Gino Strada, um herói discreto para as vítimas da guerra, que pensa a Medicina como “um direito humano”

Gino Strada realizou 30 mil cirurgias em zonas de conflito como Sudão, Camboja e Afeganistão, a maioria em pessoas desesperadas, apanhadas no fogo cruzado da guerra. Foto: Matteo Masolini / Wikimedia Commons
Gino Strada realizou 30 mil cirurgias em zonas de conflito como Sudão, Camboja e Afeganistão, a maioria em pessoas desesperadas, apanhadas no fogo cruzado da guerra. Foto: Matteo Masolini / Wikimedia Commons

Cirurgião realizou 30 mil operações em zonas de conflito como Sudão, Camboja e Afeganistão, a maioria em pessoas apanhadas no fogo cruzado da guerra

Por The Observer, em Carta Capital

Três anos atrás, o fotógrafo Giles Duley entrou no hospital Salam Centre, no Sudão, e ficou impressionado com o que viu. Não se parecia com qualquer hospital que ele já tivesse visto, muito menos em um país tão desesperado e caótico quanto o Sudão.

O local realizava cirurgias cardíacas de primeira classe e gratuitas, era tranquilo, ordenado e imaculadamente limpo. “Eu quero dizer absolutamente imaculado”, ressalta Duley. “Nunca tinha visto nada parecido.” Em seu centro havia um lindo jardim. E lá, em um corredor, ele encontrou o único aspecto desalinhado de toda a operação: o homem que criou tudo aquilo, um italiano barbado e de cabelos despenteados, chamado Gino Strada, encostado a uma parede e fumando muito.

No ateliê no leste de Londres onde Duley o estava fotografando para a Observer na semana passada, Strada continuava com os cabelos desalinhados e fumando: “Mas eu posso passar dez horas na sala de cirurgia sem pensar em um cigarro”, disse ele, saindo para dar uma tragada rápida entre a entrevista e a sessão de fotos. “Eu nem penso nisso enquanto não terminar.”

A sala de cirurgia é onde Strada vive. Ele é um cirurgião especializado em transplante de coração e pulmão, que deveria viver confortavelmente em algum subúrbio rico da Itália, mas que dedicou as últimas duas décadas e mais um pouco de sua vida a viver em desconforto, em alguns dos piores lugares da Terra.

Aos 65 anos, quando outros homens poderiam pensar na aposentadoria, Strada passa períodos de vários meses no Afeganistão, Iraque, Sudão ou qualquer outro dos 47 centros de saúde em todo o mundo criados e dirigidos pela Emergency, a ONG que ele fundou. Embora Strada e a Emergency sejam praticamente desconhecidos no Reino Unido, ele continua fazendo o trabalho sujo do mundo: a Emergency fornece tratamentos médicos de alta qualidade e gratuitos para as vítimas da guerra, 90% das quais são civis, na maioria pobres e sem outro lugar aonde ir.

“Pensamos que todo mundo tem o direito de ser curado”, diz com o ar de um homem que repete a mesma coisa há décadas. Mas ele tem feito exatamente isso. O que explica em parte o cansaço do mundo que o acompanha como um cão especialmente fiel. “Ele pode parecer cansado e cínico na superfície”, diz Duley, “mas por baixo nunca desanima.” Strada viu o pior que o mundo tem a oferecer.

Até os médicos mais dedicados raramente conseguem passar mais de alguns meses em uma zona de guerra. Strada fez isso por anos e anos. A Emergency, em seus 18 anos de existência, tratou 5 milhões de pessoas nas situações mais perigosas do mundo. Ele operou pessoalmente 30 mil pessoas; um número quase inimaginável, digo eu. “Sim, mas sempre acho muito interessante. Quando acordo de manhã, fico feliz em ir para o hospital. Quando eu trabalhava em Milão e acordava na Itália, não ficava tão entusiasmado. Era mais uma rotina.”

A Emergency faz um trabalho extraordinário, mas essa não é a coisa mais extraordinária sobre ela — nem o que marcou tanto Duley quando ele entrou no hospital em Cartum. O centro Salam de cirurgia cardíaca não é um hospital no meio do mato que remenda pessoas com esparadrapo e algumas aspirinas: ele oferece tratamento cardíaco de primeira classe grátis, para pacientes de toda a África. Muitos pacientes são jovens: a febre reumática, que é endêmica no Sudão e nos países vizinhos, destrói as válvulas do coração e afeta crianças e adolescentes de maneira desproporcional.

