Enquanto a Lei das Domésticas garante mais direitos, realidade no interior ainda obriga meninas a aceitar todo tipo de abuso para driblar a miséria e o isolamento
Carolina Mansur e Luiz Ribeiro
A Lei das Domésticas, promulgada pelo Congresso Nacional no início de abril, promete transformar a relação trabalhista entre empregadas e patrões. Na teoria, a expectativa é de que mudanças como a jornada máxima de oito horas diárias melhorem a vida de 6,6 milhões de trabalhadores domésticos no país. Na prática, no entanto, muitos continuam fora do alcance da lei, esquecidos em um universo à parte, onde não há emprego disponível devido baixa qualificação e onde o serviço informal – muitas vezes em condições desumanas e com salário abaixo do mínimo – surge como única opção. Na zona rural e em pequenas cidades, um mês inteiro de trabalho chega a valer R$ 50 e a mudança para a capital e cidades polo acaba significando a libertação de uma vida pobre e pouco promissora.
O dia a dia dessas trabalhadoras, suas histórias, o sonho com uma vida melhor e o caminho para cidades onde há promessa de mais oportunidades são os temas da série Aonde a lei não chega, que o Estado de Minas publica a partir de hoje. São histórias como a de Elisângela Batista de Carvalho, de 23 anos, que deixou o pouco que tinha para trás e busca uma vida diferente longe da família. Moradora de um povoado conhecido como Borrachudo, na zona rural de Paulistas, Região do Rio Doce, ela começou no serviço doméstico aos 11 anos de idade. “No meu primeiro emprego, ganhava R$ 5 por dia de trabalho”, lembra. Na região em que morava, Elisângela sempre cuidou da limpeza da casa de vizinhos, de fazendas da região, mas nunca ganhou mais que R$ 200 por mês.
A vida pobre ao lado dos 11 irmãos fez com que ela se apegasse ainda mais ao emprego. “Trabalhar ganhando pouco era a única forma de ter o que comer, de conseguir uma vida um pouco melhor.” Com as economias acumuladas em 12 anos de trabalho remunerado abaixo do mínino no interior, Elisângela comprou um terreno e construiu casa própria na roça. Mas, diante de problemas no relacionamento e da separação do marido, ela decidiu deixar quatro irmãos, a mãe, Divina Geralda Batista, e a propriedade para trás e tentar a sorte na capital.
Na chegada a Belo Horizonte, se assustou com tanta novidade. Inclusive, no trabalho, onde é tratada com respeito, recebe um salário mínimo e tem a carteira assinada. “Vim com emprego arranjado pela minha tia na casa de uma senhora”, conta. “A patroa me trata bem. Respeita meus horários. É diferente do interior, onde as pessoas fingiam que nem estávamos ali as servindo”, ressalta. Em Paulistas, ficou a mãe, que todos os dias lamenta a falta da filha. “A gente quer que eles fiquem por perto, mas o que a gente pode dar é muito pouco”, comenta.
Agora na capital, a vida de Elisângela começa a mudar. Com o primeiro salário, comprou celular, roupas e cosméticos. Também mandou dinheiro para a mãe, que vive com R$ 250 por mês, além de guardar um pouco para comprar outra casa em BH. “Peço a Deus que me dê forças para continuar aqui porque é muito ruim estar longe da família. É o que mais me faz falta”, diz.
O descaso com que é tratado o trabalho doméstico em pequenas cidades do interior faz com que as histórias se repitam. Maria Geralda da Silva Santos, de 31, que se apresenta para todos como Neguinha, também precisou mudar o rumo de sua vida. Nascida em Marilac, também no Rio Doce, saiu de casa pela primeira vez aos 14 anos, quando aceitou o convite para trabalhar em Ipatinga e morar na casa dos patrões, recebendo R$ 80 por mês. “Meu pai batia muito em mim e o único trabalho era na enxada. Não tive infância, não aproveitei a minha mãe. Precisei aceitar o emprego. Hoje, tudo que eu tenho é por causa do meu serviço como doméstica”, ressalta.
Com R$ 900 por mês – um salário mínimo, mais o dinheiro que consegue com as faxinas que faz aos fins de semana –, Maria hoje paga aluguel e está mobiliando a casa com a ajuda de amigos. No mês que vem, Maria também terá a sua carteira assinada pela patroa, que prometeu cumprir a lei. Para o futuro, pretende dar boa educação à filha, que sonha ser veterinária. “Vou lutar para isso, nem que tenha que derramar sangue. Quero que ela seja alguém na vida”, garante. Com os olhos no futuro, ela garante não sentir saudades do que ficou, de sua história e família. Do passado, Neguinha leva na memória apenas o carinho da mãe, que faleceu há três anos.
Sonho quebrado
A história de Juciele Gonçalves Silva, de 23 anos, que nasceu na zona rural de Brasília de Minas, na Região Norte do estado, também ilustra bem a condição das empregadas domésticas que saem do interior. Ter acesso à escola não foi fácil. Com muito esforço, conseguiu concluir o ensino médio. Mas o único serviço que encontrou foi de empregada doméstica numa casa do mesmo município. Quando Juciele estava com 20 anos, surgiu a oportunidade de trabalhar em Montes Claros. “Vim pensando em estudar, com o sonho de fazer faculdade de psicologia”, relata.
Ela começou o trabalho de empregada doméstica recebendo valor inferior ao salário mínimo, sem carteira assinada, mas com a promessa de que teria tempo para fazer um curso noturno. Na prática, nada disso aconteceu. “Eu trabalhava até a noite, não tinha descanso e quase não saía de casa. Minha patroa falava que era muito perigoso sair.” No ano passado, Juciele mudou de emprego. Com a atual patroa, ganhou tempo de descanso e diz ser bem tratada. No entanto, recebe R$ 450 por mês e não tem a carteira assinada. “A minha patroa me explicou que não tem condições e aceitei numa boa porque minha relação com ela é de amiga”, afirma.
Sem benefícios e agora grávida, Juciele deixará o serviço de doméstica. Vai deixar também os planos de voltar a estudar para depois. Em maio, ela volta para Brasília de Minas, até o nascimento do filho. “Pretendo retornar para Montes Claros no fim do ano, como empregada doméstica ou em qualquer outro serviço”, disse a jovem, que sonha um dia ter a carteira assinada, mas que agora vai levar consigo o bebê. Na zona rural, a mãe, Almerinda, lamenta a falta da filha. “Tem dias que choro de saudade. Fico pensando se está com saúde, se está bem alimentada, mas sempre incentivei que ela trabalhasse fora para poder correr atrás das suas necessidades”, diz.
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.