Militar acusado da morte de dirigente do Partido Comunista admite tortura no DOI-Codi

Lucia Vieira, filha de Mário Alves, morto e torturado por militares em 1970, é aplaudida por um dos acusados, o ex-major do Corpo de Bombeiros, Valter da Costa Jacarandá (de óculos) Leo Martins / O Globo
Lucia Vieira, filha de Mário Alves, morto e torturado por militares em 1970, é aplaudida por um dos acusados, o ex-major do Corpo de Bombeiros, Valter da Costa Jacarandá (de óculos) Leo Martins / O Globo

Mário Alves foi sequestrado e torturado em janeiro de 1970 e levado para o DOI-Codi no Rio; filha de vítima também prestou depoimento. Segundo testemunhas, tortura psicológica era dizer que, se os militantes não colaborassem, seriam empalados

Letícia Fernandes – O Globo

RIO — Único militar a comparecer à audiência pública da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão da Verdade do Rio na Alerj, o coronel reformado Valter da Costa Jacarandá admitiu o uso de técnicas de tortura nas dependências do DOI-Codi, mas negou qualquer contato com Mário Alves, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A Comissão ouviu também, nesta quarta-feira, o depoimento de ex-presos políticos.

O ex-major, um dos quatro acusados de torturar e matar Mário Alves, afirmou que montou um grupo de operações especiais treinado para desativar bombas, que foi solicitado pela Secretaria de Segurança e, por conta disso, acabou se envolvendo em interrogatórios, mas por menos de um mês. Ele admitiu que atuou no DOI-Codi da Rua Barão de Mesquita e chamou de excessos as torturas descritas pelos ex-presos políticos. Ele disse que foi movido pela aventura.

— Certamente houve excessos nos interrogatórios, como já foram descritos aqui. Eu só acompanhava os interrogatórios, fornecia informações provenientes das análises feitas sobre essas pessoas. Participávamos da captura, recebíamos o endereço, nome e o ponto onde era marcado o encontro. Nunca tive ideologia política, o que me atraiu foi a aventura, eu estava participando de um movimento contrarrevolucionário, era uma guerra — disse Jacarandá.

Outros três ex-tenentes foram convocados, mas não compareceram à audiência. Mário Alves foi sequestrado em janeiro de 1970, no governo do então presidente Emílio Garrastazu Médici, e levado para o DOI-Codi do Rio, onde passou por sessões de tortura e foi morto no dia seguinte a sua chegada, aos 47 anos. De acordo com todas as testemunhas que prestaram depoimento no plenário da Alerj, uma das formas de tortura psicológica era dizer que, se os militantes não colaborassem, teriam o mesmo fim de Mário Alves, seriam empalados.

Ao término da audiência, questionado sobre as torturas praticadas em Álvaro Caldas e Maria Dalva Leite de Castro, que o acusaram, o ex-major afirmou que “pode ter acontecido no calor do momento”:

— Devo ter desenvolvido um mecanismo de defesa, porque não lembro mais de nada. Devo ter feito alguns desses excessos no calor do interrogatório, mas não fiz nada contra o Mário Alves.

A presidente da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Cardoso, ressaltou a importância do depoimento de testemunhas, que ajudam a elucidar os fatos ocorridos no período da ditadura militar:

— A voz das testemunhas é a fonte principal de informação de uma comissão da verdade, elas circunstanciam o momento. O empalamento é uma das formas mais abjetas de tortura, uma violência sexual horrorosa e desnecessária. Isso desmoraliza a tese de que a tortura era usada para obter informações, e sim para humilhar pessoas, tudo decidido pelas altas autoridades do período. Era um estado de terror.

Na lista de depoentes estavam os ex-presos políticos Álvaro Caldas, José Luís Sabóia, José Carlos Tórtima, Maria Dalva Leite de Castro, Newton Leão Duarte, Paulo Sérgio Paranhos e Sylvio Renan Ulyssea. Já os militares acusados são os ex-tenentes do Exército Luiz Mário Correia Lima, Roberto Duque Estrada e Dulene Garcez, e o ex-major do Corpo de Bombeiros, Valter da Costa Jacarandá. Antes do início da audiência, que começou por volta das 11h, foi feito um minuto de silêncio pela morte do brigadeiro Rui Moreira Lima, um dos símbolos da resistência dentro das Forças Armadas.

