por Pedro Pulzatto Peruzzo e Israel Iberê-Uaná Sassa Tupinambá*, no União – Campo, Cidade e Floresta
No dia 19 de abril comemoram em todo Brasil o dia do índio, mas muitos nem sabem o motivo da escolha desse dia para ser o dia do índio. Nas escolas os professores pintam as crianças e ensinam a elas que ser indo é usar saia de palha, pena na cabeça, pintar o corpo e girar em roda gritando de forma repetida e intercalada a letra “U”. Conversando com uma criança sobre o que seria o dia do índio, ela me disse que seria “dia de passear com a escola”.
No governo as notas, decretos, atos públicos, memorandos, discursos etc. prestam o relato cínico de compromisso com a miséria indígena. Digo que o relato é cínico, pois o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias diz que: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” Considerando que a Constituição Federal foi promulgada em 05 de outubro de 1988, todas as terras indígenas deveriam estar demarcadas até 05 de outubro de 1993. Ou seja, a União está com um atraso de 20 anos em relação à demarcação das terras tradicionais.
Nas universidades os acadêmicos fazem seus discursos, divulgam suas teses, seus egos, seus “domínios” sobre a questão e não contam que, depois de titulados ou de dentro dos seus reconfortantes lares, pouco se importarão com a luta real que acontece fora da teoria. Estabelecem relação utilitária com a causa indígena, até construir sua carreira.
Enquanto isso, nas terras indígenas, também no dia 19 de abril as crianças passam fome, os professores são mortos, as lideranças são caladas, as mulheres são estupradas, as hidrelétricas são iniciadas e concluídas, o meio ambiente provedor é destruído. Entre os adolescentes indígenas, a taxa de suicídio espanta, pois em 2008 atingiu a cifra de 20 suicídios a cada 100 mil indígenas, contra 4,9 suicídios da média nacional. Só no estado do Amazonas, em 2008, foram registrados 32,2 suicídios por cada 100 mil indígenas, o que representa uma taxa 6 vezes maior do que a média nacional; no estado do Mato Grosso do Sul a taxa foi de 446 suicídios entre os jovens por cada 100 mil indígenas, dezenas de vezes superior à média nacional (Fonte: Mapa da violência 2011).
Outros dados reforçam o espanto. Do total de pessoas mortas entre 2002 e 2010, 34,5% eram brancas e 65,1% eram negras (pardas e pretas segundo classificação do IBGE). Desse total 30,6% eram jovens brancos e 69,1% eram jovens negros, sendo que as sobras desse percentual são de amarelos e indígenas. Apesar de a taxa de indígenas ser baixa, se considerarmos que a população indígena representa 0,4% da população nacional, ou seja, são 817,9 mil indígenas numa população total de 190.732.694 pessoas (IBGE – 2010), teremos um índice também assustador. Considerando a proporção, o Mapa da Cor dos Homicídios no Brasil apontou para um aumento de 48% do índice de homicídio de indígenas entre 2002 e 2010 e de 56,3% de jovens indígenas no mesmo período, apresentando à nação em festa pelo Dia do Índio uma estatística de causar horror.
Diante desse cenário, antes de iniciarmos nossos comentários sobre o “dia do índio”, queremos citar uma canção do Legião Urbana que diz: “Vamos celebrar nossa bandeira, nosso passado de absurdos gloriosos, tudo o que é gratuito e feio, tudo o que é normal. Vamos cantar juntos o hino nacional, a lágrima é verdadeira. (…) Vamos celebrar o horror de tudo isto com festa, velório e caixão, está tudo morto e enterrado agora!”
O dia do índio foi criado por ocasião do 1º Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido no México em 1940, ocasião em que foi elaborada a Recomendação nº 59 que propôs: 1. o estabelecimento do Dia do Índio pelos governos dos países americanos, que seria dedicado ao estudo do problema do índio atual pelas diversas instituições de ensino; 2. que seria adotado o dia 19 de abril para comemorar o Dia do Índio, data em que os delegados indígenas se reuniram pela primeira vez em assembléia no Congresso Indigenista. No Brasil o presidente Getúlio Vargas instituiu o dia do índio por meio do Decreto-lei 5540/43.
