Parte 3 da reportagem Silêncio e dor se multiplicam nos campos brasileiros, publicada pelo Diário do Nordeste
Trabalhador de Polo agrícola na Chapada do Apodi morre sem ter os direitos assegurados
Por Melquíades Júnior
Limoeiro do Norte (CE). Valderi fica desempregado quando a cerâmica bota mais de dez para fora. Como, depois de uma certa idade, é mais difícil, fica radiante ao saber que lá mesmo onde mora, na Cidade Alta, Limoeiro do Norte, estão escalando agricultor para trabalhar na Chapada do Apodi com urgência e não pedem a idade.
Tão urgente que o dia para saber se vai dar certo já é o de trabalhar. Para quem saiu de madrugada, voltar no início da noite nem é cansativo diante da boa notícia. É alívio para Maria da Conceição de Sousa, porque lavar roupa pra fora não é suficiente. O casal só consegue pagar o aluguel de R$ 50 já com um mês dentro. E é assim no mercantil e na conta de luz.
Valdeci é escalado para o setor de aplicação de agrotóxicos. Coloca a bomba nas costas, com o veneno preparado por outros colegas e vai pulverizando. Como a produção de banana é crescente para atender à procura – o produto tem exportação certa para Estados Unidos e Europa – nem todos têm o obrigatório Equipamento de Proteção Individual (EPI). É com a roupa do corpo e de chinelo que se torna trabalhador rural no setor de “aplicação de defensivos”. Só toma banho em casa. Dos cascalhos que descem no chuveiro, o primeiro é veneno, depois o suor do dia e, enfim, está limpo.
“Os meus meninos estão adultos, os seus também, o que eu ganhar é pra mim e pra você, Maria”. Os dois vêm de outros divórcios. Ele largou a esposa e ela foi largada pelo marido. Ao contrário de Valderi, Maria ficou sozinha com os filhos ainda em idade de colo. “Nunca me esqueço”. Já “Rodrigue” – como Maria chama Valderi – “é um homem tão bom…”
O casal faz planos para o primeiro salário da firma, já com carteira assinada. O dinheiro só dá para pagar as contas, mas se esperaram até agora, ele pode pagar uma parte e deixar o restante para o mês seguinte. O que sobrar dá para comprar à prestação na loja. No dia em que estão certos de ir ao centro de Limoeiro fazer compras, a viagem precisa ser ao hospital público.
Tem dias que um ferimento no dedo mindinho do pé direito é motivo de reclamação. “O dedo tá preto, Rodrigue”. Doutor Lázaro, o médico, vê a situação e amputa o dedo. Deve voltar em quatro dias para tirar os pontos. “Ainda tá muito feio, em carne viva”, nota Maria. A essa altura, Valderi, com atestado médico, não vai trabalhar. No dia de tirar os pontos, é a vez do doutor Lázaro: “está muito feio, não vai dar para tirar os pontos”. Três dias depois e muita luta para conseguir um carro, Valderi e Maria estão, com uma guia de internação, chegam a Fortaleza. Na Capital, a mancha preta no pé aumenta com os dias e os dedos são tirados um a um. Só sobra o dedão na volta a Limoeiro. Não por muito tempo. Com dois meses de quando perdeu o primeiro dedo, Valderi vê indo embora o pé direito. Março e abril de 2005 são os meses mais intensos.
“Ela faz tudo por mim”, conta Valderi, passados três anos de quando duas muletas substituem o pé direito. Com a mutilação, a perna do ex-trabalhador vive inchada e dolorida. “Eu tô tentando minha aposentadoria, mas, até agora, nada”. A empresa em que trabalhou, Banesa, só se pronuncia formalmente para dizer ao Ministério do Trabalho que não tem nenhuma relação com a doença adquirida por seu ex-funcionário.
Num dia para se esquecer, Maria chega do trabalho e Valderi está no chão, rolando de parede a outra, numa tentativa de suportar a dor. “Mãinha, me ajude”. Eles choram abraçados no chão. Com a doença, o ex-agricultor passa a chamar a esposa de mãe ou mãinha. “Eu amo ele como a mulher ama o marido, e cuido como quem cuida de um filho”.
Quando o vazio é o que une a geladeira e a barriga, Maria pede uma bicicleta emprestada e, com a ajuda da irmã, coloca Valderi na garupa e sai empurrando o homem até uma emissora de rádio. Voltam para casa de carro e abarrotados de mantimentos ofertados pelos ouvintes sensibilizados com o apelo.
