Em Dourados, MS, indígenas são mantidos em verdadeiros guetos, levando à violência e ao alcoolismo

Em Dourados, aproximadamente 12 mil índios dividem 3,6 mil hectares. (Foto: Reprodução/TV Morena)
Em Dourados, aproximadamente 12 mil índios dividem 3,6 mil hectares. (Foto: Reprodução/TV Morena)

Dados divulgados pelo Conselho Missionário Indigenista (Cimi) no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil retratam em números a realidade indígena nas reservas de Dourados e as define como “campos de concentração”.

Por Fabiano Arruda, do G1 MS

Encostadas ao centro urbano de Dourados, a segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, as aldeias Jaguapiru e Bororó têm dramas antigos. Aproximadamente 12 mil índios, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), dividem 3,6 mil hectares para viver em uma situação de confinamento. A falta de espaço se mistura com problemas de violência, gerado pelo consumo de álcool e drogas. Em Caarapó, a 46 quilômetros dali, a aldeia Teyí Kuê possui praticamente a mesma área, mas comporta população de cerca de cinco mil índios.

“Os principais problemas da violência é (sic) bebida alcoólica e droga. Tem muita briga de casais por causa de bebida alcoólica. Isso só com a polícia [solução], senão é duro porque são muitas pessoas”, afirma Aniceto Velasques, 42 anos, uma das lideranças da reserva Bororó. No dia em que concedeu entrevista ao G1, Velasques disse que a aldeia havia registrado três agressões contra mulheres mulheres, vítimas dos maridos, e roubo a uma igreja da comunidade. Foram levados equipamentos avaliados em cerca de R$ 1 mil. Ele reclamava que os casos não haviam sido solucionados pela polícia.

“A proximidade das reservas com a cidade faz com que problemas que temos na cidade migrem rapidamente para as duas aldeias, por exemplo, o consumo de drogas e o alcoolismo”, analisa Neimar Machado, professor da Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). “Em Caarapó, por exemplo, a aldeia é distante da cidade. A preocupação com o uso de drogas é mais recente”, compara.

Analisadas em uma visão aérea as aldeias parecem bairros de Dourados, explica o professor. “Porém, por ser uma reserva indígena e por conta do preconceito, não tem todo atendimento que um bairro tem. A circulação de ônibus, saneamento e segurança ficam prejudicados”.

Dados divulgados pelo Conselho Missionário Indigenista (Cimi) no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil retratam em números a realidade indígena nas reservas de Dourados e as define como “campos de concentração”.

Dos 37 assassinatos registrados no estado em 2012, 18 ocorreram na cidade (48,6%). Em cinco deles o consumo de bebida alcoólica foi agravante.

Também foram registradas onze tentativas de homicídios em MS em 2012, seis apenas em Dourados. Em relação a casos de lesão corporal dolosa, dos quatro registros no estado, três foram no município. Dois referem-se a indígenas que agrediram a esposa.

O relatório do conselho aponta que o consumo de álcool e outras drogas segue como sério problema entre os guarany kaiwá no município. No documento divulgado pelo órgão, liderança da aldeia Jaguapiru afirma que crianças têm acesso a bebidas desde os 11 anos.

“Têm pais de família que com quatro, cinco rapazes [filhos] e não tem como trabalhar”, diz Aniceto Velasques, fazendo relação da violência com a falta de incentivo e áreas para a produção. “Se medir vai dar sete hectares de área de produção nas reservas em uma área total de 3,6 mil hectares”.

Segundo ele, a estrutura precária das estradas na terra indígena e a falta de iluminação pública têm relação com a violência. “Muitos saem de madrugada, no escuro, para trabalhar. A estrada precisa de cascalhamento. Em dia de chuva ônibus chega a ficar atolado por nove dias”.

Encarar as estradas ruins e sem luz faz parte da rotina de Agemiro Amarilha, 36 anos, morador da reserva Bororó. Ele trabalha como ajudante de máquinas em uma usina. Sai de casa todos os dias às 3h (de MS) e caminha pelo menos sete quilômetros até a rodovia, onde utiliza o transporte coletivo. “Quando chove fica tudo liso [estradas]”, diz.