Criado, então, o dia do índio, resta-nos refletir sobre a razão de comemorarmos essa data.
Comemoração nos lembra alegria, mas quando pensamos na situação dos povos indígenas no Brasil a vontade que temos é de chorar… e chorar de tristeza. Quando olhamos para o Direito, não vemos respeito aos povos indígenas e, novamente, sentimos ânsia, dor de estômago, e ressurge a nossa vontade de chorar de tristeza, pois nos sentimos inúteis, enganados, bobos mesmo, por termos de nos valer de tantos direitos sem podermos lançar mão de um mínimo de justiça.
Insistente que somos, lemos e relemos as leis, as portarias, os decretos, os tratados internacionais e, das migalhas do justo que existem nesses documentos, tentamos costurar uma colcha de retalhos para aquecer com esclarecimento de cidadania um índio que seja, um índio que, acalentado de cidadania, compartilhe seu calor com outros índios e construam, juntos e com plena autonomia, uma base sólida de cidadania e justiça para que um dia tenhamos motivos para, de fato, comemorar o dia do índio.
Enquanto a nossa colcha não fica pronta, enquanto temos entre os dedos apenas algumas linhas frouxas e judiadas, nos dirigimos ao leitor para pedir ajuda. Contribuam com a linha que lhe parecer melhor, da cor que lhe parecer melhor, com a quantidade que lhe parecer melhor e que não lhe fará falta… De pouco em pouco vamos costurando a colcha. De pouco em pouco… como a justiça para a luta indígena.
As contribuições são bem vindas de todos os lados, pois a nossa posição não é a de quem pretende fazer o nosso nome com exclusividade acadêmica; nossa proposta é de somar, contribuir, auxiliar, dar ideias para a plena autonomia dos povos indígenas. E autonomia significa os índios não mais precisarem do nosso conhecimento técnico jurídico e político, ou não precisarem dele do modo como hoje precisam. Autonomia significa os índios “quererem” dialogar conosco, ao invés de “precisarem” dialogar conosco. E essa deveria ser a postura de qualquer acadêmico, militante, político ou indigenista. Enquanto os índios precisarem de nós, estaremos sendo tutores, e a proposta de autonomia não convive com a tutela e com as originalidades de teses.
Antes de seguir, sugerimos uma reorientação terminológica. “Índio” é uma categoria colonial, criada pelo colonizador que, chegando à América, imaginou estivesse chegando às Índias. Isso para não dizer que “índio” é um elemento da tabela periódica de número atômico 49. Os índios não existem, quem existe são os Tupinambás, os Guaranis, os Xavantes, os Yanomamis, os Mundurucus e todo mosaico de povos e etnias. Se quisermos generalizar, então devemos utilizar o termo “povos autóctones” ou “povos originários”.
Quando afirmamos que nos entristece olhar para o Direito num movimento de busca de justiça para os povos originários, dizemos isso pelo fato de apenas vermos no Direito a prevalência das forças semânticas do colonizador. Para ficar mais clara essa idéia é importante esclarecer o conceito que temos de Direito.
Direito não é só lei. Direito não é só justiça. Direito não é só ordem e progresso. Direito não é só sanção. Direito não é só liberdade. Direito é um espaço público; ou melhor, um reflexo do que se passa no espaço público! Público pelo fato de ter como destinatário todos os cidadãos que vivem sob uma determinada delimitação territorial e suas extensões ficcionais (embarcações, aeronaves, embaixadas etc.). Espaço por ser um “locus” de disputa de verdades. Considerando que a destinação pública do Direito não traz grandes dificuldades de compreensão, analisemos a característica do Direito como reflexo de um espaço de disputa de verdades.
Quando as pessoas manifestam suas opiniões sobre o que é o Direito normalmente se referem a exemplos ou experiências que tiveram no sentido de verem privilegiadas ou não as suas expectativas morais. Em outros termos, o Direito pode ser entendido como a estabilização das expectativas sociais em relação ao que deve ser repetido (por ser bom) e ao que deve ser reprimido (por ser mal). Ocorre que essa compreensão, da maneira pura e simples como apresentada, desconsidera dois fatos importantes: 1- em sociedades com baixa consolidação democrática as expectativas estabilizadas no Direito não são expectativas sociais públicas, mas expectativas restritas dos grupos detentores do poder econômico; 2- as expectativas sociais mudam com o passar do tempo.
