População do município ribeirinho do Norte de Minas atua pela preservação do patrimônio cultural do Rio São Francisco.
A participação da população é fundamental para a preservação do patrimônio cultural. Em Matias Cardoso, município ribeirinho do Norte de Minas, essa afirmação ganha vida no trabalho de vazanteiros, líderes comunitários, estudantes, artesãs e comunidades quilombolas que têm buscado preservar e valorizar o seu patrimônio. E o município, considerado o marco inicial da colonização de Minas Gerais, já tem colhido frutos dessa mobilização: o resgate de tradições, a valorização do patrimônio cultural e a formação para a cidadania são alguns dos resultados.
Um dos atores responsáveis por promover e incentivar essas conquistas é o projeto Cidadania Ribeirinha da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), que desde o ano passado atua em Matias Cardoso, Itacarambi, Manga e Pedras de Maria da Cruz. A escolha desses municípios tem um motivo: entre as cidades banhadas pelo Rio São Francisco em Minas, elas registram o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Para ajudar a mudar essa realidade, o projeto busca, por meio do engajamento das comunidades locais, promover ações de preservação ambiental, desenvolvimento sustentável e valorização cultural.
Essas ações, segundo o gestor do projeto e consultor técnico da ALMG, Márcio Santos, consistem em cursos, seminários, debates, oficinas e ações comunitárias promovidas nas localidades. A partir dessas atividades, espera-se que as informações e reflexões sejam apropriadas e multiplicadas pelas comunidades envolvidas.
Para que essas ações sejam contínuas, o projeto conta com parceiros. Um deles é o diácono Daniel Cordeiro Matias, responsável pela Igreja Nossa Senhora da Conceição, considerada a mais antiga do Estado. Inaugurada em 8 de dezembro de 1695, sua construção tem paredes com um metro de espessura e furos que sugerem que ela era utilizada também como uma fortificação, além de túneis secretos para fuga em caso de ataque ao arraial. “Não era apenas um templo, mas uma fortaleza”, acredita o gestor do Cidadania Ribeirinha.
O problema é que a história desse patrimônio nem sempre é conhecida, principalmente pelos jovens. Por isso, o diácono tem incentivado a preservação da memória e das tradições. “Os jovens vão elaborar uma peça de teatro para contar a história de Matias Cardoso. Além disso, montamos uma exposição composta por rezas antigas e objetos da cultura e da vida de nossa cidade, como panelas de ferro, pratarias e louças com mais de 200 anos” , explica.
Essa consciência da cidade e de sua importância histórica e cultural é indispensável para a preservação do patrimônio, já que, segundo o assessor jurídico da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico, Frederico Bianchini, a maioria dos casos de sucesso no âmbito estadual ocorre quando há parcerias. “A responsabilidade é de todos. Em Manga, por exemplo, o Ministério Público conseguiu, a partir do questionamento da comunidade, evitar a demolição de um casarão histórico de valor cultural”, exemplifica o assessor.
Estilo de vida também deve ser preservado
Além da preservação do patrimônio material, nos municípios integrantes do Cidadania Ribeirinha há também um importante bem a ser preservado: as práticas e o modo de viver das comunidades quilombolas, vazanteiras e de pescadores. Nesse aspecto, o objetivo do projeto é preservar o estilo de vida próprio dessas comunidades, próximo da natureza, além de promover uma consciência de desenvolvimento sustentável.
A proteção desse modo de viver, explica a coordenadora do setor de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-MG), Corina Moreira, significa a preservação de práticas e expressões inseridas no cotidiano, são os saberes transmitidos por meio de gerações. A dificuldade é que, muitas vezes, esses saberes estão tão enraizados no cotidiano que eles podem não ser identificados como tradição pela própria comunidade.
A preocupação com a preservação das tradições faz com que o líder da comunidade quilombola e vereador de Pedras de Maria da Cruz, Agmar Pereira Lima, busque resgatar rezas e cantos próprios da cultura quilombola. “Vemos as pessoas se redescobrindo e voltando a praticar esses costumes”, conta.
Crochê de marambaia – Para resgatar algumas técnicas de artesanato, a fundadora da Associação das Mulheres Artesãs da Praia, Selma Evangelista, procurou as artesãs mais antigas da região. A partir da troca de experiências, ela aprendeu o crochê de marambaia, que é ensinado hoje na associação. Mais do que o resgate da tradição para repassar aos mais jovens, a iniciativa marcou também o retorno das antigas artesãs ao ofício. “Muitas voltaram a bordar e houve também uma melhora da autoestima delas”, explica.
A mudança na postura e na compreensão de sua importância cultural também avança sobre a maneira como a comunidade se relaciona com o meio ambiente. Agricultores da comunidade Ilha Pau de Légua, Natalino da Silva e Deocleciano Pereira dos Santos têm optado pelo uso racional e sustentável dos recursos naturais, com o plantio sem agrotóxico e a eliminação das queimadas.
Empolgado com o conhecimento adquirido, Natalino, que já tem uma horta orgânica, dá a dica. “Para matar formiga cortadeira não precisa utilizar inseticida: coloca pão mofado com vinagre para ela alimentar. É uma forma natural”, ensina o agricultor.
Projeto também atua na promoção da cidadania
Na multiplicação das ideias promovidas pelo projeto, existem ainda os professores multiplicadores, que são responsáveis por transmitir o conteúdo do curso para os alunos do ensino médio das escolas da rede pública. Essas aulas, como explica o gestor do projeto, representam o repasse formal de conteúdos. Além delas, serão realizadas também atividades em campo, como mutirões, campanhas educativas e pesquisas. Elas serão desenvolvidas a céu aberto, fora da sala de aula, mobilizando os alunos para a defesa dos recursos hídricos, de cidades limpas e do patrimônio cultural.
Essas ações possibilitam, para a gestora pública e professora multiplicadora do projeto na região, Janaelle Neri, a mudança da relação do indivíduo com a cidade e com o lugar que ele ocupa. “É uma oportunidade de criar um espaço para o debate. Muitas vezes, a população assiste a tudo e não tem atitude, não sabe se posicionar”, opina.
Além da sala de aula, esse espaço para o debate sobre cidadania se amplia até as comunidades vazanteiras e quilombolas. É o que destaca a moradora da comunidade quilombola da Lapinha, Dermira Ferreira Borges. “Aprendemos a debater, a buscar os direitos da gente, a buscar informação até mesmo sobre as leis que amparam a comunidade”, enumera.
Mais do que isso, Cristiane Rodrigues Pinheiro, moradora da comunidade vazanteira do Pau Preto, destaca que a participação, além de mudar a mentalidade das pessoas, muda ainda a visão dos moradores da região. “Estamos sendo mais vistos, estamos sendo lembrados, somos mais reconhecidos”, destaca, satisfeita.
—
Enviada por Ruben Siqueira.