Combate Especial: 500 anos de espera, por Pedro Rocha

União em Belo Monte. Foto - Lunae Parracho (REUTERS)
União em Belo Monte. Foto: Lunae Parracho (REUTERS)

Por Pedro Rocha, para Combate Racismo Ambiental

Em um breve e instigante artigo, publicado em 19 de junho (1), Márcio Santilli sugere que as manifestações populares que tomaram as ruas do Brasil neste último mês de junho estão de algum modo relacionadas aos levantes indígenas ocorridos em abril deste ano. O grito de resistência indígena, que culminou na ocupação da câmara dos deputados no dia 16 de abril (2), teria reverberado para além de seus limites estritos, atravessando toda a sociedade e evidenciando “um clima de ampla saturação política”. É uma hipótese interessante, para a qual desejo contribuir com algumas considerações, com o intuito de chamar a atenção do governo federal para a necessidade de um diálogo franco e paritário com os povos indígenas.

À diferença dos movimentos populares de junho, que foram motivados por um sentimento de indignação difusa, e potencializados pelas reações truculentas e desproporcionais das forças policiais em diversas capitais, as manifestações indígenas foram catalisadas por uma série de proposições legislativas e propostas do Executivo, além de ações bem concretas e pontuais da Casa Civil, que colocaram (e ainda colocam) em risco os direitos indígenas, historicamente conquistados e materializados na CF de 1988.

Dentre elas destacam-se a PEC 215, que transfere para o Congresso Nacional a competência para aprovar ou, o que é mais provável, rejeitar as demarcações das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a titulação de terras quilombolas, a criação de unidades de conservação ambiental e a ratificação das demarcações de terras indígenas já homologadas; o Projeto de Lei (PL) 1610/96, que regulamenta a exploração de recursos minerais em terras indígenas; a PEC 237/13, que permite a posse de terras indígenas por produtores rurais; o Decreto 7.957/13, que criou o Gabinete Permanente de Gestão Integrada para a Proteção do Meio Ambiente que, na prática, permite a intervenção militar em áreas onde haja comunidades tradicionais e povos indígenas que se coloquem contra a instalação de empreendimentos que venham a impactar seus territórios (3); a Portaria Interministerial 419/11 que, ao pretender “agilizar” os processos de licenciamento ambiental de empreendimentos de infraestrutura que atingem terras indígenas, na prática confere “carta branca” às empreiteiras, na medida em que estabelece prazos impossíveis de cumprir sem que haja um incremento concomitante e proporcional dos órgãos que atuam no licenciamento (IBAMA e FUNAI); e, finalmente, a Portaria 303/12, que pretende estender as famigeradas “19 condicionantes do Supremo” para o caso Raposa Serra do Sol a todas as terras indígenas do país.

Em total coerência com este cenário tenebroso, o governo da presidenta Dilma Rouseff é o que menos homologou terras indígenas desde 1985: apenas 08 terras desde 2008, contra 81 nos governos Lula, 118 nos governos FHC, 39 no governo Itamar Franco, 58 no governo Collor e 39 no governo Sarney (4). Vale notar que esse desempenho pífio se repete também na criação de unidades de conservação: nos últimos 20 anos, o atual governo criou apenas 3 UC’s, totalizando aproximadamente insignificantes 44 mil hectares, contra 20 milhões no governo Lula (1° mandato), 08 milhões no governo FHC (1° mandato) e 9 milhões no governo Sarney (5).

Como conseqüência desta tentativa concertada de supressão dos direitos e expropriação de seu patrimônio, eclodiram, por todo o país, movimentos de protesto e resistência entre os povos indígenas (6), que conferiram uma visibilidade pouco usual ao tema na grande mídia. Frente à paralisação dos procedimentos de identificação na região sul, imposta pela ministra Gleisi Hoffman, e às tentativas de alteração dos procedimentos de demarcação de terras indígenas, os Kaingang ocuparam a sede do PT em Curitiba, e bloquearam quatro rodovias no Rio Grande do Sul (7).

Depois de ocupar por 9 dias a Usina Hidrelétrica Belo Monte, os Munduruku finalmente tornaram possível, em 04 de junho, uma reunião com o Ministro Gilberto Carvalho, na qual novamente reivindicaram seu direito de dizer não às hidroelétricas no Tapajós, Teles Pires e Xingu (8) e, recentemente, conseguiram a suspensão dos estudos de viabilidades das usinas hidroelétricas que o governo pretende instalar no Tapajós (9), até que se regulamente os mecanismos de consulta prévia garantidos pela convenção 169 da OIT, a qual o Brasil é signatário.