Não há como pretender encontrar a equidade numa sociedade onde as instituições que deveriam garantir essa equidade não exercem seu papel a contento, são corruptas, ineficientes e se prestam apenas ao sustento das expectativas de um grupo de pessoas. Do mesmo modo, não há como acreditar que a estabilidade e probidade institucional seja decorrência de um conjunto de leis mortas em pedaços de papel.
O Brasil, por exemplo, é um país que foi colonizado por pessoas inescrupulosas, que fundaram a atual configuração sócio-econômica com o latifúndio, a monocultura e a exportação de alimentos aos países que, diferentemente do Brasil, aumentavam a capacidade de produção dos seus trabalhadores investindo em educação, alimentação, saúde e moradia. Aqui não existiam e não existem condições para pensar em equidade como igualdade de partida, pois a desigualdade faz parte da própria estrutura social. Assim, as expectativas estabilizadas no Direito não seriam legítimas pelo fato de faltar identidade entre essas expectativas e as expectativas das pessoas que, por viverem em um espaço de desigualdade na disputa semântica e por não terem respaldo das instituições, nem mesmo puderam manifestar, expor, apresentar suas expectativas em um ambiente de diálogo.
Importante ficar claro que igualdade não significa apenas ter a mesma quantidade de dinheiro ou o mesmo tênis da mesma marca. Igualdade econômica significa ter o que se precisa para lutar pelo que se quer. No caso dos povos originários, ter terra demarcada significa ter segurança para lutar por educação diferenciada, para articular a participação política, para garantir saúde, moradia e alimentação à comunidade. Nesse sentido, o atraso de 20 anos na demarcação das terras indígenas significa condenar esses povos a mais 20 anos de deficiência alimentar, educacional, política etc., como se já não bastassem os 513 anos de genocídio.
Além disso, existe outra questão, que é o fato de que além das expectativas estabilizadas no Direito não terem legitimidade por deficiência na igualdade de participação na construção dos seus sentidos, em razão de deficiência das instituições (em especial as representativas), também lhes pode faltar legitimidade se os fluxos de diálogo que dão origem aos consensos não forem permanentemente recriados no curso da história. Isso tem a ver com o fato de a cultura (e, portanto, a moral) mudar com o curso da história e das experiências sociais, criando novas expectativas que deverão ser estabilizadas dentro de novos fluxos comunicativos. Um evento da natureza pode interferir em uma estrutura cultural de expectativas, como também um golpe de Estado pode interferir nessa estrutura.
Um golpe de Estado é um evento social que pode alterar a concepção do que seja bom e, portanto, desejável juridicamente como algo a ser repetido. O regime instituído pelo golpe pode considerar a liberdade de imprensa (que poderia ser entendida social e culturalmente como boa antes do golpe) como uma liberdade ameaçadora à estrutura política instaurada e, nesse caso, o novo regime pode proibir a liberdade de imprensa. Eis o que aconteceu no Brasil durante a ditadura militar. Eis o que aconteceu, em outros termos, com os judeus durante o regime nazista.
Do mesmo modo, quando da promulgação da Constituição brasileira de 1988, entendia-se que o conceito ideal de família que deveria emergir do artigo 226 da Carta era o conceito de união entre um homem e uma mulher. Com o passar do tempo esse conceito foi tensionado pelos gays, pelas lésbicas, pelos travestis e transexuais de modo que o Supremo Tribunal Federal brasileiro, em 2011, quando julgou a ADI 4277, disse que a partir de então o sentido de família também compreenderia a união entre pessoas do mesmo sexo, privilegiando a liberdade de orientação sexual.
O que quero dizer com isso é que o Direito reflete os resultados emergentes do espaço de disputa de sentidos que estão na lei, com a expectativa de construção de justiça social (ou de injustiça social, dependendo da relação de forças operante na sociedade). Em outros termos, o Direito não “vem de cima” (ou não deveria vir), vem de dentro das estruturas sociais e culturais, ou para ser mais preciso, emerge (ou deveria emergir) dos diálogos e convencimentos gestados dentro dessas estruturas. Reduzir o direito à lei, à justiça, à sanção etc., não se mostra uma atitude honesta. E enquanto reflexo de um espaço de disputas de sentidos, o Direito é por excelência o reflexo de um espaço de disputa de verdades.
