Desde a década de 80, o Chile é apresentado nos centros de poder global como o melhor aluno da região, o modelo que os demais países da América Latina deveriam imitar. Em entrevista à Carta Maior, o economista chileno da Universidade de Cambridge, José Gabriel Palma (foto), adverte que esse modelo está preso em um fio muito fino: o alto preço do cobre. “Se esse fio se romper poderemos cair mais fundo que na crise de 1982, quando o PIB caiu 20%, o desemprego chegou a 30% e a população em situação de pobreza duplicou. Por Marcelo Justo, de Londres.
Por Marcelo Justo, em Carta Maior
Londres – Desde a década de 80, o Chile é apresentado nos centros de poder global como o melhor aluno da região, o modelo que os demais países da América Latina deveriam imitar. Os dados macroeconômicos do governo de Sebastián Piñera supostamente reforçariam essa tese: crescimento de 5,8%, inflação baixa, desemprego baixíssimo. Mas nem tudo o que brilha é ouro. O mal-estar social – manifestações estudantis, greves portuárias e do setor do cobre, entre outras – tem um correlato econômico. Segundo o economista chileno da Universidade de Cambridge, José Gabriel Palma, tudo isso está preso em um fio muito fino: o alto preço do cobre. “Se esse fio se romper poderemos cair mais fundo que na crise de 1982, quando o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 20% entre o terceiro trimestre de 81 e o de 83, o desemprego chegou a 30% e a população em situação de pobreza duplicou. E mesmo que isso não ocorra, não vejo como poderemos sustentar a atual bonança, que não está sendo direcionada para investimentos, mas sim para o consumo”.
Um sinal deste desequilíbrio econômico profundo é a conta corrente da balança de pagamentos que, segundo Palma, passou de um excedente de US$ 3,2 bilhões em 2009 (e US$ 7,1 bi em 2007) para um déficit de US$ 9,5 bilhões em 2012, ou seja, uma deterioração de quase US$ 17 bilhões em 5 anos, equivalente a 8% do PIB. “Esta economia em expansão precariamente sustentada por uma bonança temporal no preço do cobre é o grande “Cavalo de Troia” que Piñera generosamente vai deixar para o próximo governo”, disse Palma à Carta Maior, em uma entrevista onde analisa a fundo a saúde precária do modelo chileno.
Costuma-se criticar o Chile por sua dívida social, mas raramente por seu modelo econômico. Quais são os pontos fracos da estratégica econômica atualmente vigente no país?
Há dois temas. O primeiro é que, embora o Chile tenha tido um período de crescimento rápido de 1984 até 1998, cerca de 6,9% ao ano, não foi capaz de sustentá-lo. O investimento privado, o crescimento e a produtividade caíram em 1998 e não voltaram a se recuperar até 2010. Ou seja, o Chile estagnou economicamente em 1998 e depois cresceu à uma taxa típica da América Latina, uns 3,6% ao ano na década seguinte. No entanto, nos últimos três anos a economia voltou a ganhar dinamismo e cresceu 5,8%. E aqui vem o segundo tema. Este crescimento dos últimos anos está preso a um fio: o alto preço do cobre. O Chile é o país da América Latina que mais se beneficiou com o aumento das commodities. E a sociedade chilena não só está consumindo como se esse preço do cobre fosse para sempre, como também está gastando muito mais do que tem.
De maneira que não só está consumindo as receitas desta bonança temporária no preço do cobre em lugar de investi-las, como extrapolou neste processo. O resultado é que a conta corrente da balança de pagamentos, que até bem pouco tempo tinha um superávit de quase 5% do PIB, tem hoje um déficit de 4% que segue aumentando. E isso com um preço altíssimo do cobre. De fato, se no ano passado o preço do cobre tivesse permanecido aquele de antes do boom das matérias primas, que começou em 2003, a conta corrente da balança de pagamentos teria sofrido um déficit de 18% do PIB, maior do que aquele de 1981 e 1982, com a grande crise que atingiu o governo de Pinochet.
Em números redondos, em 2012, o Chile gastou quase US$ 50 milhões mais do que poderia ter feito se o cobre estivesse em seu preço normal histórico e sua conta corrente estivesse balanceada. Isso equivale a US$ 3 mil por habitante – ou o PIB por habitante de Paraguai, Guatemala ou El Salvador.
Pode-se dizer então que, em nível de modelo econômico, há uma perfeita continuidade entre a ditadura de Pinochet e os governos da Concertação e o de Piñera?