Em resposta ao covarde assassinato de seu parente Oziel Gabriel em sua própria terra (declarada oficialmente em 2010 pelo Ministro da Justiça), os Terena reocuparam outras cinco fazendas no Mato Grosso do Sul (10 e 11), e, na mesma região, outras lideranças indígenas fecharam a rodovia MS 156 (12) em protesto. No Pará os índios bloquearam a BR 153 por mais de duas semanas, reivindicando melhorias na saúde (13), e no Mato Grosso do Sul foi realizada uma marcha indígena, quilombola e camponesa, para reivindicar a imediata demarcação das terras indígenas, quilombolas, e pela reforma agrária (14).

Também a sociedade civil e a opinião pública manifestaram sua indignação frente à política francamente anti-indígena de setores do governo. O jornal inglês The Guardian denunciou violação sistemática dos direitos dos povos tradicionais em curso no país (15); a CNBB manifestou sua discordância com as declarações da ministra Gleisi Hoffman (16); e a associação de servidores da própria Funai divulgou uma nota de repúdio ao tratamento que o governo vem dispensando aos povos indígenas (17).

Além deles, também a Via Campesina manifestou seu repúdio ao tratamento que tem sido dado pelo governo às populações tradicionais, e circulou na rede um extenso manifesto, assinado por antropólogos e organizações sociais, que explica didaticamente a legislação indigenista, indicando que, ao contrário da propaganda recentemente disseminada na grande mídia, o problema, de fato, encontra-se em outro lugar (18). O eminente jurista Dalmo Dallari também denunciou as incongruências do governo no tratamento dos direitos indígenas (19), e muitas outras vozes se levantaram contra o vandalismo praticado ostensivamente contra os direitos indígenas.

Para desqualificar as demandas indígenas, foram utilizados os mesmos argumentos de sempre: a incompetência do órgão indigenista para levar a cabo sua missão, a inadequação da legislação afeta ao tema, as supostas alianças espúrias entre índios e ONGs internacionais, a “improdutividade” da economia indígena frente à exploração mecanizada ocidental, a necessidade de mais energia e mais “desenvolvimento”, entre outras velhas falácias, que procuram jogar uma cortina de fumaça sobre o verdadeiro motivo dos recentes ataques: o intenso processo de reprimarização da economia pelo qual o País tem passado nos últimos 10 anos, no qual as terras indígenas, a legislação que as protege, e as populações que ali habitam em caráter tradicional, se tornam obstáculos a serem removidos.

Conforme demonstrado pelo texto “El extractivista más grande del continente: Brasil”, de Eduardo Gudynas (20), em 2011 o Brasil exportou 410 milhões de toneladas de minério, enquanto todas as outras nações sul americanas exportaram, juntas, 147 milhões. Na agricultura, o Brasil é o maior produtor e exportador de soja do mundo (mais de 66 milhões de toneladas métricas), dedicando mais de 24 milhões de hectares a essa atividade, sendo que grande parte dessa soja é comercializada sem qualquer processamento. Na área de extração de petróleo, o Brasil ocupa hoje, na América Latina, o terceiro lugar, mas se prepara para tomar também a liderança nessa atividade, através da exploração de campos do chamado “pré-sal”. Lideramos, portanto, em atividades que, notoriamente, trazem consigo uma ampla gama de impactos sociais e ambientais especialmente sentidas pelos habitantes do campo, e que, além disso, tornam o país refém dos interesses da indústria mineradora e do agronegócio, e cada vez mais dependente das condições globais exógenas, tais como a flutuação no preço internacional das mercadorias e a necessidade de investidores estrangeiros.

Poder-se-ia argumentar que tais exemplos são resultados da própria dinâmica econômica, da livre iniciativa e dos investimentos privados, e não necessariamente resultariam de medidas deste ou daquele governo. Tal objeção, contudo, não encontra respaldo na realidade brasileira, tendo em vista que aqui – à diferença das demais economias latino-americanas – tais atividades não são relegadas à iniciativa privada, mas sim financiadas e incentivadas pelo próprio Estado. Gudynas lembra os exemplos da Petrobrás, que é uma empresa de capital misto, e a Vale que, embora formalmente privada, depende diretamente dos fundos de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, e tem como principal fonte o BNDES.

O mesmo autor aponta que o setor do agronegócio “se beneficia do maior pacote de ajuda financeira estatal do continente (o chamado Plano Agrícola e Pecuário), que para os anos 2012/13 totalizou 115,2 bilhões de reais destinados ao crédito, o que favorece diretamente a expansão da agroindústria exportadora em lugar dos pequenos agricultores”. Conforme sumariza Gudynas ao final do texto, trata-se de uma situação bastante paradoxal, pois “uma parte nada desprezível do dinheiro arrecadado pelo Estado é utilizada para fomentar, apoiar e inclusive subsidiar o extrativismo, que alimenta, em primeiro lugar, a globalização, ao invés das necessidades internas do próprio Brasil”.