O advogado dos três ex-tenentes, Rodrigo Rocca, apresentou uma petição à Comissão da Verdade na manhã de ontem dizendo que, por seus clientes terem respondido a essa mesma acusação nas esferas administrativa e judicial, não têm mais nada a declarar. A Comissão vai acionar o Ministério Público Federal para que eles sejam obrigados a comparecer.

O primeiro depoimento da manhã foi o da única filha de Mário Alves, Lucia Vieira. Ela contou a trajetória política do pai, grande parte vivida na clandestinidade, e a dissidência do Partido Comunista Brasileiro que criou o PCBR. Ela também denunciou os abusos sofridos por seu pai, que nunca teve o corpo encontrado:

— Ele teve uma vida curta, de lutas, inteiramente dedicada ao seu sonho revolucionário. A verdade finalmente está sendo revelada, e a história lhe fará justiça.

Logo após a fala de Lucia, dez jovens do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, que carregavam uma faixa, gritaram palavras de ordem contra a tortura. Seguranças da Casa expulsaram com violência os manifestantes que carregavam o cartaz. Houve confusão na porta do plenário.

Em seguida, foi a vez do testemunho de Álvaro Caldas no plenário da Alerj. Ele reproduziu a fala de Raimundo José Barros Teixeira Mendes, companheiro de cela de Mário, e acusou o ex-major Valter da Costa Jacarandá de girar a manivela que acionou choques elétricos no corpo de Caldas:

— Segundo Raimundo, o lance final entre Mario Alves e seus torturadores foi a introdução de um cassetete de madeira com estrias de aço que provocou a perfuração de seus intestinos, causando hemorragia interna e morte. 43 anos depois destes fatos tenebrosos que mancham a história do país, que hoje respira a liberdade gracas à democracia conquistada pela luta dos que ousaram resistir à ditadura, eles podem esclarecer o destino que deram ao corpo de Mário Alves.

Por volta das 11h40m, Newton Leão Duarte, ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional) falou no plenário e, em seguida, Paulo Sérgio Paranhos, fundador do PCBR, preso em dezembro de 1969. O advogado Wadih Damous, presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, comentou a importância das comissões estaduais:

— O papel da Comissão da Verdade é tirar a poeira de debaixo do tapete e colocar a luz do sol, é preciso que se saiba que no passado nem sempre se podia manifestar livremente. Hoje, isso é possível graças a pessoas como Mário Alves, que insurgiram contra o regime.

Em depoimento emocionado, Maria Dalva Leite de Castro lamentou que, passados mais de quarenta anos, o caso de Mário Alves continue impune. Ela também acusou o ex-major do Corpo de Bombeiros de ter pessoalmente a torturado e questionou o sumiço de Amarildo de Souza, morador da Rocinha que desapareceu depois de ser levado para a sede da UPP do morro:

— Os agentes praticavam o mal, espalhavam o mal e se gabavam disso. Eu acuso o major Jacarandá, que me torturou pessoalmente. 43 anos se passaram e estes algozes continuam impunes. 43 anos depois, ainda se tortura, principalmente nas áreas mais pobres. Cadê o Mário Alves? Cadê o Amarildo?

No início da tarde, o ex-major do Corpo de Bombeiros, Valter da Costa Jacarandá, foi inquirido por Wadih Damous, presidente da Comissão da Verdade do Rio. Jacarandá negou qualquer participação na captura, tortura e morte de Mário Alves, alegando que as informações eram muito compartimentadas. Disse também que nunca ouviu falar do empalamento, técnica de tortura utilizada no dirigente do PCBR, e que só ouviu falar de Mário Alves depois do período de abertura política.

Para Lucia Vieira, apesar de Jacarandá ter ficado “em cima do muro”, é muito importante que essas investigações e convocações continuem ocorrendo:

— O major está no papel dele, eles tinham orgulho desses ‘excessos’. O que houve não foram excessos, foi tortura, e é claro que ele sabia que o Mário Alves estava no DOI-Codi. Estou feliz por ver tantas pessoas, por ver jovens apoiando esta luta. Nós, os atingidos pela ditadura, já estamos envelhecendo, então ver representantes novos me entusiasma. O caso do meu pai foi o primeiro que responsabilizou a União, com quatro testemunhas que revelaram em juízo o que sabiam. Essa investigação não pode ser fogo de palha, porque isso ainda acontece. O Amarildo, por exemplo, é o mais novo desaparecido político.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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