas entrevistas de emprego, solicitando-se “boa aparência” o que exclui, sem que precise ser dito, cabelos que não sejam lisos ou que a dona do mesmo (essa desleixada) não tente alisar a custo de sua saúde, beleza e finanças. Nosso racismo materializa-se em ações individuais, mas não só, diluem-se no sistema, com suas razões legitimadas em valores socialmente construídos, disseminados e silenciados.
O Artigo I da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial diz o seguinte:
“Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou o efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outra área da vida pública.”
Eu acho que não é difícil reconhecer a desigualdade, é um exercício simples: olhe as capas das revistas de “mulheres” e elas estarão ocupadas por fotos de mulheres brancas, marjoritariamente. Olhe a foto na carteira de trabalho recém-garantida das empregadas domésticas e verá fotos de mulheres negras em sua maioria. Olhe as Universidades brasileiras e verá repleta de pessoas brancas. Olhe as prisões ou os registros de mortes violentas e encontrará os negros. Olhe os cargos públicos de ponta. Onde estão os negros? Olhe os protagonistas das novelas, filmes, livros. Onde estão os negros? E se, por acaso, você encontra uma Miss Universo negra, ainda escutará: apesar de negra, é linda ou só ganhou porque faz parte das cotas (como se uma pessoa negra não pudesse ser considerada bonita fora desse registro). E se, por acaso, encontra uma negro ocupando um cargo de relevância, ainda se ouvirá: é um negro de alma branca. E, reparem, ainda há o sexismo do exemplo, porque uma mulher negra em um alto cargo é encarada como uma excrecência, uma idiossincrasia do sistema.
Você, eu, todos nós, não repararmos nisso ou encararmos como um acaso, algo natural ou, ainda pior, procurarmos justificativas e explicações sem darmos pelo óbvio é um dos aspectos mais nocivos do nosso racismo.
Eu acho que é hora de arregalarmos os olhos. Eu acho que é hora de ouvirmos. Eu acho que é tempo de reconhecermos que o racismo é maior que nossa boa intenção individual e aprender, diariamente, a reconhecê-lo e valorizar os mecanismos sociais (como as cotas, as políticas afirmativas, etc.) que podem minimizar a situação atual e procurar desenvolver estratégias macro para transformar a realidade significativamente. Eu acho que é hora, principalmente, de pararmos de enfiar a cabeça no chão todas as vezes que alguém nos aponta uma situação, um evento, uma palavra que ofende e machuca. É tempo de assumirmos. De pedir desculpa quando algo nos escapa. De tentar não repetir o erro. É tempo de parar de negar a opressão, pois isso a cristaliza e naturaliza.
É tempo de luta. Interna, reconhecendo em nós a possibilidade frequente do erro. É tempo de luta. Em relação, reconhecendo e denunciando as estruturas que oprimem e discriminam. A minha inclui recontar minha história e saber meu bisavô para além de sertanejo, pai amoroso, engraçado, homem bom e respeitado. Quero sabê-lo e dizê-lo negro. Conhecê-lo e me conhecer. E a sua luta, por onde passa?
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.