A verdade ainda que tardia – I

maria-claudia-badanCriada pela Lei federal n°12.528/2011, na data de 18 de novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tem como objetivo a investigação de agentes públicos ou a serviço do Estado que atuaram durante o regime militar no Brasil.

Por Maria Cláudia Badan Ribeiro??*, em Diálogos

Com um prazo de dois anos para apresentar um relatório final (que deve ser entregue em maio de 2014), e abrangendo o período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988 a Comissão visa mapear arquivos, localizar documentos, sistematizar informações e esclarecer o período do regime militar no Brasil.

Formada por sete integrantes e treze assessores, a Comissão está dividida em pelo menos sete grupos de trabalho embora, outros grupos temáticos possam ser criados para atender às necessidades do relatório: (1) Antecedentes, contexto e razões do golpe militar; (2) Mortes, desaparecimentos forçados, ocultação e destruição de cadáveres, tortura e violência sexual; (3) Estruturas da repressão do Estado e seus patrocinadores e apoios internos e externos; (4) Violação de direitos relacionados à luta pela terra, incluindo populações indígenas, com motivação política; (5) Araguaia; (6) Violação de direitos de exilados e desaparecidos políticos fora do Brasil e (7) Operação Condor 1.

A criação da CNV faz parte do processo que ocorre no país de busca pela Memória, Verdade e Justiça, embora o Brasil seja um dos últimos países da América Latina a criar sua Comissão da Verdade. Algumas comissões, como a argentina e uruguaia, por exemplo, vieram logo depois do fim do período da ditadura. A CNV brasileira, entretanto, não tem caráter punitivo. Não há condenação explícita dos acusados, mas sim uma condenação simbólica, de efeito pedagógico: contar para não se repetir. Seu poder, segundo o cientista político e membro da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, é documentar as autorias e as circunstâncias das violações, mas não agir como um tribunal. Não se trata, portanto, de sanção penal contra os agentes do Estado, que é exatamente o que a Lei de Anistia promulgada no ano de 1979 impediu 2, mas sim de reconhecimento pelo Estado de um agente torturador. Passo sem dúvida importante para o Brasil, onde há uma forte política de esquecimento, embora o que se busque num contexto de justiça de transição seja exatamente o contrário: a responsabilização penal dos agentes do Estado.

Na América Latina, Oficiais das Forças Armadas e até Ex-Presidentes da República foram condenados e presos por mortes e desaparecimentos de opositores políticos. As leis de Anistia feitas por estes países não impediram, contudo, a realização de julgamentos, pois outra interpretação da lei fez com que elas fossem revogadas. A figura do “crime continuado” serviu como instrumento jurídico para a condenação dos torturadores e agentes da ditadura nestes países. Há um grande debate, atualmente, sobre o alcance da Comissão da Verdade no Brasil e sobre a importância desta experiência na construção de uma democracia plena e na criação de novos parâmetros de sociedade.

A criação da CNV inaugura uma nova prática no Brasil, que retira a luta contra a violência do Estado do universo das famílias de Mortos e Desaparecidos e a considera como uma questão nacional. Mudar o discurso de Estado seria um dos passos então para mudar a pratica de violência no país. É claro isso não basta para o aperfeiçoamento da democracia, pois, persistem ainda na sociedade brasileira, práticas bastante enraizadas daquele período, tanto no âmbito da administração pública, quanto na continuidade da militarização das forças policiais.

A consciência das pessoas ainda é fortemente marcada pelo medo, continua-se a instruir guerrilha na selva, e o Estado continua tendo em sua estrutura, pessoas que serviram ao regime. O déficit democrático, por exemplo, continua presente quando os movimentos sociais continuam a ser criminalizados pela polícia e a violência e tortura continuam a ocorrer junto da população mais pobre.

