Sérgio Botton Barcellos
Os temas da internação compulsória e da redução da maioridade penal estão sendo pautados de forma intensiva pelo governo do estado de São Paulo, desde janeiro desse ano, quando efetivou uma ação conjunta entre o Judiciário e o Executivo, com médicos, juízes e advogados, colocando a internação compulsória com pauta na agenda pública. Ao mesmo tempo na semana passada o governador Geraldo Alckmin esteve pessoalmente durante a sessão, que aprovou o Estatuto da Juventude, para também dar entrada junto com outros senadores ao projeto de lei para a redução da maioridade penal, defendendo penas mais rígidas para menores infratores e punições mais severas para os/s jovens que cometerem delitos graves[1].
Nesse embalo os senadores estão dando andamento à tramitação do projeto de lei que trata da internação compulsória de dependentes químicos e traficantes de drogas já presos que sejam viciados. O projeto com relatoria da senadora Ana Amélia (PP-RS), prevê que a decisão do tratamento pode ser imposta ao usuário de droga por decisão judicial. Esse projeto foi aprovado no dia 10 de abril na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). A matéria ainda vai tramitar nas comissões de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). O texto aprovado, em forma de substitutivo ao projeto de lei original – PLS 111/2010 – prevê que o juiz, com base em um laudo emitido por comissão técnica, poderá encaminhar os dependentes químicos e traficantes viciados em drogas no território nacional, para tratamento especializado e, se necessário, à internação compulsória.
Observa-se, que nas cidades onde estão ocorrendo às internações compulsórias, em grande parte junto a usuários de Crack e aos/as jovens em condições de pobreza, como Rio e São Paulo estão ocorrendo os preparativos para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Associado a isso há inúmeras denúncias por parte dos movimentos sociais e até da ONU sobre violações dos direitos humanos nessas cidades, pois não estão sendo respeitados os direitos à moradia e à cidade, com a remoção de comunidades inteiras para a instalação de perimetrais e obras turísticas descumprindo legislações como, Constituição, Leis Orgânicas municipais, o Estatuto das Cidades e tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Além de não oferecer indenizações ou aluguel sociais apropriados para as famílias desalojadas se instalarem em um local equivalente ao qual residiam, estão sendo oferecidas habitações em conjuntos, distantes muitas vezes até50 km do local original. Ainda, nessas cidades estão ocorrendo perseguições sistemáticas ao trabalho dos camelôs, a precarização do trabalho nas construções dos estádios e outras infraestruturas, bem como o recolhimento compulsório das pessoas moradoras de rua para abrigos distantes e sem uma estrutura de atendimento apropriada.
Nesse processo de preparação do Brasil para receber os megaeventos, o discurso da “higienização” das cidades e criminalização da pobreza está ganhando cada vez mais vulto, mesmo que sempre tenha perpassado o processo histórico de urbanização no Brasil. Esse conjunto de situações e fatos que estão ocorrendo, sinalizam a chegada das leis de exceção e a limitação na liberdade de manifestação e comunicação em diversas cidades brasileiras.
As retóricas para a segregação e dominação social
Uma das variáveis pela qual podem ser analisadas as medidas higienistas e disciplinadoras nas cidades e na sociedade brasileira é a partir de uma lente sobre a história do Brasil, desde a invasão e a colonização européia no país. Evidencia-se que o processo de segregação e criminalização da pobreza foi convencionado em meio a um padrão civilizador que assume distintas feições nos estágios de desenvolvimento do capitalismo e são reafirmados pelas elites e muitos seguidores na classe média, os quais atuam por intermédio das instituições de Estado, bem como pela opinião pública por meio das corporações midiáticas.
