“Perdi meu filho para o tráfico”

Morro Santo Amaro, Rio de Janeiro, 2009. Foto: AP Photo/Douglas Engle, Australfoto

Nota: a parte final desta matéria, de 2006, foi citada por Eliane Brum na reportagem, Pela ampliação da maioridade moral, postada há pouco. Fui ver o trecho em questão e terminei por ler tudo. E decidi que ela merecia ser socializada, inclusive porque a considero, no todo, o complemento perfeito da matéria de hoje. (Tania Pacheco)

Por Eliane Brum, da revista Época

No mundo do tráfico, a morte é anunciada. Enilda sabia como ia terminar a trajetória de seu filho quando começou a pagar o caixão, cinco anos antes de sua vida ser apagada. Agora, ela parcela o enterro de outro filho. “Quero que meus meninos pelo menos morram honestamente.” O mais trágico dessa história é que Enilda é uma entre milhares de mães condenadas a sepultar os filhos.

NILDA RODRIGUES DA SILVA pagou o caixão do filho por quase cinco anos. O menino estava vivo. Mês após mês, ela acertava uma cartela do carnê: R$ 15. O valor é mais da metade do que ela ganha para lavar, engomar e passar uma trouxa de roupas. O garoto tinha 15 anos quando ela começou a quitar sua morte -e 20 quando o enterrou. No dia seguinte, a mãe começou a comprar o caixão do próximo filho. Ele tem 19 anos e -ainda- está vivo.

Essa saga de morte parece emergir de um conto de horror. A narrativa de uma mãe que compra o caixão de filhos com saúde e menos de 20 anos, à espera de sepultar um após o outro. A história de uma mãe empenhada em velar o corpo vivo dos filhos. Essa saga é vivida por uma mulher miúda, de 44 anos, metro e meio de altura, na periferia de Fortaleza, no Ceará. Ela é a prova de que a realidade pode infligir uma dor que a ficção desconhece.

Enilda é uma entre milhares de mães das periferias do Brasil condenadas a sepultar seus filhos mortos na guerra do tráfico de drogas. Sentenciadas por uma lei não escrita à dor para a qual não há nome em nenhuma língua, elas são as pietàs dos becos e morros do País.

No Brasil, uma geração tem sido apagada a bala do futuro. Assassinato é a principal causa de morte dos jovens entre 15 e 24 anos. De 1979 a 2003, os homicídios cresceram 743% nessa faixa etária. Nesse período, a violência matou mais no País, conforme um estudo da Unesco, do que a Guerra do Golfo e os conflitos entre Israel e Palestina. A morte violenta não tem apenas idade, mas cor e classe social. Pesquisas mostram que quanto menor é a renda e mais deficientes os serviços, mais altas são as estatísticas. Negros e pardos têm pelo menos duas vezes mais chances de tombar a tiros que brancos.

Mulheres como Enilda, no jargão policial, são “mães de bandido”. Mas se o tráfico de drogas figura entre os negócios mais lucrativos do mundo, o dinheiro não está com elas, nem esteve com seus filhos. A maioria deles pegou em armas antes de acabar o ensino fundamental, não deu tempo nem de aprender para que lado fica a Colômbia. Gastaram os poucos anos de vida encurralados, meninos de armas na mão, com mais medo do que poder. No país cuja expectativa de vida supera os 70 anos, a deles é de apenas 20: meio século de vida roubado, portanto.

Enilda tem uma razão para pagar o caixão dos filhos a prestação, adiantado. “Quero que pelo menos morram honestamente”, diz. Ela deseja que eles tenham o enterro pago por um dinheiro conquistado pelo suor do trabalho. Essa luta de mãe para dar na morte a dignidade que não alcançou na vida de seus meninos é sua única esperança de paz. Não encontrasse um sentido, Enilda não suportaria a insanidade contida no ato de pagar adiantado os sete palmos de chão de um filho após o outro.

A comunidade se mobiliza para receber a equipe de reportagem no cortiço horizontal em que Enilda vive, parede grudada contra parede. Uma vizinha corre a emprestar uma cadeira, a melhor cadeira, para a repórter. Tem um prego nela. Nas casas das mães dos meninos mortos no tráfico, a dor da morte e a dor da vida se misturam, tecem uma narrativa contida no mesmo fio.

São perguntas simples que cruzam a cabeça nessa hora. Como Enilda suporta dormir com mais sete pessoas num quarto sem janelas no calor de Fortaleza? Como ela esfrega, engoma e passa mais de 70 peças de roupa, na mão, e ao final ganha R$ 25? Como o seu marido acorda às 3h da madrugada para fazer pão até a noite para receber R$ 80 por mês? Não seria essa a notícia, o incrível, o extraordinário? Que eles ignorem a exploração explícita do trabalho, a indignidade de suas condições de vida, e decidam que seu ato de resistência é ser honesto?