Planos de invasão a países vizinhos

Temos como herança da ditadura civil-militar, a ausência da reforma agrária, problemas no campo educacional e cultural, corrupção, etc. Recai ainda sobre o Brasil o ônus de ter instruído e exportado a violência para os demais países do Cone Sul, instalando bases militares nos países vizinhos ao mesmo tempo em que eram realizados acordos econômicos. Havia planos de o Brasil invadir Uruguai e Bolívia, caso os governos progressistas ou de esquerda ganhassem as eleições ou permanecessem mais tempo no poder, arriscando os acordos econômicos do regime militar brasileiro. No início de 1971 militares brasileiros forçavam acordos com outros países para não dar direito de asilo aos estrangeiros 3. Jarbas Passarinho, Ministro da Educação na época ousava dizer com relação ao Chile, “Os Andes podem significar uma barreira física, mas isso não significa que sejam intransponíveis”. Havia muitos cônsules e embaixadores que apoiavam este tipo de atuação brasileira e que, consequentemente, encabeçaram posteriormente a presidência das imprensas brasileiras instaladas nos países vizinhos.

Documentos do Itamaraty, disponíveis à consulta pública no Arquivo Nacional, comprovaram que a ditadura brasileira sabia com antecedência sobre o golpe de estado no Chile, o que reforça a tese de que os militares brasileiros também estiveram envolvidos na queda de Salvador Allende. Os documentos mostram inclusive, que o Brasil forneceu amplo suporte econômico e diplomático durante a ditadura do general Augusto Pinochet, abrindo linhas de financiamento, estimulando a exportação de produtos brasileiros em solo chileno, enquanto o Brasil se manteve como o maior comprador externo de cobre chileno 4.

Extinção de organismos repressivos foi um avanço

Há que se considerar que em relação às reformas das instituições, houve passos consideráveis que foram feitos como a extinção dos serviços de informação como o Serviço Nacional de Informação (SNI), o Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), que desapareceram, assim como o fortalecimento do Ministério Publico, a criação da Defensoria Pública da União e programas implantados nas corporações de polícia, voltados aos estudos de direitos humanos.

O que se tenta realizar, com a CNV e com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça – com atraso de muitos anos – é a continuação do processo de transição democrática do qual o Brasil ficou órfão com a Lei de Anistia, que interferiu neste processo que impôs o esquecimento, a partir de uma política de conciliação nacional. A Lei de Anistia, cumpre lembrar, foi uma Lei pela “metade” pois não anistiou a todos os presos, banidos, exilados e perseguidos (poderia incluir exemplos visando melhorar o argumento). E a promulgação desta lei foi realizada com os militares ainda no poder.

A CNV vem neste momento para contestar, com base em novas informações e a partir do acesso a novos documentos, as mentiras oficiais e os mitos que envolveram a violação dos direitos humanos, e mostrar que a Justiça de Transição deve se apoiar em quatro pilares básicos para ter efeito: reparação às vitimas atingidas naquele período, a busca da verdade, a construção da memória, a efetivação da justiça e a reforma das instituições do Estado. Está claro que cada país deve lidar de maneira particular com seu legado de violência e implementar mecanismos que garantam justiça e que recuperem a confiança do cidadão no Estado. Mas, a reconciliação com respeito a este passado não pode representar perdão aos perpetradores de atos de lesa humanidade, como a tortura. Menos ainda quando ela foi utilizada de maneira sistemática, como política de Estado. Crimes de tortura e desaparecimento forçado violam a ordem internacional e, em razão de sua gravidade, são atos insuscetíveis de anistia ou prescrição.

Deixar de punir um torturador mostra claramente a relação entre a impunidade e a violência praticadas no Brasil. Para o cidadão, a confiança no Estado democrático passa também por esta relação do Estado com seu passado de violações. No Brasil, as intervenções penais foram marginalizadas para se criar novas formas de promoção de justiça como reparações financeiras, criação de comissões da verdade, audiências públicas itinerantes (como as Caravanas da Anistia), mecanismos de reconstrução social e histórica desse passado através de encontros, mesas-redondas, debate públicos, discussões acadêmicas.

Apesar de insistir mais em “vasculhar os porões” do que efetivamente punir seus criadores, a CNV tem estimulado o debate da sociedade civil sobre esta questão. Comissões estaduais, municipais, comitês populares, comissões universitárias, assembleias, fóruns de debate e seminários vem ocorrendo por todo o Brasil. Eles tanto funcionam como instrumentos de cooperação com relação à CNV, como demonstram que há interesse por toda a parte em revelar esta história mostrando que os crimes da ditadura civil-militar não eram casos isolados, mas dependiam de uma cadeia de comando bem determinada.