É o único hospital do tipo em todo o continente, e a opinião de Strada, que desafia as ideias da maioria das pessoas sobre como funciona a “ajuda”, é silenciosamente revolucionária. Ele acredita que os hospitais da Emergency precisam ser iguais ou melhores que os do Ocidente.

Mas ninguém acredita nisso, eu digo. Nenhuma outra organização diz isso. “Se você pensar na medicina como um direito humano, não pode ter alguns hospitais que oferecem medicina sofisticada, eficaz, de alta tecnologia”, diz ele, “e então ir à África e pensar: ‘Está bem, aqui estão algumas vacinas e injeções’. Pensamos que os seres humanos são todos iguais em direitos e dignidade ou não? Dizemos: ‘Sim, nós somos’.”

Na Emergency, diz Strada, “queremos criar bons hospitais, mas quão bom deve ser um hospital para ser bom?” Depois de muita discussão, eles decidiram que a medida deveria ser: “Que seja bom o suficiente para que você ficasse contente em ver um parente ser tratado nele”.

O hospital da Emergency no Sudão é tão limpo que as taxas de infecção não são apenas menores que as dos hospitais do Reino Unido e dos Estados Unidos, são “menores à décima potência”. E o centro cardíaco é simplesmente o primeiro do que ele espera que seja uma rede de hospitais especializados, todos centros de excelência, que se estenderá por toda a África, sendo o próximo uma instalação pediátrica em Uganda, projetada por seu amigo o arquiteto italiano Renzo Piano.

Existe em Strada uma qualidade quase de Fitzcarraldo — o filme de Werner Herzog sobre o homem que puxou um navio a vapor sobre uma montanha para construir uma ópera na selva amazônica. As pessoas consideravam Strada maluco “ou pior” quando ele decidiu construir um hospital cardíaco de primeira classe no deserto sudanês. “Escreveram todo tipo de coisas sobre ele e sobre mim na Itália.” Mas ele o fez de qualquer maneira. Um hospital infantil nas margens do lago Victoria, desenhado pelo homem que ajudou a criar o Centro Pompidou em Paris e relativamente simples em comparação.

Mas então Strada negociou com os taleban na época em que a Otan dizia que era impossível negociar com os taleban, para operar um hospital atrás de suas linhas. Ele se considera um cirurgião acima de tudo e, como cirurgião, gosta de consertar coisas. “A Emergency não é como qualquer outra ONG”, diz Duley. “Eu trabalhei com tantas delas, mas é apenas profundamente diferente, na maneira como trata as pessoas com tanta dignidade e respeito. Os hospitais são oásis de calma, são incríveis.”

É impossível não fazer Duley participar desta história, porque ele defendeu Strada e o trabalho da Emergency. Ele é apaixonado por fazer que sua história seja ouvida. Durante sua visita ao centro Salam no Sudão, Strada lhe pediu para visitar o Afeganistão, o que Duley fez. Enquanto estava lá, ele foi vítima de uma explosão e perdeu as duas pernas e um braço. (Strada se sente péssimo sobre isto, “mas é incrível ver Duley hoje, como isso o tornou ainda mais determinado”.)

“Eu sabia que a primeira reportagem que fizesse depois disso receberia muita atenção”, disse ele. “E por esse motivo eu sabia que tinha de ser sobre a Emergency.” É somente por causa do pedido de Duley que Strada saiu das sombras e apareceu em dois eventos em Londres na semana passada.

E não há dúvida de que o trabalho de Strada merece ser mais conhecido. Só no Afeganistão ele opera quatro hospitais e 34 clínicas. Abriu três no mês passado. Strada diz que a Cruz Vermelha retirou 95% de seu pessoal do Afeganistão, “agora que a guerra terminou”, e as forças da Otan não construíram um único hospital civil. “E a guerra não terminou! A luta está chegando cada vez mais perto de Cabul.” O número de baixas aumentou 40% no mês passado, diz ele. A Grã-Bretanha foi à guerra no Afeganistão. Nosso governo fez isso em nosso nome, e do povo. E deixaram para uma pequena ONG italiana limpar o trabalho sujo.