Enilda desfia sua história debaixo de um teto bordado por gaiolas de passarinhos. Às vezes fica difícil escutá-la por causa da gritaria de canários e sabiás. São dezenas. Na proporção, as aves têm mais espaço que os humanos naquela casa. Enilda e o marido espiam de um retrato pendurado na parede. Do tipo em que o fotógrafo bate na porta, pega uma fotografia 3 x 4 de cada um e depois aparece com um quadro pintado. O marido de Enilda parece o Tony Ramos quando era jovem. O comentário faz ela rir muito. Enquanto ri, não chora.

m seu bairro, somos personagens deslocados. Como num jogo dos sete erros. O que não pertence a essa imagem? Nós. Por isso, a PM de Fortaleza queria levar o fotógrafo preso. Se ele estava lá só poderia ser para comprar maconha. Que outro assunto alguém de classe média poderia ter na periferia? O argumento de que ele não portava nenhum tipo de droga não convencia o tenente. É errado, na cabeça do policial, cruzar a fronteira entre os mundos.

Quando se referem ao Brasil de onde veio a equipe de reportagem, os moradores costumam dizer: “o lado de lá”. O discurso de quem vive à margem é o que situa. Porque, ao serem circunscritos à periferia do País, eles podem dar a exata localização do outro. “Os do asfalto acham que na favela só mora bicho”, diz uma garota de 18 anos. “Eu não posso sair da favela porque não tenho dinheiro. Estou presa aqui”, afirma uma mãe que perdeu três filhos assassinados. “Os da cidade não sabem que aqui vivemos em guerra. Para eles, não somos mais seres humanos.” Não há muros, mas é pior do que se existissem, porque os muros invisíveis são exatamente os mais difíceis de derrubar.

Ao sair de outra favela, esta no Rio de Janeiro, a equipe é obrigada pela polícia a descer do carro com fuzis AR-15 apontados para as cabeças. É uma sensação sinistra. Os moradores das periferias convivem com ela. Ficam sob a mira de armas ao sair e ao chegar do trabalho, sempre que a guerra se torna mais acirrada. Culpados por morar no lugar errado, no lado de lá. Criminalizados por serem pobres.

O mergulho na vida das mães que enterram filhos assassinados é uma tentativa de aproximar países cada vez mais distantes. Mas não é preciso incursionar pelas periferias das capitais brasileiras para chegar a essas mulheres. Elas circulam no “lado de cá”, no “nosso” lado, mas de maneira invisível: são as mulheres que limpam as casas que nunca terão, varrem as ruas de bairros calçados quando no seu o esgoto escorre pela superfície, cuidam dos filhos das patroas, enquanto ignoram o paradeiro dos seus próprios.

Estas mulheres são autorizadas a cruzar a fronteira entre as pátrias para prestar serviços que os de cá não querem fazer. Como os imigrantes africanos nos países da Europa, os latino-americanos nos Estados Unidos. Com a diferença de que este é o seu país. Mas, na melhor parte dele, na porção com serviços, educação, saúde e dignidade, são estrangeiras. E, quando os mundos paralelos se cruzam na intersecção da violência, tudo isso é esquecido. Elas voltam a ser rostos borrados, tornam-se apenas “mães de bandidos”.

Não há como visitar o país em que Enilda vive sem se queimar. Mas a dor passa. Para nós, sempre é possível partir. Para Enilda e as outras, não. No lado do Brasil em que vivem, não há saída de emergência. Ao tocar mães como Enilda, escutar a sua dor, sentar em suas cadeiras de pregos, percebemos que somos muito mais semelhantes do que diferentes. O que nos torna desiguais é o que as condena, e o que nos envergonha: para nossos filhos há futuro, e para os delas há caixão.

Luta contra o tráfico

“Mataram meu filho em 11 de dezembro de 2005. Ele tinha 20 anos. Ao meio-dia, ele tinha feito um assalto para comprar droga. O tiro pegou na camisa dele, deixou um buraco. À noite, saiu para cheirar loló no trilho do trem. A polícia viu meu filho e atirou. Uma das balas pegou no pescoço. Eu estava em casa, senti na hora. Disse para o meu outro filho: ‘Ele morreu’. Senti uma coisa da cabeça aos pés. Uma dor tão grande que não sei explicar. Uma dor de doer. É uma dor no peito que vai fechando. A gente quer falar e não fala mais. Desmaiei na calçada e não vi mais nada.

Quando esse menino chegou, um dia, com um tiro no peito, sangrando em cima da bicicleta, comecei a pagar o caixão dele. Vejo muita mãe aqui onde moro tendo de pedir esmola pra comprar o caixão. Eu não queria isso pro meu menino. Quando ele foi assassinado, fazia quase cinco anos que eu pagava. Mas estava com duas prestações atrasadas. O pai dele tinha ganhado o décimo-terceiro na padaria, porque era perto do Natal. A gente estava guardando para aumentar a casa, que não cabe todo mundo na hora de dormir. Mas quando meu filho foi morto, peguei esse dinheirinho e mandei pagar o carnê atrasado logo cedo.