Houve pressão popular para que se concretizasse

Mesmo antes do projeto da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sofrer alterações e ser aprovado no Congresso, a sociedade brasileira já se envolvia com esta questão. Em julho de 2011 havia pelo menos dezoito grupos e/ou comitês locais atuantes em vários estados brasileiros 5.

São estas comissões também que têm feito um trabalho interessante de pressão pública, por meio de manifestações de rua e de audiências para tombamentos dos centros clandestinos de tortura. No último dia 07 de dezembro, por exemplo, houve ato em frente à chamada Casa da Morte, centro de torturas localizado em Petrópolis (RJ). Tentativas no sentido do tombamento de outros locais como espaços de memória também tem sido feitas, como na sede do DOI-CODI na Rua Barão de Mesquita, no Prédio da Policia Civil (ex-DOPS do Rio de Janeiro), no Estádio Caio Martins (ginásio utilizado como prisão em Niterói-RJ), na Usina de Cambahyba, na cidade de Campos (RJ) onde corpos foram incinerados de acordo com o depoimento do ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra. A antiga Auditoria Militar de São Paulo, situada na Avenida Brigadeiro Luis Antônio e o casarão da Rua Santo Antônio, conhecido como Dopinha em Porto Alegre, e relacionado à Operação Condor, também estão entre outros lugares sujeitos a sofrer desapropriação pelo Estado.

Além dessas iniciativas a população jovem, em especial, tem se manifestado a partir de atos denominados “escrachos”, um tipo de manifestação conhecida na Argentina, cuja ideia principal é denunciar e constranger publicamente torturadores e pessoas envolvidas no esquema repressivo do governo. Organizadas pelo Levante Popular da Juventude 6, os “escrachos” são manifestações concretas de denúncia histórica contra a ditadura civil-militar.

Audiências públicas sobre o assunto têm sido realizadas com frequência nas Assembleias Legislativas estaduais, assim como devolução simbólica dos mandatos a deputados cassados em 1964 7. Mudança de nome de ruas, avenidas e logradouros que trazem ainda o nome de algozes da ditadura, assim como homenagens e marchas fúnebres simbolizando a violência do regime, contra estudantes das Universidades brasileiras e militares, também foram realizadas no território nacional. Segundo o ex-marinheiro Jose Alípio Ribeiro, 1509 marinheiros e fuzileiros navais tiveram as carreiras prejudicadas por Atos Institucionais da Ditadura, muitos foram presos, processados e mortos 8.

Em março de 2012 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) abriu processo contra o Brasil por não punir o assassinato de Vladimir Herzog 9. No atestado de óbito do jornalista constava suicídio como causa mortis. A CNV solicitou a correção deste atestado sugerindo no lugar de morte “por asfixia mecânica” falecimento em razão de “lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do 2ºExercito (DOI-CODI)” 10. Não só o atestado de óbito de Herzog foi modificado, como a família de Carlos Marighella recebeu o pedido oficial de desculpas do Estado pelas décadas de perseguição sofrida, publicada em portaria no Diário Oficial da União. Em dezembro de 2011 Carlos Marighella foi anistiado post mortem pelo governo brasileiro 11. Depoimentos de ex-agentes do DOPS também ganharam a cena pública brasileira como as declarações de Cláudio Guerra e de Marival Chaves 12.

Notas:

  1. CNV criou recentemente mais um Grupo de Trabalho, coordenado por Paulo Sérgio Pinheiro, para investigar a atuação das Igrejas (metodista, presbiteriana, luterana, batista e católica) durante o regime militar.
  2. Em abril de 2010, decisão do Supremo Tribunal Federal resolveu manter a constitucionalidade da Lei de Anistia. Promulgada em 1979, a Lei de Anistia concedeu perdão a todos os crimes políticos e crimes por razões políticas, cometidos durante o regime militar, pelas Forças Armadas.
  3. No auge da repressão no Cone Sul, o Itamaraty e militares brasileiros devolveram opositores políticos aos seus países vizinhos, rejeitaram dezenas de pedidos da ONU para que dessem asilo a famílias que estavam sendo ameaçadas e perseguidas e ainda forçaram a entidade a buscar uma saída desses refugiados para outros países. No total, em apenas cinco anos, o regime brasileiro na prática expulsou mais de um (01) mil argentinos, uruguaios e chilenos do País, sempre com a cooperação da diplomacia brasileira. Brasil expulsou mais de mil refugiados no auge da ditadura no Cone Sul. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional, regime-militar-exigiu-que-onuoperasse-no-brasil-na-clandestinidade-,955831,0.htmEstadao.com.br>. Acesso: novembro de 2012.
  4. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20577&boletim_id=1285&componente_id=20993. Acesso: dezembro de 2012.
  5. Quatro em São Paulo, três em Minas Gerais, um em Alagoas, um no Rio de Janeiro, um no Paraná, um em Goiás, um no Amazonas, um em Rondônia, um no Ceará, um em Pernambuco, um no Distrito Federal, além de outras entidades como a OAB (Organização dos Advogados do Brasil) e ABI (Associação Brasileira de Imprensa) estarem envolvidas. Em novembro deste ano, foi criada a Comissão da Verdade da Paraíba e pouco tempo depois, a Comissão Municipal da Verdade de Bauru, município do interior do estado de São Paulo. A primeira visa esclarecer a repressão aos camponeses, em especial o estado que abrigou as ligas camponesas, com destaque para a Liga de Sapé. Em Bauru, a Comissão Municipal da Verdade, coordenada por Carlos Roberto Pitolli, junto ao Observatório de Educação em Direitos da Universidade Estadual Paulista (UNESP) está ouvindo pessoas e recolhendo testemunhos bem como produzindo material sobre este período, destinado aos alunos do ensino médio.
  6. Grupo político formado por jovens e ligado à Consulta Popular.
  7. Na Câmara de Deputados de Minas Gerais foram homenageados cerca de 170 parlamentares cassados entre 1964-1977.
  8. Comissão Nacional da Verdade pede ao governador do Rio que instale Comissão Estadual da Verdade. Fonte: Assessoria de Comunicação Comissão Nacional da Verdade. Acesso em: novembro de 2012.
  9. Vladimir Herzog foi jornalista, professor e dramaturgo brasileiro. Diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura, de São Paulo e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi torturado até a sua morte no DOI-CODI em São Paulo, após ter se dirigido pessoalmente ao órgão para um interrogatório sobre suas “atividades suspeitas”.
  10. A descoberta de uma nova imagem com novo enquadramento fotográfico de Vladimir Herzog, trocada entre o general Newton Cruz e o Ex-Presidente da República João Batista Figueiredo, comprova que a foto distribuída aos jornais da época, pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, induzia à falsa versão de suicídio.
  11. Carlos Marighella foi líder e fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN) e um dos principaisorganizadores de resistência armada contra o regime militar.
  12. O ex-delegado Cláudio Guerra, autor do livro Memórias de Uma Guerra Suja, admitiu que matou militantes com disparos à queima roupa, envolveu-se em atentados como o Riocentro e coordenou a incineração de corpos de presos políticos no forno de uma usina de açúcar em Campos, interior fluminense. Marival Dias Chaves do Canto, ex-agentedos órgãos de informação do regime militar afirmou que cerca de 100 presos políticos teriam passado pelo aparelho clandestino mantido pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, chamado de “Casa da Morte”. Marival confirmou a versão de que os presos, levados de diversas regiões do Brasil, eram assassinados depois de prestar depoimentos sob tortura. Marival serviu, como analista de informações, no Destacamento de Operações de Informações de São Paulo (DOI-CODI-SP), chefiado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, e no Centro de Informações do Exército (CIE). Em entrevista à revista VEJA, há 20 anos, contou que ouviu de outros agentes, que estiveram na casa de Petrópolis, que os cadáveres eram esquartejados. O ex-agente confirmou, ainda, a existência de outra casa clandestina do CIE em Itapevi, São Paulo, e forneceu detalhes da chamada Operação Medianeira, uma emboscada comandada pelo CIE em Medianeira, cidade no sudoeste do Paraná, para atrair, no dia 11 de julho de 1974, um grupo argentino de militantes de esquerda e guerrilheiros, com a morte de sete deles.

*Graduada em Bach. Letras Hab. Tradução-francês/italiano pelo Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas-UNESP, mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Experiência na área de Letras, Tradução, ensino se línguas e História Contemporânea do Brasil (Literatura de Memória, Ditadura Civil-Militar, ALN e Luta Armada, Mulheres, História Oral da resistência). Colabora com Diálogos do Sul.

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