Parte 2 da reportagem Silêncio e dor se multiplicam nos campos brasileiros, publicada pelo Diário do Nordeste
Num dos maiores polos agrícolas do Nordeste, farra de agrotóxicos e casos de contaminação, como o de José Liberato
Por Melquíades Júnior
Juazeiro (BA). Parece que foi ontem o dia 20 de julho de 2010. Os mais de 39 anos de casada com Liberato não permitem que Helena ache distante o tempo que já não vive mais com o esposo. “Distância é o tempo que fica para frente”. Ao redor de casa, o horizonte lembra Liberato – um campo agrícola e o campo de futebol. E, quando a tarde avança, é maior a sensação de que o homem está perto de voltar.
“Era louco por futebol. Era sagrado o jogo à tardinha. Chegava da plantação pra se trocar para o jogo. Duas coisas que ele gostava: jogar bola e ouvir um sonzinho em casa”. Seu Liba, como era chamado na comunidade, diziam que dava de dez a zero nos rapazotes. “Era um coroa enxuto”. O gosto pelo futebol é tanto que só percebe que a contaminação por agrotóxico virou coisa séria no meio de uma partida, quando bate uma fraqueza e desmaia no meio do campo. No hospital, dizem que provavelmente não é nada. “Mas eu já tinha impressão que fosse o início desse problema”, afirma Helena. É o início do recomeço, pois antes foram vários decaimentos no campo agrícola.
“Ele já tinha se intoxicado de veneno em 83, teve a segunda vez, aí a terceira foi aqui na frente de onde tá a gente”. Estamos no assentamento Mandacaru, Juazeiro (BA), em pleno Vale do Rio São Francisco. Por causa disso, passa sete anos afastado da roça. “Se fosse lá (na roça), chegava em casa com dor de cabeça e coceira no corpo”.
Corpo “em chamas”
O formigamento e o calor no corpo são tantos que 5 horas da madrugada, quando o sertanejo pode encontrar o momento mais frio do dia quente, Liberato está no segundo ou terceiro banho. Vã tentativa de apagar a sensação de chamas. “Quando ele sentia dor de cabeça, o médico dizia ‘o senhor não vá pra roça, pode dar um problema e o senhor ficar paralisado’. Era uma dor de cabeça muito forte, ele gritava feito criança”, conta.
Além da casa, o casal Helena e Liberato conquistou um lote de oito hectares no assentamento. Lá, passaram 24 anos das quase quatro décadas de casados. Nesse tempo, viram o Rio São Francisco iniciar a propulsão de um grande movimento de produção agrícola irrigada, a partir de Petrolina (PE), na outra margem do rio. O polo Petrolina-Juazeiro é hoje referência de desenvolvimento rural no Nordeste.
“Na época em que ele começou, não tinha proteção . Naquele tempo, não tinha EPI. Tinha tempo de ele chegar em casa todo molhado de veneno. Depois, eu ia lavar a roupa. Mas também ajudava ele assim: ele botava veneno num dia, no outro eu ia limpar. Quando eu fiquei assim (aponta manchas no corpo), fiz todo tipo de exame e não deu nada para agrotóxico”.
Confira o vídeo com depoimento da viúva Helena Barbosa
Hipertensa e portadora de sífilis, Helena passa a também ter que medicar o marido, que já não apresenta mais a dor de cabeça, mas a dor de preocupação: aparece um caroço na axila de Liberato. No hospital, o médico retira, mas, pensando encontrar apenas uma bolha, surpreende-se com o caroço. Uma vez retirado, o nódulo vai para biópsia em Cascavel, no Paraná. Recuperando-se da cirurgia, o agricultor recebe alta hospitalar. “Não faça nada, fique aí que eu vou lhe buscar”, diz Helena, por telefone, assim que recebe a boa notícia. De vez em quando tem que conter a ansiedade de Liberato, que não vê a hora de voltar.
A piora
“Quando eu chego, ele já está com bolsa na mão, num pé e noutro pra ir embora. De repente, começa a sangrar na área da cirurgia. Abrem na minha frente, chegar espirra sangue. O medico diz: ‘se o senhor sangra na sua casa, não chega aqui'”.
Cancelada a alta, Liberato segue em observação. Chega a biópsia do nódulo e dos exames de sangue – leucemia e linfoma no intestino. Um documento-guia de internação já aponta Liberato para tratamento quimioterápico em Salvador. “Lá, vai ser a minha cura”, pensa.
Mesmo ameaçado de fechamento nos últimos cinco anos, e com constantes atrasos no recebimento das parcelas para manutenção, o Hospital Aristides Maltez, na Capital Baiana, é o único especializado em tratamento de câncer pelo SUS em todo o Estado. Helenice, a filha mais velha, acompanha o pai.
Em Juazeiro, a comunidade do assentamento faz os preparativos da tradicional Festa do Colono. Mesmo com seu Liba doente, ninguém ousa interromper os trabalhos. “Estou com cara de festa de despedida”, pensa Helena naquele momento.
Em Salvador, faz cinco dias que Liberato espera voltar para casa e para o futebol. É a mesma ansiedade, mas algo mudou. A alegria, ou o disfarce da tristeza, comum em sua face até então, somem. A família tem dimensão da dor do problema, mas gosta de ver aquela cara de valente nele. O homem forte, agora também é sincero: “minha filha, fique aqui comigo, acho que de hoje eu não passo”, diz. Se dissesse a Helena, teria ouvido novamente dela: “vire essa boca pra lá, homem. Se duvidar eu vou antes de você”.
Helenice passa mais um dia, tarde e noite ao lado do pai. Só o deixa às 22 horas, momento de ir para a Casa de Apoio ao Enfermo, para onde vai quem não tem para onde ir. O telefone anda mais rápido e, antes que entre no alojamento, às 23 horas, recebe a notícia do administrador do local: “o seu pai não resistiu”.
“Quando eu fui saber já era de manhã. Estava limpando o terreiro quando meus sobrinhos chegaram e me disseram”, conta Helena. Liberato morre aos 60 anos. Não dá tempo de fazer a primeira sessão de quimioterapia, nem de receber o terceiro mês da aposentadoria, que tanto sonhou conquistar. Para Helena ainda mais parece que foi ontem quanto mais ela revê o vídeo deixado pelo marido, gravado no leito do hospital, com uma câmera digital. Falava da falta dela e do time de amigos.