Graves violações de direitos humanos contra indígenas explicitadas no Relatório Figueiredo ainda são desconhecidas de entidades como a Comissão da Verdade, incumbida de apurá-las
Felipe Canêdo – Estado de Minas
Uma das passagens mais dramáticas descritas pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1968 é a que narra sua passagem por Guarita, no Rio Grande do Sul, área da 7ª Inspetoria do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), quando ele se deparou com duas crianças indígenas em péssimo estado de saúde. “Em Guarita (IR-7-RGS), seguindo uma família que se escondia, fomos encontrar duas criancinhas sob uma moita tendo as cabecinhas quase completamente apodrecidas de horrorosos tumores, provocados pelo berne, parasita bovino”, ele escreveu no documento que entraria para a história com seu nome: Relatório Figueiredo. Sua expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros investigando violações de direitos humanos em 130 postos indígenas.
O inquérito por ele elaborado, desaparecido por 45 anos, foi encontrado em caixas guardadas no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Matéria publicada ontem pelo Estado de Minas mostrou como um pesquisador de São Paulo se deparou com a papelada produzida pela investigação feita a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, que, até então, acreditava-se que havia sido destruída em um incêndio no Ministério da Agricultura. Foram recuperadas mais de 7 mil páginas do inquérito, produto da expedição comandada por Figueiredo, incluindo as 62 páginas pertencentes ao relatório final, entregue a Albuquerque Lima em 1968. Os únicos registros anteriores eram reportagens feitas a partir de uma entrevista concedida pelo procurador em março daquele ano, com repercussão internacional.
Revoltado com os maus-tratos e com o descaso com que os índios eram tratados por agentes do SPI, o que levou muitos à morte ou a ficar com sequelas irreversíveis, Figueiredo exigiu que as crianças de Guarita fossem atendidas por médicos. Quando passou por Nonoai, uma aldeia na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, o procurador descreveu prisões que lembravam presídios do rei Luís XI, da França: “Uma cela de táboas, apenas com pequeno respiradouro, sem instalações, que obriga o índio a atender suas necessidades fisiológicas no próprio recinto da minúscula e infecta prisão, foi apontada pelo chefe do posto, Nilson de Assis Castro, como melhoramento de sua autoria”.
Uma das conclusões do procurador foi que os índios eram tratados como animais. “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana”, ele escreveu.
Divisor de águas
A coordenadora do núcleo da Comissão Nacional da Verdade responsável pela investigação de violações de direitos relacionados à luta pela terra, Maria Rita Kehl, aponta o Relatório Figueiredo como um divisor de águas nas políticas indigenistas do país. “Depois do relatório, o SPI foi extinto e foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai). Não sei dizer se essa mudança de gestão já preparava terreno para um grande momento de políticas desenvolvimentistas na Amazônia do final da década de 1970, que foi um momento de massacres sistemáticos de índios pior ainda”, ela pondera. Segundo a psicanalista, a comissão aguarda a conclusão da digitalização e recuperação do acervo do Relatório Figueiredo para recebê-lo e só então começar a investigá-lo.
“Eu não posso falar sobre o relatório porque ainda não o conheço, mas é um documento oficial importante. Posso adiantar que é impossível pesquisar todas as acusações contidas nele. A gente não tem como investigar casos sobre um funcionário que agrediu um índio, por exemplo. O que a gente tem que procurar são as grandes violações, matanças de tribos. O nosso trabalho é gigantesco”, argumenta. Sobre a lista de acusados apresentada no inquérito, com crimes elencados para cada nome, ela também joga água fria nas expectativas de que sejam todos apurados. Maria Rita faz uma ressalva também para as motivações políticas e brigas internas do SPI contidas no relatório.
Mesmo assim, ela considera fundamental que as violações de direitos humanos de índios e camponeses durante a ditadura sejam esclarecidas, já que “muita gente ainda acha que quem foi morto ou torturado pelo regime era terrorista. Isso é uma coisa que os militares espalharam. E não é verdade. Muita gente foi morta em nome de um projeto”. Ela acrescenta que os índios não sabiam quem estava governando, se era uma ditadura. “Eles sabiam que os caras de botas pretas chegavam – como são descritos em relatórios – e aí matavam, ou maltratavam”, afirma.
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.