Percebe-se que esse modelo urbano no Brasil beneficia poucos segmentos da sociedade e não está sendo capaz de prover as condições adequadas e necessárias de renda, moradia, mobilidade e saneamento para uma grande parcela da população brasileira que está situada em sua maioria à margem dos mercados de habitação, infraestrutura, serviços básicos e produtos de bens e consumo. Com este modelo vigente, há uma tendência em configurar-se concreta e simbolicamente a formação de um “cordão sanitário” entre as elites e a pobreza com todas as questões sociais (drogadição, diversos delitos e homicídios) que acompanham os conflitos gerados sob condições paupérrimas de vida.
Algumas das expressões sociais relativas ao discurso da redução da maioridade penal e internação compulsória estão associadas a fatores como a expansão, diversificação e sofisticação da violência delitual nas grandes cidades contra os grupos étnicos, geracionais e de expressão sexual (homofobia), a criminalização da pobreza e a criação de antagonismos entre grupos sociais em meio à restrição das condições de inserção social e ao mercado de trabalho. Exemplo disso são os/as jovens no Brasil, que são as principais vítimas da violência urbana, alvos prediletos dos homicidas e dos excessos policiais, em destaque os/as jovens negros que também lideram estatísticas, como, o grupo social que recebe os salários mais baixos do mercado, do maior contingente de desempregados e dos que têm maior defasagem escolar.
Por exemplo, segundo o recém-divulgado PNAD (2011), as/os desempregadas/os do mercado formal e informal, mais da metade são mulheres (mesmo que mais escolarizadas que os homens); mais de um terço (33,9%) são jovens entre 18 e 24 anos de idade; e 57,6% pretos ou pardos e 53,6% com ensino médio incompleto. Outra pesquisa recém divulgada pela OIT (2012) reafirma essa condição.
Ainda, de acordo com a publicação Mapa da Violência, um jovem negro entre 15 e 25 anos tem chances 127% maiores de ser assassinado que a de um branco na mesma faixa etária. Em 2010, foram registradas 49.932 pessoas vítimas de homicídio no Brasil, desses 70,6% eram negras (os). Em 2010, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, 74,6% dos e das jovens assassinadas/os eram negros/as e 91,3% eram do sexo masculino. Já as vítimas jovens (ente 15 e 29 anos) correspondem a 53% do total de homicídios e a diferença entre jovens brancos e negros salta de 4.807 para 12.190 homicídios, entre 2000 e 2009. Em outro estudo aponta-se que das vítimas de violência homofóbica no Brasil, que registraram denúncia, indica-se o predomínio de vítimas até 29 anos (50,3%) e na maioria são jovens de cor parda ou negra. Portanto, não deve ser delegado aos/as as jovens o conjunto de delitos e a causa da violência nas cidades, pois são as vítimas desse próprio processo.
Faz-se necessário rememorar que a constituição das cidades no Brasil foi estruturada por uma economia competitiva, como o símbolo da modernização da estrutura produtiva da sociedade brasileira, junto ao processo histórico de uma sociedade que estruturou sua economia pelo mercantilismo e pela escravidão. Isto acarretou a inserção desigual dos vários grupos raciais (em grande parte em faixa etária jovem) na economia competitiva, como um processo de racionalização econômica em curso e a imposição de um novo modelo de organização da vida econômica e social na história (Fernandes, 1978). Nesse processo, evidentemente, a integração dos/das negros/as foi de exclusão, pois o processo imigratório colocado em prática pelo governo brasileiro no início do século passado priorizou a utilização de força de trabalho originária da Europa, pela crença e o advento da civilização e da modernização da sociedade nacional balizada pelas diretrizes do trabalho livre, do regime republicano e capitalista[2].
Afirma-se, a partir desse conjunto de questões expostas, que as atuais políticas de criminalização da pobreza por parte do Estado, como a internação compulsória e a redução da maioridade penal, vão além da segregação social, pois tem recorte geracional e racial e estão endereçadas mais uma vez para a juventude. Percebe-se que, se alguém está matando alguém, não são os e as jovens pobres, mas a discussão parece ser bem mais complexa e pode estar desvinculada de preceitos imediatistas propalados pelas elites ardorosas por segurança e divisão social.
