A etapa final da Comissão Nacional da Verdade será carregada de tensão. Ativistas temem que o agravamento da crise interna entre os cinco integrantes do grupo prejudique a conclusão do relatório sobre violações de direitos humanos durante a ditadura militar. As primeiras reuniões para discutir o formato do documento devem ocorrer no fim de setembro
Roldão Arruda – O Estado de S.Paulo
A questão é que o clima de tensão chegou a tal ponto que alguns dos responsáveis pela elaboração do relatório final já não se falam. Também têm sido comuns as trocas de palavras ásperas durante as reuniões semanais da comissão.
A crise tem desgastado tanto os trabalhos que o advogado criminalista José Carlos Dias, que vinha se recusando seguidamente a aceitar a coordenação do grupo, feita em sistema de rodízio com trocas a cada três meses, voltou atrás. Após ouvir os apelos dos colegas, deve assumir o cargo nesta semana, sucedendo a também advogada criminalista Rosa Maria Cardoso da Cunha, que defendeu a presidente Dilma Rousseff nos anos de chumbo.
Dias dialoga com todos os integrantes do grupo e a sua indicação é uma tentativa de apaziguamento interno. A própria maneira como foi indicado, porém, revela a quantas andam as tensões. A informação de que ele seria o próximo coordenador foi divulgada pela imprensa após ter sido avalizada por três membros: o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, a psicanalista Maria Rita Kehl e o jurista José Paulo Cavalcanti Filho. A atual coordenadora soube pelos jornais que o nome de seu sucessor já estava definido.
Preocupada com o agravamento da crise interna na comissão, Dilma decidiu acompanhar mais de perto os trabalhos. Segundo informações de assessores, teria designado para a tarefa seu chefe de gabinete, Giles Azevedo. Por outro lado, também se atribui parte dos problemas à própria presidente, que se mantém indecisa quanto à indicação dos sucessores do ministro Gilson Dipp e do procurador Claudio Fonteles. Os dois pediram afastamento do cargo e há mais de três meses aguarda-se os nomes dos substitutos.
Dipp saiu por motivos de saúde. Quanto a Fonteles, não teria suportado a tensão interna. A maneira como saiu, de modo abrupto e com o anúncio público de sua decisão, desagradou o Planalto. Após ter sido convidado pessoalmente por Dilma, que o recebeu para uma longa conversa sobre os temas da comissão, esperava-se que a presidente fosse avisada da decisão antes de se tornar pública.
Isolamento
O episódio da indicação de Dias para suceder Rosa Cardoso na coordenação dos trabalhos ajuda a compreender como a crise se desenrola. A ex-advogada de Dilma e de outros presos políticos nos anos da ditadura está isolada no grupo.
Entre outras coisas, ela defende mais espaço na comissão para vítimas e familiares de mortos e desaparecidos, redução do número de sessões fechadas ao público e a divulgação de relatórios parciais e de depoimentos obtidos – Fonteles era defensor da publicação paulatina das informações. Rosa acredita que as sessões públicas têm um papel didático em relação à ditadura e que a comissão deve estimular o debate sobre a revisão da Lei da Anistia de 1979.
Os outros integrantes do grupo não constituem um bloco homogêneo. De maneira geral, porém, tendem a atribuir maior importância ao relatório final, com as revelações e análises que trará sobre a ditadura, além de um alentado capítulo com recomendações voltadas sobretudo para as políticas de direitos humanos. Eles também não têm a mesma visão que a atual coordenadora quanto à relação entre a comissão e o debate sobre a Anistia. O próximo coordenador do coletivo já disse que cabe à Justiça analisar o tema.
As divergências também se estendem a questões administrativas. As discussões sobre contratação de pesquisadores e assessores têm sido especialmente ácidas.
O debate interno já começou a se estender às comissões estaduais e municipais, que vão colaborar na preparação do relatório final. Um indicador disso foram as seguidas manifestações públicas de apoio que Rosa passou a receber desses grupos nas últimas semanas. O caso mais visível é o do Estado de São Paulo, cuja comissão é presidida pelo deputado petista e ex-preso político Adriano Diogo.
O receio é de que um relatório produzido em tais condições se torne mais vulnerável e suscetível a críticas, que viriam não só de setores que sempre se opuseram à própria existência da comissão, mas também de quem a apoiou.