Em 2008, passados três anos de quando se vai o primeiro dedo do pé, Valderi e Maria não se sentem sozinhos. O que se dizia na surdina não é mais segredo: alguma coisa está contaminando outras pessoas na Chapada do Apodi. José Maria Filho, líder da comunidade de Tomé, uma das várias existentes na região, denuncia que um avião faz sobrevoos nas plantações e nos telhados das casas jogando veneno.
Enquanto isso, o caso de Valderi chega à Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará (Fetraece) e, em seguida, ao Ministério do Trabalho. “Tô vendo a hora morrer e não sair o resultado do pedido de aposentadoria”, reclama Valderi. Com a Carteira de Trabalho (sem a baixa pela empresa contratante) numa mão e documentos que comprovam sua doença na outra, no dia 28 de abril de 2008, nos recebe e posa para sua última foto.
Os sete meses que se seguem são a eternidade derradeira do caos iniciado com o dedo do pé. Maria sai cedo para trabalhar lamentando deixar o marido só. Mas, na volta para casa, o sentimento que a atrai é o mesmo que repudia: a dor que não acabava mais em Valderi. “Nem as doses de morfina ajudam”. E ela chega em casa como quem repõe a cruz no ombro.
Veja relato de Maria da Conceição
Depois de dias mais sofridos, Valderi amanhece com uma melhora. “Mãinha, vamos visitar Fabim”. Fica três dias na casa do amigo. Depois Sousa, João, e assim uma semana de passeio na vizinhança tão próxima, mas distante. Maria só entende que tudo não passa de uma despedida na primeira sexta-feira de volta para casa. Do lado de fora com a irmã, ela ouve a voz do marido. As duas voltaram correndo. Valderi no chão gemendo, se arrastando ao encontro do abraço da mãe-esposa. Sem saber de onde tira força, coloca sozinha o homem na rede, ele pesando o dobro dela. O choro abraçado dos dois é a despedida. Valderi não sente mais dor. Só Maria.
Evolução da doença
Março de 2005
Desempregado, José Valderi Rodrigues é recrutado para trabalhar no setor de aplicação de agrotóxicos em uma produtora de bananas, na Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte (CE). A aplicação é feita sem o uso de equipamento de proteção individual (EPI) e, em pouco tempo, surge ferimento no dedo mínimo do pé do trabalhador rural.
Abril de 2005
A esposa, Maria da Conceição, leva o marido para o hospital de Limoeiro do Norte, onde o médico decide amputar o primeiro dedo do pé. Na mesma semana, é feito o seu desligamento da empresa. Sensibilizados, os colegas de trabalho de Valderi montam uma cesta de alimentos para o casal, que já vive em condição de miséria porque o ganho de Maria não é suficiente.
Maio de 2005
Valderi é levado para Fortaleza com fortes dores no pé direito. Outros dedos já estão pretos por falta de circulação sanguínea e três deles são amputados. De volta a Limoeiro do Norte, o casal desempregado vai às rádios pedir ajuda. Sensibilizados pela dor dos dois, vários ouvintes colaboram e as doações ajudam a amenizar provisoriamente o sofrimento.
Março de 2008
A Federação dos Trabalhadores Rurais do Ceará (Fetraece) ingressa com denúncia do caso de Valderi no Ministério do Trabalho contra a empresa Banesa, onde ele trabalhava, numa tentativa de amenizar a situação, já que o ex-trabalhador rural não consegue nem o seu direito à aposentadoria por invalidez na situação em que se encontra.
Outubro de 2008
O ex-aplicador de agrotóxicos Valderi morre, gemendo de dor, em sua casa, em Limoeiro do Norte, abraçado com Maria da Conceição, sem que o processo trabalhista nem o pedido de aposentadoria tenham avançado. Para Conceição, resta apenas a dor. Sem condições financeiras para sustentar a si e aos filhos, ela decide morar na casa de uma irmã.
Março de 2013
O processo trabalhista de Valderi ainda corre na Justiça. Com a morte do ex-trabalhador rural, a mulher com quem foi casado no civil consegue, na Previdência, a pensão. Mas Conceição, com quem vive seus últimos 15 anos de vida, incluindo os anos de doença, até sua morte, nada recebe e vive miseravelmente no município de Russas (CE).
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