Agora, estou pagando o caixão do meu outro filho, de 19 anos. Ele está no tráfico. Ele diz: ‘Mãe, eu não vou ser que nem o meu irmão, que morreu de graça’. Mas sei que ele vai morrer. A pedra [crack] está matando os meninos novos tudinho. É terrível comprar caixão para filho vivo, mas meus meninos vão morrer honestamente.

Tive sete filhos, agora só tem quatro vivos. Crio também uma menina que botaram na minha porta com sete dias de vida. Dois morreram de doença quando eram pequenos e esse morreu de morte matada. Desses que morreram de doença, eu não sinto falta. Acho que porque eram pequenos. O que morreu de morte matada dói o dia todo.

Esse meu menino que morreu foi bom até os 12 anos. Ele era vendedor de coco. Era pequeno e tinha mão com calo de tanto trabalhar. Vendia coco numa carrocinha que o pai deu pra ele. De um dia pro outro, virou a cabeça. Começou a usar toda a droga que há no mundo. A gente segura até os 11, 12 anos. Bota pra dentro de casa no fim da tarde e só abre no dia seguinte. Mas quando crescem, não segura mais. Eles vão pra rua e o que encontram? Não tem nada, lazer, trabalho, coisa nenhuma. Tem o tráfico.

Na primeira vez que ele chegou com os olhos apertados, cheirei a boca do meu menino. Senti na hora o bafo da maconha misturado com loló. O pai bateu nele. Na segunda, eu mesma bati. Não adiantou nada. Nem conversa, nem conselho. Ele não ouvia a gente. Então soube que o fim dele era a morte. Nunca aceitei nada dele aqui em casa. Nenhuma arrumação. Aceitava quando era dinheiro suado, que ganhava vendendo coco. Depois, não. Porque se aceitasse, ele ia querer trazer toda vida. Um dia encontrei a droga aqui e dei descarga nela. Sempre abri a porta para a polícia, nunca acobertei. Mas não agüentava mais ver a polícia batendo nele na minha frente, ele ficava com a cara toda arrebentada. Meu filho tinha até hérnia nos testículos de tanto levar chute. Esse menino tinha 20 anos e passou mais tempo preso do que solto.

A polícia me trata mal. Diz que sou mãe de vagabundo. Mas eles não sabem como a vida é na verdade. Eu e meu marido somos casados há 28 anos. Ele acorda às 3h da manhã para fazer pão na padaria. Ganha R$ 70, às vezes R$ 80 num mês. Quando meus filhos eram pequenos, eles diziam que queriam ser padeiro como o pai. Mas depois que cresceram, não quiseram mais saber disso, não. Eles riem da profissão de padeiro. Eu lavo duas trouxas de roupa por semana, cada uma com mais de 70 peças. Lavo, engomo, passo. Tudo na mão. Me pagam R$ 25 reais por trouxa. Queria ter mais para lavar, mas ainda não consegui mais freguesas.

A gente trabalha pra dar de comer aos nossos filhos, nunca faltou comida a eles. Mas eles querem roupa de marca. Eu tento comprar, uma vez pra cada um. Tem uma mulher que vende aqui na porta e a gente paga por semana. Quando acabo de pagar a roupa de um, começo a pagar a do outro, até chegar no último e começar tudo de novo.

Toda a minha família dorme num quarto só, mesmo o menino que já tem mulher. Somos oito num quarto só, sem janelas. Depois tem mais uma pecinha e a cozinha. Por isso eu queria aumentar a casa. Porque a gente só cabe um por cima do outro. Bota uma rede em cima da outra. E um ventilador, pra agüentar um pouco o calor. Todo ano aqui tem enchente. Alaga tudo, fica a marca da água no meio da parede. Eu pego os meninos e a gente vai dormir lá fora até a água baixar. Botamos um colchão lá onde eu lavo roupa. Quando a água baixa, a gente volta. Ficamos todos doentes, porque fica cheio de ratos. O pouquinho de móveis que a gente tem apodrece.

Queria salvar os meus filhos que ainda não morreram, mas não sei como. Digo que o irmão morto é o espelho deles, que nessa vida de tráfico vão morrer de uma hora pra outra. Digo também que quem entrar para o crime eu entrego, porque não protejo sem-vergonhice. Mas eles não escutam. Saem de casa e dizem que voltam quando eu ficar mais calma. Não bebo, não fumo. Meu vício só é novela. Vejo todas. Boto as crianças pra dentro e vejo da primeira à última novela, em todos os canais. Aí durmo. De noite eu acordo. Ouço o meu filho me chamando na porta. ‘Mãeeee’, ele diz. Eu me levanto, vou até a porta, abro e ele não está lá. Meu marido fica bravo, diz que um dia vão me matar quando eu abrir a porta. Mas ouço meu filho me chamando, e não consigo não abrir. Só que ele nunca está lá. Não tem ninguém lá. Então fico chorando atrás da porta”.

Comments (3)

  1. chorei horrores com essa reportagem,tenho cinco filhos e meu maior medo e eles um dia entrarem para o mundo do trafico,que Deus conforta essa mae.

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