Lideranças apresentaram carta em que falam de fortalecimento da luta e disposição para o diálogo
Por Felipe Milanez, em seu blog
Dilma conheceu os índios, pela primeira vez em dois anos e meio de poder, enquanto seu mandato caminha para a reta final. Demorou, mas a Presidenta teve uma audiência direta com lideranças indígenas expressivas, importantes, grande lideranças de diversos povos indígenas de todo o país. Não havia da parte dos índios muitas esperanças de que fossem ouvidos e conseguissem mudar o rumo do governo, mas sabiam que a ocasião era fundamental. A política anti-indígena de Dilma foi dita na frente deles, pela própria comandante. Quem ordena o genocídio não se escondeu diante das vítimas. E utilizou o advogado Cardozo (aka Ministro da Justiça) para em suma convencer os indígenas, vítimas desse violento processo em curso, de que a sua destruição é um imperativo ao projeto de Brasil que ela propõe. Com palavras mais suaves, é claro. Como se espera de um advogado. Ele falou em “uma perspectiva de conciliação e de diminuição de conflitos”, sendo que defende a regulamentação das demarcações apenas como pede o lado do conflito que está contra os indígenas.
Dilma não gosta de ouvir, e sabendo disso, os índios apresentaram uma carta precisa, com uma agenda, com pauta definida, questões locais mas também problemas universais da luta pelos direitos. A luta indígena não é uma luta individualista. É uma luta por igualdade, pela democracia, pelo cumprimento de tratados internacionais, a defesa da Constituição Federal e das futuras gerações. Na carta, que foi lida, comentada, assinada por Dilma e serviu de norte para as falas, escreveram uma série de considerações para o que chamam de uma “agenda positiva”, entre elas, a garantia dos direitos constitucionais pela luta pela terra:
“Somos totalmente contrários a quaisquer tentativas de modificação nos procedimentos de demarcação das terras indígenas atualmente patrocinados por setores de seu governo, principalmente a Casa Civil e a Advocacia Geral da União (AGU), visando atender a pressão e interesses dos inimigos históricos dos nossos povos, invasores dos nossos territórios, hoje expressivamente representados pelo agronegócio, a bancada ruralista, as mineradoras, madeireiras, empreiteiras, entre outros”
No caso das demarcações, o governo comprou o discurso do agronegócio. Aquele expresso pela senadora Kátia Abreu, chefe do lobby ruralista a cargo da Confederação Nacional da Agricultura, que diz ter as mesmas ideias de Dilma. No mesmo dia da reunião entre Dilma e os indígenas, o lobby ruralista tentou ocupar espaço na agenda política e a senadora apresentou um “estudo” para tentar dar argumentos para a política anti-indígena do governo. O suposto estudo utilizava dados do IBGE e do ICMBio [desmentidos ontem mesmo, como pode ser visto AQUI. TP] para fundamentar a oposição entre agronegócio e unidades de conservação (mais do que evidente), e superestimava a capacidade de produção agropecuária para atacar os direitos indígenas por um imperativo econômico (que nem assim não se sustenta). “Mantido ritmo de criação de unidades de conservação e terras indígenas, o PIB nacional perderia 204,6 bilhões de dólares em 8 anos”, declarou a senadora no twitter.
Nada de ocupação democrática do território, e sim a política de aumentar a concentração fundiária. Cardozo tentou convencer os índios de que suprimir direitos constitucionais e integrar no processo o lobby ruralista de dentro do governo (como Embrapa e AGU) iria ajudar os índios a ter suas terras pois isso iria diminuir a “judicialização” dos processos. Como bom advogado, ele não deveria esperar convencer ninguém com uma fala tão rasa, mas apenas defender seus clientes. “Nos posicionamos contrariamente à inclusão desses órgãos. Tem que ser como estava, como estabelece o Decreto 1.775, que é o marco regulatório que existe hoje. É isso o que defendemos”, disse Sônia Guajajara, vice-coordenadora da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira).
Não é apenas aos índios que Dilma deve explicação. A eles, é claro. Mas ao Brasil inteiro também. A destruição dos direitos indígenas, como está sendo processada pelo atual governo, é um crime contra a humanidade.
O Brasil é uma grande fronteira de commodities. E o governo se apressa em fazer o jogo sujo para organizar a extração dos recursos, mantendo na mão da pequena e poderosa elite o grande volume de capital, distribuindo o que sobra e é politicamente conveniente. O arregaço que fica vai pra conta dos empobrecidos pela economia extrativista. “Aqui fica o buraco”, me disse o castanheiro José Cláudio Ribeiro da Silva, alguns meses antes de ser assassinado a mando de um pecuarista no interior do Pará.
Dilma saiu bem na foto. Ganhou a tradicional gravata xavante danho’rebdzu’a de Damião Paridzané, em agradecimento a desintrusão dos invasores da terra indígena Marãiwatséde (não uma agenda própria do governo, mas apenas cumprindo uma decisão judicial, no fundo). Posou ao lado de lideres históricos, como Raoni Txucarramãe, Paridzané, Davi Kopenawa, e novas lideranças como Sônia Guajajara, da Coiab. Todos sorrindo. Ela tentando capitalizar sobre a imagem. Enquanto as lideranças demonstravam respeito pelas instituições. Respeito que não é recíproco.
“Sabemos que iriam usar a foto. Mas a análise da relação não pode ser medida por uma foto e sim pelos atos. E todos os dias os fatos revelam a intransigência do governo, sempre contrario aos direitos indígenas”, me disse Sonia Guajajara. “A foto faz parte apenas do momento oportuno para dizermos as nossas inquietações.”