A hipótese de Santilli vai, assim, ficando mais e mais verossímil na medida em que percebemos que tanto os movimentos de resistência indígena quanto a onda de protestos que tomou conta do país possuem uma mesma causa de fundo, qual seja, a adoção de um modelo de “desenvolvimento” retrógrado e predatório, com uma economia apoiada sobre a produção, extração e exportação de matérias primas agrícolas e minerais, e na implantação, à ferro e fogo, de projetos de infra estrutura que o tornem possível. Um modelo comprometido com as elites latifundiárias e corporativas, que é tão eficiente na produção de riquezas quanto em sua incapacidade de redistribuí-las em benefícios para a maioria da população.

O mérito do texto de Santilli se dá, portanto, em sugerir a ligação direta entre as duas lutas, procurando demonstrar que, na verdade, trata-se de uma luta só: a causa indígena é a causa de todos os brasileiros, na medida em que eles, como nós, se (re)voltam contra a gestão ineficiente dos recursos públicos, direcionada à satisfação de interesses privados de uma minoria conservadora que historicamente dita os rumos do país; contra as empreiteiras, que consomem vorazmente o dinheiro público e o meio ambiente em obras de necessidade discutível e com orçamentos mais do que duvidosos (p.ex. as “arenas” da copa e as hidrelétricas destinadas a alimentar a indústria de processamento de alumínio); contra o agronegócio, que impõe a monocultura de transgênicos voltados para exportação e que obriga o país a aumentar cada vez mais a importação de alimentos básicos (21). Contra o cinismo, enfim, da propaganda governista, que se alegra em alardear o fim da pobreza e promoção do país à 5° maior economia do mundo, sem contudo estender à população – sob a forma de maciços investimentos em transporte, saúde, educação, proteção do meio-ambiente e das minorias étnicas – as benesses deste crescimento. Brancos e índios, portanto, queremos a mesma coisa: uma vida boa e plena, na qual tenhamos liberdade de ir e vir em nossos próprios territórios existenciais, e na qual tenhamos o direito de opinar e contribuir naquilo que afeta diretamente as nossas vidas.

Além do texto de Santilli, a única ocasião em que a luta dos índios foi diretamente relacionada ao processo em curso foi na carta do próprio Movimento Passe Livre (organização responsável por convocar as primeiras manifestações em São Paulo), elaborada após uma reunião com a presidenta Dilma Roussef: “Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, têm sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público”. Confiante na brisa fresca que soprou sobre o mormaço da política, o autor destas linhas compartilha dessa mesma esperança. Em sua inédita disposição para o diálogo com os movimentos sociais, que a presidenta receba os índios, e ouça com seriedade o que eles têm a dizer. Afinal de contas, são 500 anos de espera.

*Pedro Rocha é antropólogo.

  1. http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/os-indios-arrancaram-a-tampa-da-panela-de-pressao
  2. http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/04/indios-ocupam-plenario-e-levam-suspensao-de-sessao-da-camara.html
  3. http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/
  4. http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/demarcacoes-nos-ultimos-governos
  5. http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/dilma-mantem-parados-14-processos-de-criacao-ou-ampliacao-de-unidades-de-conservacao
  6. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1289300-indios-protestam-contra-mudanca-na-politica-de-terras.shtml
  7. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1289300-indios-protestam-contra-mudanca-na-politica-de-terras.shtml
  8. http://www.xinguvivo.org.br/2013/06/04/nao-estamos-indo-a-brasilia-negociar-afirmam-indigenas/
  9. http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-24/mundurukus-libertam-biologos-apos-governo-anunciar-suspensao-de-estudos-sobre-rio-tapajos
  10. http://www.campograndenews.com.br/cidades/indios-enterram-guerreiro-e-dizem-que-vontade-de-lutar-aumentou
  11. http://oglobo.globo.com/pais/indios-ocupam-mais-cinco-fazendas-em-mato-grosso-do-sul-8576074
  12. http://www.diarioitapora.com.br/noticias/cidades/indios-fecham-hoje-a-rodovia-entre-itapora-e-dourados#.Ua3iUG1NVZc.facebook
  13. http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/05/indios-continuam-ocupando-br-153-no-sudeste-do-para.html
  14. http://www.brasildefato.com.br/node/13098#.Ua3WijHfqn4.twitter
  15. http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/may/29/brazil-indigenous-people-violates-rights
  16. http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,gleisi-e-cnbb-divergem-sobre-papel-da-funai-,1038496,0.htm
  17. http://racismoambiental.net.br/2013/05/nota-da-associacao-dos-servidores-da-funai-ansef
  18. http://www.brasildefato.com.br/node/13110
  19. http://amazonia.org.br/2013/06/carta-aberta-desqualificação-da-funai-repete-último-governo-militar
  20. http://alop.org.mx/pipermail/cejecutivo_alop.org.mx/2013-May/001852.html
  21. http://www.mst.org.br/node/14937

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