Lado bom

Doutor em Antropologia e professor da UFGD, Levi Marques diz que a situação em Dourados poderia ser pior.

“Considerando as condições de carência e abandono de política pública e, principalmente, a questão da enorme população em um lugar só, eles conseguem gerenciar razoavelmente os problemas”, diz ao G1.

Conforme Marques, as comunidades das duas aldeias desenvolvem série de mecanismos de controle e autocontrole na organização das famílias e parentesco, o que serve como escudo diante das fragilidades sociais.

“[A organização] permite que a maioria das pessoas que moram na reserva sejam integradas em redes de parentesco, de alianças políticas, o que possibilita que eles resolvam os problemas dos membros da família. Essa organização é um patrimônio histórico do grupo e faz com que os problemas não adquiram a dimensão que tem, de fato”, explica.
"Em MS não tem espaço para os índios", afirma Tonico Bentes, professor da UFGD. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)
“Em MS não tem espaço para os índios”, afirma Tonico Bentes, professor da UFGD. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)

Pouca terra e muito índio

A realidade social e a superpopulação em uma área pequena em Dourados traduzem outras características da história indígena em Mato Grosso do Sul. O procurador do Ministério Público Federal, Marco Antônio Delfino, compara: MS tem situação inversa ao Amazonas, por exemplo, onde o ditado é de “muita terra para pouco índio”.

“Tirando a terra indígena dos kadiwéu, que tem uma perspectiva totalmente diferenciada, onde são 500 mil hectares, sobram algo em torno de 30 mil hectares para os guarani e algo em torno de 30 a 40 mil hectares para os terena. Setenta mil hectares para 70 mil índios”, afirma ao G1.

Conforme o procurador, a área equivale a 0,2% do território sul-mato-grossense. “Se nós compararmos com outros estados é um percentual absolutamente irrisório. Mato Grosso tem uma porcentagem de 14% [equivalente ao total do território] e mesmo assim continua a produzir e se desenvolver”.

Segundo números da Fundação Nacional do Índio, são 50 terras indígenas no território sul-mato-grossense. Em Mato Grosso são 77 e no Amazonas 161.

“Em Mato Grosso do Sul não tem espaço para os índios. Em Mato Grosso do Sul os indígenas têm que aguardar [processos de demarcação] em um hectare, décadas. E enquanto aguardam estão passando miséria e necessidade”, diz o também professor da UFGD e doutorando em Antropologia, Tonico Benites, que é guarani-kaiowá.

De acordo com dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1991, Mato Grosso do Sul possuía população de 32,7 mil índios contra 73,2 mil do censo de 2010, aumento de 123,7%. Para o professor Neimar Machado, da UFGD, o crescimento ocorre por conta da mudança de metodologia nos censos com a “autodeclaração”. A implantação de cotas também tem influência.

“À medida que os índios não tinham direito, não se declaravam. À medida que o estado reconheceu direitos, as pessoas foram se declarando”, afirma, antes de ressalvar. “Usam esse argumento para dizer que as pessoas inventam ascendência indígena. Ao contrário, a população indígena brasileira é muito maior do que mostra os censos, mas eles não se declaram por conta do preconceito”.

Segundo o professor Levi Marques, estudos demográficos, entre as décadas de 1960 a 1980, apontam que o crescimento de algumas reservas no país excede a possiblidade de aumento vegetativo. “Ou seja: não foi um crescimento que se deu por nascimentos, mas por chegada de novos moradores”.

Para ele, a melhoria nos serviços essenciais à saúde para as comunidades indígenas é outra influência na melhora dos números, principalmente, depois que o setor foi assumido, primeiramente pela Funasa (Fundação Nacional de Saúde), e mais recentemente pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), órgãos ligados ao Ministério da Saúde.

Marques lembra que até a década de 1960 muitas comunidades indígenas foram exterminadas por epidemias de catapora, sarampo, varíola, gripe e tuberculose como na região de Dourados entre os guarany kaiwá.

“Melhorou muito os índices de imunização. Os programas sociais têm confrontado a situação de miséria e carência alimentar, embora ainda não sejam suficientes. Isso tem reduzido os índices de mortalidade e contribuído para o crescimento vegetativo”, explica.

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