Destaca-se que os projetos de lei sobre a redução da maioridade penal e da internação compulsória, em tramitaçãono Congresso Nacional, também tem seu recorte de classe junto aos propositores da matéria, pois são projetos azeitados por forças histórico-conservadoras e as elites que atualmente tem assento legislativo historicamente em partidos como PSDB, DEM, PRB e atualmente, até mesmo, em partidos como PSB, PCdoB e PT. Junto a isso, observa-se um governo apático e sem reação perante essas pautas postas no Congresso, a princípio para manutenção de uma suposta governabilidade.
Outra questão que pode ser feita sobre esse debate, é: como e aonde irão colocar em regime de cárcere tantas pessoas? Entre 2001 e 2011, a população brasileira cresceu 9,32% e a população carcerária 120%. São 550 mil presos e um déficit de 250 mil vagas, sendo uma das maiores populações carcerárias do mundo. Ainda, consta em uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do total de adolescentes em conflito com a lei em 2011 no Brasil, apenas 8,4% cometeram homicídios. A maioria dos delitos são roubos, seguido por tráfico. Quase metade do total de adolescentes infratores realizou o primeiro ato infracional entre os 15 e os 17 anos.
Também se cria certa espetacularização do uso das drogas e a propagandeação de que está ocorrendo uma epidemia do crack. Contudo isso parece não estar de acordo com a realidade, exemplo disso, é que segundo dados do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid), 12% dos paulistanos, por exemplo, são dependentes de álcool e apenas 0,05% usa crack.
Percebe-se que se o regime de cárcere e internação compulsória fossem medidas eficazes e que tivessem algum desdobramento considerado benéfico à sociedade, não seria necessário discutir formas de contenção e cárcere para mais pessoas. O debate da desigualdade social, por exemplo, que pode ser considerado um dos principais geradores de criminalidade e violência na sociedade é mascarado por argumentos maniqueístas, eugenistas e psicologistas pelos formadores hegemônicos de opinião pública, bem como pelas elites políticas e econômicas do país.
A questão do uso do Crack e outras drogas parecem ter que ir além de ser apenas um caso de polícia ou abordada sob um viés sanitarista, ou como uma epidemia, ou tornando a decisão da internação em uma política pública de retirada de circulação da pobreza e cárcere sanitário, o que é o avesso aos atuais conceitos e tratamentos em saúde mental[3].
Nessa breve provocação não foi possível dar conta da diversidade de aspectos possíveis e necessários de serem contidos no debate sobre a internação compulsória e a redução da maioridade penal. Contudo, percebe-se que os debates e as disputas políticas para o aprimoramento e a ampliação das ações e políticas públicas em saúde e segurança pública precisam estar em pauta para e pelo conjunto da sociedade, além das medidas conservadoras e “medievais” que estão sendo propostas.
[1] O movimento da reforma psiquiátrica é uma luta pelos direitos de pacientes psiquiátricos que denuncia a violência praticada nos manicômios e que propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias para o tratamento dessas pessoas, ou seja, em locais que o paciente possa frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da convivência familiar e comunitária.
[1] Segundo o Código Penal, a Constituição, a Lei de Segurança Nacional e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), menores de 18 anos são penalmente inimputáveis. Atualmente, a internação máxima prevista pelo estatuto é de três anos, mas uma pessoa pode ficar internada até os 20 anos e 11 meses, se ela for pega na véspera de completar 18 anos.
[2] Ver mais em FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Vol.I. São Paulo: Ática, 1978.
[3] O movimento da reforma psiquiátrica é uma luta pelos direitos de pacientes psiquiátricos que denuncia a violência praticada nos manicômios e que propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias para o tratamento dessas pessoas, ou seja, em locais que o paciente possa frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da convivência familiar e comunitária.