Genocídio em Guatemala: a batalha pela construção de nossa memória

mujeres_ixtilespor Gladys Tzul Tzul*

O julgamento interposto contra o general Ríos Montt, ex-presidente de fato da república de Guatemala entre 1982 e 1983 e contra Mauricio Rodríguez Sánchez, chefe de inteligência militar, pelos delitos de genocídio e delitos contra os deveres da humanidade contra o povo Ixil, localizado no nordeste de Guatemala e que deixou como resultado o assassinato de mais de 1.700 pessoas, é um processo que abriu as portas para trazer à primeira cena o que permanentemente se quer que esqueçamos em Guatemala: o genocídio, o racismo expressado no não reconhecimento de sistemas de governo indígena, o desconhecimento das terras comunais, as lutas das mulheres indígenas, escondidas atrás das lutas tradicionais das esquerdas socialistas e revolucionárias.

As audiências se realizaram entre 19 de março e 10 de maio de 2013, sendo espaços onde o passado se encontrou com o presente. O passado apareceu com as fossas clandestinas, com a violência sexual, com as execuções, com as mortes de crianças e não natos. O presente reviveu este passado com racismo generalizado, misoginia e desatendimento; mas também com atos de performance, poesia e protestos nas ruas, de forma criativa, com as reproduções escritas e auditivas dos testemunhos de violações sexuais e de mortes, que nos obrigaram a sentir a dor das vítimas.

O processo foi encabeçado por mulheres e homens Ixiles que, como povo maia, exigiu uma condenação contra o delito de genocídio. Os Ixiles reclamaram o castigo a aqueles que planificaram e ordenaram esses atos. “Mataram-nos porque pensavam que éramos menos que animais (…) e queremos que se faca justiça” (1) como disse Don Benjamín Gerónimo, na penúltima audiência prévia à sentença que condenou Ríos Montt a 80 anos de prisão e absolveu Rodríguez Sánchez.

Este processo de construção de memória se constituiu em uma batalha contra o racismo e a violência. Não é uma enfrentamento de forças ou partidos de caráter conservador contra os de caráter marxista, como os advogados defensores, os meios de comunicação, a Fundación contra el Terrorismo e o presidente da república de Guatemala quiseram fazer ver. Em efeito, a condenação de Ríos Montt respondeu a uma idéia política no sentido de que apontou à convivência humana com justiça. Foi uma briga pela demanda de reconhecimento, pelo direito à vida, à memória, ao ressarcimento e à verdade. Não é uma batalha clássica. É uma luta política no sentido mais elevado.

Meu interesse neste artigo é me referir a alguns efeitos que este julgamento teve e tem para nós mulheres dos povos indígenas. Este acontecimento pode ser um ponto de partida para a modificação das estruturas racial-econômicas do país. Vimos isto como um ato concreto que mudou de lugar a máquina de funcionamento cotidiano da justiça em Guatemala. Por primeira vez, fomos os indígenas os que estávamos na parte acusatória e não na de acusados, como em muitos casos acontece. Isto, em si mesmo, significou uma reviravolta no imaginário dos tribunais, que desde o princípio encontram os indígenas como suspeitos.

Testificaram mulheres e homens em idioma Ixil ou em um pausado castelhano; seus testemunhos ratificaram os mecanismos e as formas repetitivas de violação sexual e de morte nos anos de 1980. Trouxe ao centro da história nacional a natureza da guerra em Guatemala: O Genocídio contra povos indígenas. A vontade etnocida se reconheceu também no caráter sistemático das violações e nos assassinatos das mulheres Ixiles, para desaparecer seu povo. Assim como no uso comercial que foi dado às terras expropriadas dos Ixiles, imediatamente depois do genocídio e do deslocamento dos/as sobreviventes.

Para as pessoas que assistimos às audiências, era muito emocionante vermos e nos olharmos caminha e desfilar, corpos de mulheres indígenas Ixiles e vários povos mais. A sala de vistas da Corte Suprema de Justiça por mais de dois meses foi vestida pelo multi-colorido dos tecidos güipiles de vários povos Maias. Não foi nas salas universitárias, nem nas escolas, tampouco nos centro de saúde, onde nos sentamos em condições de igualdade. Foi nesta sala onde, por primeira vez, os filhos dos militares e as pessoas pertencentes a um estrato político conservador, acompanhados de seus guardas-cotas, tiveram que se sentar junto a nós, sem que eles desfrutassem de nenhum privilégio por serem os que eram.

*Maya K’iche’ de Guatemala. Doutoranda en Sociologia pela Benemérita Universidad de Puebla.

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(1) Extraído do áudio de audiência do dia 9 de maio de 2013. Quando Don Benjamín Gerónimo se dirigiu ao tribunal para pedir como querelante do processo.

O texto original, em castelhano, se encontra na Revista Paquidermo.

Compartilhada por Danilo de Assis Clímaco.

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