Na reunião, Dilma prometeu regulamentar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia aos povos indígenas sobre instalação de empreendimentos em seus territórios e que vai diretamente contra a atual política, e a barrar a PEC 215, em trâmite no Congresso e que acaba com as demarcações.
Em uma pauta extensa, os indígenas aproveitaram a oportunidade para cobrar melhorias no atendimento à saúde e educação, que o governo prometeu, também, trabalhar. “Temos uma pauta de reivindicação que foi apresentada a Presidente Dilma, e é em torno desta pauta que vamos conduzir o diálogo proposto pelo governo. Não abrimos mão de nossos direitos, e com a mesma importância que defendemos as questões territoriais, reivindicamos melhorias imediatas na educação, saúde e respeito aos direitos constitucionais”, disse Sônia.
Às ofensas que os indígenas têm recebido por integrantes do governo, como do ministro Gilberto Carvalho (da Secretária Geral da Presidência), os indígenas reiteraram o “rechaço à acusação de que somos empecilhos ao desenvolvimento do país”.
O povo Munduruku diz ter sido ofendido em carta pelo ministro, quando Carvalho escreveu, criminalizando o movimento social: “Na verdade, alguns Munduruku não querem nenhum empreendimento em sua região porque estão envolvidos com o garimpo ilegal de ouro no Tapajós e afluentes.” Dizia ele que “um dos principais porta-vozes dos invasores em Belo Monte é proprietário de seis balsas de garimpo ilegal.” Agora, os indígenas cobram que o ministro identifique quem foi o alvo de sua acusação e ameaçam um processo criminal por calunia e difamação. E o assassinato de Adenilson Muduruku pela Polícia Federal, em 7 de novembro do ano passado, assim como de Oziel Terena, em 30 de maio, ambos em desastrosas operações da PF, seguem impunes.
A ideia de que os índios são um “empecilho” tem origem justamente na defesa que fazem dos direitos nessas fronteiras onde o governo age para extrair e saquear o País. E toda a pauta desenvovimentista, construída a partir de fortes lobbies, como mostraram na carta as lideranças, se choca com os direitos indígenas. Mudar as regras, e não segui-las, é a agenda. Nunca antes na história desse país, como dizia Lula, tantos direitos das populações locais foram moídos pela máquina do Leviatã.
Os canais institucionais foram fulminados. A Funai não sabe mais quem representa, e o Conselho Nacional de Política Indigenista, criado por Lula, foi tão desprezado que agora seria substituído por um “grupo de trabalho”, como anunciou o ministro e advogado da causa anti-indígena Cardozo. A Fundação vive a pior crise de sua história, desde que foi criada em 1967, durante a Ditadura. E isso agrada tanto ao governo, quanto aos interesses anti-indígenas, como dos ruralistas, dos grandes garimpeiros internacionais (as mineradoras) e dos barrageiros.
Se há alguma esperança após o encontro, considerado “histórico” por muitos que estiveram lá, é tão simplesmente o fortalecimento do movimento indígena. Lideranças antigas e novas se inspiraram na luta que os povos indígenas tiveram nos anos 1980, quando alcançaram os direitos hoje estabelecidos na Constituição Federal. Perceberam que se não se unirem, serão esmagados pelos lobbies, organizados em think tanks seguindo o modelo americano de imposicão da agenda política, financiados com grande capital e com bancada volumosa no Congresso.
“Tínhamos plena consciência que não sairíamos desta reunião com nossos problemas resolvidos como revogação de Portarias e Decretos que é de sua responsabilidade ou PECs e PLs que é de responsabilidade do Congresso e ressaltamos que na continuidade do diálogo o movimento indígena não abrirá mão de lutar pela garantia de seus direitos e o alcance das históricas e atuais reivindicações”, disse Sônia. Ela criticou também a ideia de “governabilidade” do governo, como o exemplo da saúde indígena para as mãos de quem “não tem conhecimento nenhum, compromisso ou sensibilidade para com a pauta indígena”, segundo Sônia. “A governabilidade desse governo vem sendo pautada ao longo desses quase três anos por meio de alianças desnecessárias e duvidosas, haja vista que a população que elegeu este governo acreditava que fosse diferente. Nós , assim como o restante da população é que sofremos com esses tipos de alianças partidárias.”
Na carta que apresentaram a Dilma, as lideranças indígenas clamaram por uma aliança em defesa da sua sobrevivência: “Chamamos, por fim, aos nossos parentes, lideranças, povos e organizações, e aliados de todas as partes, para que juntos evitemos que a extinção programada dos nossos povos aconteça”.
Dilma não deve explicação apenas aos índios. A política anti-indígena não ofende apenas aos povos que estão sofrendo diretamente, mas a toda a sociedade brasileira. E principalmente às futuras gerações, que vão herdar um país marcado pelo genocídio, destruído e saqueado. Desigual e desumano. E tudo isso organizado por um governo que havia prometido defender os mais fracos e promover a justiça e a igualdade, mas que ao final aliou-se à espada, à casa grande, aos bugreiros, aos bandeirantes, aos conquistadores, aos piratas e saqueadores de sempre.
“Reafirmamos por tudo isso, a nossa determinação de fortalecer as nossas lutas, continuamos vigilantes e dispostos a partir para o enfrentamento político, arriscando inclusive as nossas vidas, mas também reiteramos a nossa disposição para o diálogo aberto, franco e sincero, em defesa dos nossos territórios e da Mãe Natureza e pelo bem das nossas atuais e futuras gerações, em torno de um Plano de Governo para os povos indígenas, com prioridades e metas concretas consensuadas conosco”, escreveram as lideranças indígenas.