Neste momento vale duas considerações. A primeira é que por ser uma disputa de sentidos e verdades, o equilíbrio entre o poder discursivo dos interlocutores deve ser visto como um requisito essencial para os diálogos que pretendem alcançar consensos. A segunda consideração diz respeito à necessidade de deixar claro que nenhuma verdade pode ser fruto de imposição; verdade é fruto de consenso, sob pena de ser verdade para um e mentira (e violência) para outro. No máximo, na impossibilidade de consenso, que o diálogo tenha sido intenso, engajado na compreensão das razões do outro interlocutor. Esse engajamento promove o conhecimento do outro e esse conhecimento promove mais respeito do que o silêncio que mantém e promove o preconceito.
Feitos esses esclarecimentos, o nosso desânimo em relação à situação jurídica e política dos povos originários tem a ver com a exclusão desses povos dos “espaços” de criação de sentido, de verdade, de consenso a respeito do que deve ser entendido como Direito.
De um lado temos crianças “não-indígenas” comemorando o dia do índio com os rostos pintados, girando em roda e comendo cachorro-quente nas escolas. De outro lado temos crianças morrendo de fome, por bala, de desgosto (suicídio) e por atropelamento (por morarem na beira da estrada) dentro de comunidades indígenas.
De um lado temos os povos originários buscando desesperados alguma ajuda para entender o ordenamento jurídico nacional, o funcionamento das instituições, mendigando apoio político à FUNAI, às ONGs e aos acadêmicos que dependem da miséria desses povos para permanecerem em atividade. De outro lado temos o governo federal removendo populações indígenas de seus territórios tradicionais para construção de hidrelétricas; temos o Luis Inácio Adams, Advogado Geral da União, brincando de super-herói do extrativismo, do capitalismo excludente e do agronegócio, rasgando a Constituição Federal com sua Portaria 303; temos
alguns juízes federais em exercício no Mato Grosso do Sul impedindo oitivas de testemunhas indígenas em suas línguas tradicionais, expedindo mandados de reintegração de posse sem se preocupar em saber para onde vão os indígenas (beira de estradas, como sempre); temos deputados e senadores criando Propostas e Emendas Constitucionais criando entraves e obstáculos à demarcação das terras, que já tem um atraso de 20 anos (PEC 71 e PEC 215) e projetos de lei (como o projeto da lei 1.610 que pretende abrir as porteiras para a mineração em terras de comunidades tradicionais) em aviltante afronta ao princípio da vedação do retrocesso em direitos fundamentais e ao regime democrático, razão de ser da nossa Constituição.
Essas incoerências todas são as tais disputas públicas pelo sentido do Direito que refletem no Direito. No entanto, num jogo em que em um dos times existem indígenas mal representados pelas instituições que deveriam representá-los e perdidos no que diz respeito ao conhecimento dos seus direitos e acesso ao mínimo existencial para emplacarem suas lutas de forma independente e, em outro time, existe o Governo Federal mais preocupado com obras de infraestrutura do que com a vida cultural dos povos tradicionais, o Advogado Geral da União delirando em sua saga legislativa, a bancada ruralista da Câmara e do Senado rasgando a Constituição sem ninguém falar nada, essa disputa semântica terá um resultado previsível e preocupante.
A participação política é um direito consagrado em vários instrumentos legais de direitos humanos, podendo ser citado o artigo 25 do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966 (internalizado no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 226/1991), os artigos 6, 1, b, e 7, 1 e 2 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (internalizada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 143/2002), os artigos 5, 18 e 23 da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU (ratificada pelo governo brasileiro em setembro de 2007), bem como o artigo 23, 1, a, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José, internalizado no Brasil pelo Decreto Legislativo 27/1992).