“É absolutamente criminoso… quero dizer, você conhece as forças da Otan, elas têm seu próprio sistema de apoio, suas próprias instalações médicas. E não fica nada para a população. E além disso o governo afegão tem de registrar o custo dos serviços fornecidos por organizações internacionais, por isso vai pagar no final. Muito poucos podem pagar o tratamento, e para todos os outros não há nada. Portanto, se você estiver ferido ou doente, simplesmente morrerá, ponto.”

Abrir e operar um de seus hospitais durante três anos custa 3 milhões de euros — “ou o custo de três soldados ocidentais durante um ano”. Os drones — cujas vítimas estão aparecendo em números crescentes, pelo menos 40% delas crianças — são apenas mais uma obscenidade. “Especialmente se você pensar que a milhares de quilômetros de distância alguém está montando uma lista de assassinatos. O Prêmio Nobel da Paz assina uma lista de assassinatos toda semana.”

O que você quer dizer? “Estou falando do presidente Obama. Ele assina pessoalmente uma lista de assassinatos. Eles têm esquadrões de assassinos profissionais, que matam pessoas. É essa a ideia de justiça do novo milênio, que alguém seja morto porque outra pessoa decidiu que esta merece ser morta sem julgamento, sem pausa, sem nada? É simplesmente louco, louco. É uma outra maneira humana de fazer a guerra. Não é humana, mas esta é especialmente indecente e particularmente cruel.”

Mas Strada acredita que a guerra deve ser abolida. Abolida?

“Ela tem de desaparecer da história humana”, diz. “Assim como a escravidão teve de desaparecer da história humana… e hoje o conceito de escravidão é perturbador.” A guerra deveria nos perturbar igualmente, diz ele. Ela absolutamente não tem sentido. “É muito peculiar da raça humana, e é loucura porque o que está destruindo é a humanidade… Quando você opera crianças e adolescentes, pergunta a si mesmo que diabos elas têm a ver com a guerra? Quer dizer, essas pessoas nem sequer sabem por que a guerra é travada ao seu redor, e elas nem sequer sabem quem está combatendo quem.”

Ele reserva seu julgamento mais duro para as “guerras humanitárias”. “Quem quer que fale em guerra humanitária deveria ter o direito de passar uma longa temporada em uma instituição psiquiátrica. É um completo absurdo. Não importa o que as pessoas digam ou pensem, o resultado final é que 90% das vítimas são civis.”

Existem poucas pessoas que podem falar com a autoridade moral de Strada. Ele conquistou o direito de ser escutado. Poucas pessoas viram as coisas que ele viu. Muito menos fizeram alguma coisa a respeito. Ele nos desafia a pensar de modo diferente sobre coisas que você pensava que soubesse (a inevitabilidade da guerra, a desigualdade do sofrimento), e simplesmente se recusa a aceitar essa situação.

Duley tem razão. O cansaço do mundo é uma fachada. E há sinais de que o mundo está começando a perceber um pouco isso. Um documentário curto sobre o centro Salam chamado “Open Heart” [Coração aberto] foi indicado para o Oscar este ano e Strada se viu voando do Afeganistão para a cerimônia em Hollywood. Mas, diante da escala e do âmbito de seu trabalho, parece ridículo que ele não seja mais conhecido.

Ele viaja constantemente. Aluga uma casa em Veneza mas só passa algumas semanas por ano lá, alguns dias de cada vez. Ele mesmo já sofreu uma cirurgia cardíaca: quatro pontes de safena depois de um infarto que teve enquanto estava sob o fogo das forças de Saddam no Curdistão iraquiano, vários anos atrás. E em 2009 sua mulher, Teresa, com quem ele fundou a Emergency, morreu.

Foi difícil continuar sozinho? “Sim, mas embora possa parecer estranho me deu um pouco mais de força, porque não queríamos desperdiçar tudo o que Teresa havia dado. Ela desenvolveu a Emergency na Itália e hoje temos 4 mil voluntários lá, e essas pessoas decidiram apoiar o trabalho da Emergency por causa de Teresa.”

Sua filha, Cecilia, continua seu trabalho e Strada está novamente em trânsito. Você não pensa às vezes que deveria estar em casa em Veneza, cuidando de suas roseiras? É uma boa ideia, ele diz, mas “sou um animal cirúrgico. Gosto de estar na sala de cirurgia”. As roseiras vão esperar.

Leia mais em www.guardian.co.uk

 

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.