Em nível de política econômica sem dúvida há uma grande continuidade. A lógica de funcionamento do setor público, a falta de competição no privado, a política monetarista do Banco Central, o crescente grau de financeirização da economia, a ausência de política industrial e comercial, o sistema de impostos altamente regressivo refletem as mesmas regras do jogo na democracia e na ditadura. Os royalties para a mineração são um exemplo. O royalty que Ricardo Lagos inventou para a mineração é só para dizer que há royalty no Chile: na atualidade, equivale a menos de 2% dos lucros das empresas mineradoras privadas. A ruptura que houve com o passado é que a Concertação buscou implementar o mesmo modelo com um rosto mais humano, com um maior gasto social. O nível de pobreza baixou de 40 para 15%, mas na distribuição de renda o efeito foi mínimo: hoje o 1% mais rico do Chile leva 30% de toda a renda nacional. Na saúde e educação houve uma grande melhora quantitativa, com um aumento, por exemplo, do número de estudantes com acesso à universidade, mas a qualidade da educação e seu custo deixam muito a desejar.
Pode-se dizer que este modelo econômico com face humana entrou em crise nas últimas eleições com a derrota da Concertação?
Não há dúvida que há grupos no Chile, como estudantes, que disseram basta, não queremos mais isso. Mas não foi por isso que a Concertação perdeu as eleições em 2010. Ela perdeu porque escolheu um candidato ruim e porque havia um cansaço generalizado depois de quatro governos consecutivos, o que levou as pessoas a buscar algo diferente. Mas tudo mudou tão pouco que se diz que Piñera é o quinto governo da Concertação.
Mas precisamente os protestos estudantis, as greves mineiras e portuárias, não são sinais do esgotamento do modelo econômico social que surgiu com a democracia?
Claramente esse modelo começa a fazer água. Os estudantes disseram basta a essa educação de qualidade muito duvidosa e custo altíssimo. A matrícula universitária no Chile é a mais cara da OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), quando se relaciona o custo com a receita por habitante. Muitos trabalhadores, como na mineração, também disseram basta à subcontratação, ao abuso laboral e aos baixos salários. Segundo as cifras oficiais, dois terços dos trabalhadores não especializados, 60% dos trabalhadores jovens e mais de 40% de todos os trabalhadores da economia ganham um salário mínimo e meio ou menos. E isso em uma economia que, segundo o FMI, tem uma renda por habitante de US$ 18 mil. Há descontentamento social, mas isso não significa que haja uma crise institucional ou política. Há eleições onde o mais provável é a volta da Concertação com Bachelet.
Acredita então que a crise pode se prolongar mais pela mão da economia?
Ninguém tem uma bola de cristal, mas o que diria minimamente é que a atual economia baseada no preço do cobre é o grande cavalo de troia que este governo vai deixar ao próximo. O Chile gastou todo o excedente destes anos no consumo, em particular via importação, sem fazer os gastos produtivos e sociais que tanto se necessitam, tal como fez o presidente José Manuel Balmaceda no século XIX com o boom do salitre. Balmaceda investiu os lucros tanto em capital físico como humano, para criar capacidades produtivas que tomaram o lugar do recurso natural quando este diminuiu. Durante seu governo, colocou um imposto sobre as exportações de salitre que chegou a incidir até sobre um terço das exportações e com esses recursos dobrou o número de estudantes na educação primária e secundária e desenvolveu um grande programa de obras públicas, especialmente ferrovias.
O investimento público em capital físico quadruplicou em termos reais e na educação aumentou oito vezes. Para fazer isso hoje seria preciso primeiro criar um royalty de verdade sobre a mineração privada de cobre que constitui dois terços da exportação e, depois, usar esses recursos em investimentos em capital humano e físico. Mas nada disso está sendo feito.
O contra-argumento é que este preço do cobre pode ser manter já que responde a uma mudança na demanda global pela incorporação da China e da Índia no mercado global.
O que realmente explica o preço do cobre é a especulação porque os mercados financeiros internacionais estão tão líquidos e com tão poucas alternativas relativamente seguras onde especular, que as commodities que crescem pelo menos 3 ou 4% passam a ser muito atrativas. Hoje as bolsas de comércio de Nova York, Londres e Frankfurt estão de volta aos níveis mais altos que tiveram antes da crise: há alguém que realmente acredita que isso reflete algum fundamento, em economias estagnadas ou semi-estagnadas, com investimento baixo, setores públicos endividados até a alma, e a zona do Euro correndo o risco de implodir? Todos os fundamentos da economia mundial são um desastre e, apesar disso, as ações estão em níveis recorde. O mesmo ocorre com o cobre, onde a demanda mundial cresce 3 ou 4% ao ano – o mesmo que a média de 200 anos atrás -, mas o preço do metal está três vezes superior à medida histórica. É neste fio que estamos pendurados.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.