A título de exemplo vale citar a Convenção 169 da OIT, que diz: “ARTIGO 6º – 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; (…)”
Saber que essas regras valem no Brasil com estatuto supralegal (ou seja, acima das leis ordinárias – como o Código Civil – e abaixo da Constituição, nos termos decididos pelo Supremo Tribunal Federal em 2007), saber que todas essas PECs (71 e 215), Portarias (303 da AGU) e projetos de lei são medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar os povos tradicionais diretamente e verificar que a FUNAI e o Ministério Público não têm feito nada para garantir a consulta e participação dos povos tradicionais nas discussões dessas leis é lamentável! E dizer que a FUNAI e o Ministério Público não podem fazer nada é uma grande mentira, pois a Constituição atribui a esses órgãos o dever de proteger os interesses dos povos tradicionais e fazer cumprir a lei.
Interessante lembrar ainda que o próprio Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes já disse textualmente em seu livro “Curso de Direito Constitucional” (Ed. 6., editora Saraiva) que: “Atualmente, a jurisprudência do Tribunal (STF) está pacificada no sentido de que o parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizem com o processo legislativo constitucional.” Ou seja, existe ainda a possibilidade de evitar que leis e emendas constitucionais que violem as regras do processo legislativo ingressem no ordenamento jurídico quando esse processo estiver viciado, como acontece quando a lei é aprovada sem prévia consulta aos povos afetados.
Os povos indígenas nem sempre foram os derrotados, mas sempre que venciam eram chamados para acordos com os invasores e sempre os acordos eram quebrados pelo lado opositor dos indígenas. Foi assim quando a Confederação dos Tamoios venceu os portugueses em Iperoig, hoje Bertioga; foi assim quando a organização Guarani dos 7 Povos das Missões venceram os invasores no sul do país e será sempre assim, pois toda vitória dos povos indígenas será selada com a traição do Estado brasileiro. Os povos indígenas são os derrotados, porque sempre lutaram, nunca se entregando ao inimigo. São os derrotados porque suas armas foram criadas para lhes proverem a vida e não para ceifar a vida alheia e mais ainda, são os derrotados porque, ao contrario de seu inimigo, não fazem aliança com base em mentiras e enganação e não usam os inimigos de seu inimigo como estratégia de guerra. Por fim, são derrotados por não serem covardes.
Com base na história podemos afirmar com toda convicção que devemos abolir do calendário dos povos indígenas a comemoração do dia 19 de abril. Devemos radicalizar e tornar as
próprias datas indígenas em dias de memória dos antepassados e ancestrais, que derramaram seu sangue e entregaram suas vidas pela reconquista das terras tradicionais. Não podemos ter um dia de festa, como sempre foi feito.
Cada povo que existe hoje, existe porque no passado seus ascendentes lutaram, enfrentaram os inimigos no corpo-a-corpo e devemos honrar no presente a luta dos mártires indígenas e dedicar cada dia para a reconquista de tudo que de foi roubado dos povos tradicionais, as terras e territórios, a dignidade e a alma.
Os próprios povos deveriam criar seus dias de comemoração, de acordo com sua própria história, homenageando seus próprios mártires e mantendo sua tradição: é dia de festa, é dia de luta. Um bom exemplo é a Caminhada Tupinambá em Olivença ou a Marcha dos Mártires, que há 11 anos anualmente percorre 8 km em memória dos mártires do povo Tupinambá. Um outro exemplo ocorreu no ano de 2012, quando em varias cidades foi realizado manifesto no dia 20 de janeiro, o DIA DA CONSCIENCIA INDÍGENA, data escolhida em homenagem ao mártir idealizador e Cacique da Confederação dos Tamoios, o Aimberê. E existem muito mais datas a serem levantadas como mais um dia de luta, pela existência, pelo território, pela cultura e pela permanência na resistência.
Diante desse cenário, nosso entendimento é no sentido de que o que deveríamos ter é uma cerimônia não de comemoração no dia 19 de abril, mas uma cerimônia fúnebre, para velar a participação política dos povos originários do Brasil na disputa pelo sentido de democracia que deve orientar o Direito brasileiro.
*Pedro Pulzatto Peruzzo, Advogado, Militante Defesa dos Direitos Humanos, GT Indígena do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus; Israel Iberê-Uaná Sassa Tupinambá, Povo Tupinambá, Militante Defesa dos Direitos Humanos, GT Indígena do Tribunal Popular: o Estado brasileiro no banco dos réus.